Cultura

Por ordem de entrada em cena, o primeiro é Macunaíma, de Mário de Andrade

Não consigo destacar um livro que "tenha feito minha cabeça". Na minha longa trajetória de leitora inveterada, que lê nas filas, nas viagens de ônibus, debaixo do secador do cabeleireiro, houve contribuições de toda natureza. Mas dos autores que compõem uma extensa lista, é possível d istinguir os que vieram e passaram e os que permanecem, onipresentes, seja pelo seu valor intrínseco, seja pela sintonia especial que se estabeleceu com o autor, em momentos significat ivos da minha vida. É de alguns desses que quero falar.

Por ordem de entrada em cena, o primeiro é Macunaíma, de Mário de Andrade. Eu tinha quatorze anos e tive o privilégio de ter como professor de literatura Lourival Gomes Machado que, juntamente com Antônio Cândido, Paulo Emilio, Décio de A. Prado, integrava o grupo da revista Clima. Através dessa influência, nós alunos fomos envolvidos pelo embate que se travava entre as idéias libertárias e de exaltação auriverde, herdadas da semana de Arte Moderna de 22, e o rancismo parnasiano, a cultura europeizada que ainda dominava nosso ambiente cultural.

Macunaíma foi o livro-manifesto, que empunhamos com entusiasmo. Mário de Andrade não era apenas um nome na lombada de um livro. Era gente de corpo presente, amigo dos nossos mestres queridos. Com ele como respaldo, todas as rebeldias eram permitidas: Que delícia poder começar uma frase com um pronome reflexivo (me contaram, me senti), sem temer as penas do inferno com que nos ameaçavam os gramaticólogos. Que bom poder substituir Peri - o índio bem comportado e seu romantismo aguado - pelo "herói sem nenhum caráter", seu jeito meio debochado, fortemente erótico, que não economizava críticas mordazes aos males do Brasil. Que alívio poder mergulhar na mitologia nacional e esquecer os mitos de importação.

Isso sem falar no estilo, na prosa tão poética que era fácil de decorar, como uma música. Sabíamos trechos inteiros decor. Macunaíma foi o começo. A poesia de Mário me acompanha até hoje. Quando passo "debaixo do arco admirável da Ponte das Bandeiras", são dele as palavras que me vêm à cabeça: "Meu rio, meu Tietê / onde me levas?/ Sarcástico rio que contradizes o curso das águas / e te afastas do mar / e te adentras na terra dos homens / onde me queres levar?"

Minha segunda escolha teria que ser fatalmente um personagem shakespeariano. Na galeria maravilhosa dos personagens que fazem parte das nossas vidas como símbolos de sentimentos eternos e universais: o amor, Romeu e Julieta; a ambição, Macbeth; o ciúme, Otelo. Destaco, num primeiro plano absoluto Hamlet, o herói da dúvida, que segue implacável o caminho traçado para desmascarar os assassinos do pai e os lacaios hipócritas e traidores, passando por cima do seu amor por Ofélia, oscilando entre sua devoção pela mãe e a execração pela cumplicidade dela no assassinato, alterando acessos de ternura e de ódio pela humanidade que o rodeia. A tragédia de Hamlet me comove de forma pessoal. Até hoje é com lágrimas nos olhos que leio a despedida de Horácio: "Good night, sweet prince. And flights of angels sing thee to thy rest."

Finalmente, Dom Quixote, de Cervantes. Esse é um livro de uma grandeza tal que, embora seja um clássico, escrito na Espanha, no século XVII, tem um conteúdo tão popular e uma vivacidade tão grande, que o tornam até hoje uma deliciosa leitura. A gente se diverte com os provérbios de Sancho Pança como devem tê-lo feito os conterrâneos e os contemporâneos de Cervantes, a gente se emociona com os delírios de Dom Quixote como se ele estivesse, vivo, nos ajudando a lutar contra os monstros e moinhos de vento que continuam assolando o nosso mundo.

Bem, está aí a minha trilogia de heróis: Macunaíma, Hamlet, Dom Quixote. A partir daí, não é difícil entender meu engajamento nas lutas que vivemos, contra a ditadura, pela anistia, pelo impeachment e, especialmente, minha adesão ao PT. Não é mesmo?

Zilah Abramo é militante do PT desde a fundação.