Política

O PT não conseguiu transmitir ao país uma alternativa estrutural durante a campanha presidencial

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O PT deu forma decisiva à eleição de 1994, só não foi a forma que quis. Foi só por causa do pavor que causava à direita e à plutocracia brasileiras a possibilidade da eleição de Lula que estas foram agarrar-se ao PSDB e a Fernando Henrique Cardoso. Nisto, porém, o PT apenas desempenhou o papel mais corriqueiro da esquerda na política moderna: o de espantalho. O espantalho leva os políticos conservadores, os grandes proprietários, os magnatas da mídia e as pequenas burguesias amedrontadas a transigirem com um reformismo de centro. O parceiro do espantalho é o semi-reformista ou o pseudo-reformista. Tal como o pragmático que agora se elegeu presidente, ele vira para um lado e diz: "Deixem comigo que eu salvo vocês". Vira para o outro lado e diz: "Eu sempre fui politicamente correto; eu sou a mudança viável. O resto é utopia".

Uma parte do povão sussurrava para o PT: "Nós desconfiamos de vocês porque o seu candidato se parece conosco. Não tem gabarito para ser presidente. Vocês dizem que são do povo, mas o que a gente vê mesmo é muito aparelho e muito funcionário público e empregado de estatal no meio de vocês. Já que a promoção deste pessoal só vai piorar o negócio para nós, e já que pelo menos nos deram agora uma moeda que não derrete no bolso, vamos esquecer de política e tratar das nossas vidas". A frieza popular foi o traço definidor da campanha de 1994.

Enquanto isso, as classes proprietárias sopravam: "Vocês já são bem melhores do que eram, mais responsáveis, mais maduros. Sorriem mais para a gente, só um pouquinho mais, que, quem sabe, deixamos vocês entrarem na sala. Aliás, o seu segundo candidato a vice-presidente é até melhor do que o seu candidato a presidente, mais tratável e mais moderno".

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O fato social mais importante subjacente a este quadro é que o povo brasileiro permanece mais desorganizado, mais dividido e mais vulnerável do que imaginávamos. Sem compreendê-lo não se pode também entender o impacto eleitoral da estabilização econômica.

A economia brasileira continua, mais do que nunca, dividida em duas. Um dos traços marcantes da divisão é o da organização desigual. A maioria do país continua desorganizada. E é esta massa desorganizada que permanece, em grande parte, prisioneira de uma economia periférica e atrasada, à míngua de acesso aos mercados, ao capital e ao trabalho. Nesta maioria se incluem a maior parte da pequena classe média urbana, além do povão subempregado das cidades e do campo.

Há quatro características desta maioria que merecem atenção especial pelas suas conseqüências eleitorais. A primeira característica é que os membros desta maioria eram as grandes vítimas do regime da moeda dupla: a moeda indexada e a moeda que se aviltava no bolso. Não tinham como se defender conquistando um lugar relativamente favorável no sistema dos salários indexados. A segunda característica é que nutrem ressentimento contra os organizados e suas prerrogativas. A terceira característica é que, pelo próprio fato da desorganização, são especialmente susceptíveis às mensagens dirigidas da mídia. A quarta característica é que veneram a competência administrativa e o preparo técnico, caros, em todo o mundo, aos que têm de enfrentar a vida sem as defesas e sem os slogans das corporações sociais. Estas características convergiram para dar a máxima dimensão eleitoral ao plano de estabilização.

Ao mesmo tempo, porém, com ou sem plano real, permitiram à aliança construída em torno da candidatura de Fernando Henrique Cardoso colocar o dedo na ferida do PT: a relação ambígua com a maioria desorganizada do país. Desde o início o PT tem o seu horizonte imaginativo voltado para o Brasil organizado e suas corporações trabalhadoras e pequeno-burguesas ainda que uma parte crescente dos seus votos venha do outro Brasil. Olha para este outro Brasil - o Brasil da bagunça - e diz: "Incorpore-se ao Brasil arrumado". Oferece aos brasileiros do outro Brasil com uma mão a prática organizadora e com a outra a ajuda material, tipo campanhas contra fome. Esta resposta, porém, é insuficiente por duas razões básicas.

A primeira razão é que deixa de enfrentar o problema da contradição de interesses e atitudes que opõem os desorganizados aos organizados. Os operários e os empresários do Brasil organizado compartilham interesses e preocupações que os opõem tanto ao povão desorganizado quanto às pequenas classes médias marginalizadas e inconformadas. Aqueles se beneficiaram com a política do protecionismo econômico e da inflação consentida. Estes foram suas grandes vítimas. Aqueles admitem que a política de adultos possa parecer com a política estudantil. Estes preferem a morte ao assembleísmo. Se o PT quer ser um partido verdadeiramente nacional e de massa precisa colocar o Brasil todo no lugar do Brasil corporativo.

A segunda razão é que constitui uma meia verdade dizer que a prática organizadora possa dar ao segundo Brasil os traços do primeiro. É verdade que as práticas associativas são necessárias para criar capacidade coletiva de ação. Mas não é verdade que o destino de uma sociedade moderna e democrática possa ser o da integração corporativa generalizada. Pelo contrário, a ascensão de formas menores e mais flexíveis de produção, a rebelião contra a rigidez autoritária e interesseira das organizações corporativas, a mobilidade social e geográfica, a valorização do capital humano sobre o capital físico, e até mesmo a cultura do experimentalismo espontâneo e individualista - tudo isto contribui para solapar o mundo dos sindicatos, das agremiações profissionais, das associações de bairro e das comunidades de base a que a esquerda tradicional ainda se apega. É tão verdade dizer que o Brasil desorganizado é o futuro do Brasil organizado quanto dizer o oposto.

Disso resulta uma conseqüência política que a esquerda em geral e o PT em particular ainda não assimilaram. Não basta confiar cegamente na prática organizadora, oferecendo no meio tempo o entendimento com as corporações organizadas e a assistência aos desorganizados. É preciso desenvolver as formas institucionais de uma economia de mercado e de uma democracia representativa que generalizem na sociedade um poder de atuação individual e coletivo capaz de afirmar-se fora das corporações tradicionais e contra elas. Num país como o Brasil a execução desta tarefa começa numa prática política e econômica que enfrente e supere o nosso dualismo.

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O PT reagiu ao quadro previsível da campanha de maneira também previsível. Por isso, perdeu-se no meio do caminho. Porém, os erros mais graves não foram os ocasionalmente cometidos, por decisões mal pensadas. Foram os erros inerentes ao projeto do PT que acabaram por ficar patentes, e a cobrar seu custo, no momento eleitoral. Há dois grupos de equívocos ligados entre si. Um diz respeito às idéias; o outro, à estratégia e às alianças.

É verdade que uma vez lançado o plano de estabilização tudo ficou difícil. Nenhum truque tático, só um acidente dramático de percurso, que não veio, teria evitado o desfecho. Reconhecê-lo, porém, em nada atenua a força da crítica. O real foi uma trombada não só esperada senão também e sobretudo constituída para revelar os limites e as ambigüidades do PT e sua relativa insensibilidade às preocupações e às preferências do Brasil não-corporativo. Ao recolher as lições da campanha, temos de distinguir os equívocos táticos facilmente corrigíveis, porém secundários, dos erros arraigados - arraigados tanto na identidade do PT quanto nas tradições da esquerda contemporânea. Estes foram decisivos. O não terem conserto rápido ou fácil só reforça a necessidade de estudá-los.

O erro das idéias foi deixar de transmitir ao país a imagem clara e simples de uma alternativa estrutural. O que prevaleceu no discurso do PT foi a proposta da negociação corporativista (tal como na idéia das câmaras setoriais) para o primeiro Brasil e da assistência social (estilo campanhas do Betinho) para o segundo Brasil. Este discurso não apresentava uma estratégia antidualista de desenvolvimento nacional - uma maneira de superar a divisão do país.

Tal estratégia exigiria que se consolidasse uma vanguarda produtiva e tecnológica voltada para as necessidades tanto de produção quanto de consumo da retaguarda econômica. Requereria, também, que o governo central encontrasse uma maneira de fazer parceria com empresas privadas que, pelo cunho descentralizado, experimentalista e participativo, ajudasse a levantar os pequenos e médios empreendimentos, urbanos e rurais, da nossa vasta economia marginalizada, ainda pobres em acesso ao capital, aos mercados e à tecnologia. Mesmo a política da educação pública, o ponto nevrálgico da emancipação popular, tem de preocupar-se em dar aos brasileiros do outro Brasil não um adestramento estreito em técnicas de trabalho senão uma abertura para as capacidades e práticas gerais que permitem ao indivíduo ascender.

Mas não foi nada disso que o PT ofereceu ao país. O programa, em suas sucessivas versões, foi uma obra típica de grupos de trabalho, preocupados em catalogar uma enciclopédia de políticas setoriais que resumem, como os progressistas bem pensantes do país encaram, o politicamente correto. Faltou-lhe um cerne estrutural que o país pudesse captar. E quando se exigiam dos candidatos uma definição clara das mudanças estruturais pretendidas, respondiam com acenos a uma política de estilo gandhiano, tipo ajuda às indústrias artesanais no Norte e no Nordeste. Todo o mundo percebe que não é esta uma resposta para valer; é uma confissão de malogro imaginativo.

Daí não ter sido surpreendente que pensadores conhecidos do PT e do PSDB trocassem amabilidades pela televisão e reconhecessem as numerosas semelhanças entre seus respectivos programas. Não surpreendente porém desmoralizador para os que buscamos uma alternativa verdadeira ao ideário hegemônico.

A língua franca da política brasileira virou o vocabulário social-democrata: retirada do Estado das atividades produtivas, com reserva de setores "estratégicos", e políticas sociais compensatórias para contrabalançar o efeito desigualizador da economia de mercado. Como esta visão deixa de propor uma forma estrutural diferente e igualizadora para a economia de mercado, como ela se cala sobre as formas específicas de parceria entre o Estado e as empresas privadas, ela não ameaça ninguém e pode ser abraçada por todos. O discurso do "apartheid social" confundiu-se com este vocabulário político dominante.

Este não é um erro superficial. Ele está, pelo contrário, enraizado na vida interna do PT e nas atitudes de suas lideranças maiores. Organizam-se as tendências internas do PT num espectro de radicalização progressiva das reivindicações redistribuidoras. É como se os mais moderados (e "modernos") dissessem, como disse Fernando Henrique Cardoso, somos nós o viável, enquanto que os mais radicais protestassem, somos nós que queremos a redistribuição para valer mesmo à custa de amedrontar as classes proprietárias. O grave é que nem os mais radicais oferecem uma proposta que fundamente este distributivismo mais ou menos afoito numa concepção produtiva. Apenas compartilham a mesma confusão típica da esquerda mundial: desencanto com o estatismo, insatisfação com as políticas sociais meramente compensatórias e valorização de uma prática organizadora, como se tal prática pudesse substituir a definição de rumos claros.

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Para formular de modo abrangente a proposta programática que faltou na campanha de 1994 vale a pena tomar como pontos de partida de um lado a situação mundial da esquerda e, de outro, as oportunidades específicas que o governo de Fernando Henrique Cardoso abrirá para as esquerdas brasileiras.

Em todo o mundo, rico ou pobre, a esquerda permanece desorientada buscando um caminho que substitua o mero estatismo sem cair no conservadorismo institucional nem se restringir às políticas de ajuda e investimento sociais. Em toda a parte a realização desta tarefa depende do êxito que se tiver em fundamentar as reivindicações distributivistas numa reconstrução do sistema da produção e da estratégia do desenvolvimento. Sem que se cumpram estas condições não há a menor possibilidade de oferecer uma alternativa atraente e viável ao projeto político-econômico que é hoje hegemônico no mundo e que se convencionou chamar o Consenso de Washington: o programa da estabilização sem ameaça aos credores do Estado, da liberalização parcial, da privatização radical e das políticas sociais compensatórias.

Quando se procura executar este projeto hegemônico numa sociedade muito desigual como a nossa, a execução é seletiva e truncada. Do contrário, deixaria de ser politicamente viável. Afinal, tomado ao pé da letra e radicalizado, o projeto feriria muitos dos interesses que supostamente o sustentam: a liberalização incondicional implicaria combate aos oligopólios e promoção das pequenas empresas enquanto que as políticas sociais compensatórias, levadas à dimensão necessária à sua eficácia, exigiriam a imposição às classes proprietárias de um ônus tributário incompatível com a manutenção do seu padrão de vida atual. Por isso, mesmo, uma execução radical do Consenso de Washington requereria para sustentá-lo uma base popular ampla e exigente. Só que esta base não se resignaria ao projeto tal como convencionalmente formulado. Insistiria numa democratização mais rápida e clara do poder econômico, político e cultural do que o Consenso de Washington faculta.

Deste raciocínio resulta a conclusão de que o programa do Consenso de Washington é, embora hegemônico, confuso e instável. Não há, nas condições de uma sociedade desigual, um projeto político consistente que corresponda ao seu projeto econômico. Se ele for executado seletivamente para atender aos interesses dominantes, mantém e aprofunda o dualismo, transformando os ainda excluídos em inimigos políticos potenciais. Se ele for executado radicalmente, a base popular que possibilitaria sua radicalização também acabaria por redefini-lo.

Este dilema prenuncia tanto a direção do governo de Fernando Henrique Cardoso quanto a natureza do terreno em que as esquerdas brasileiras terão de enfrentá-lo. Será um governo do Consenso de Washington seletivo: se mais seletivo ou menos seletivo depende essencialmente da vontade e da capacidade do novo presidente em impor-se aos seus aliados políticos e aos seus quadros de tecnocratas. Oferecerá um trato ao empresariado brasileiro: aceitem mais concorrência estrangeira em troca da oportunidade de enriquecer, e de deixar que o governo enriqueça, com a privatização do setor público. Procurará desenvolver as políticas de ajuda e investimento sociais e organizar a previdência na estrita medida em que se possa financiar com um nível de tributação compatível com o padrão de vida gozado pelas classes aquinhoadas. Tomará iniciativas vistosas de ativismo e autonomia nacionais no plano da política externa enquanto trata de desmontar de fato os resquícios da nossa rebeldia nacional contra a nova ordem mundial e o ideário que nela se tornou dominante.

A alternativa que faltou na campanha de 1994, e que será necessária no confronto com o novo governo, tem de insistir na idéia da democratização simultânea do Estado e da economia de mercado. A economia democratizada de mercado num Brasil que deixou de ser dualista deve ser o seu compromisso norteador. Para afirmá-lo, o PT precisa desmontar o discurso corporativo- assistencial em que se viciou.

No lugar da idéia da negociação entre os grandes interesses organizados do primeiro Brasil, o que importa é a guerra contra os privilégios e os oligopólios e a formação de parcerias descentralizadas e participativas entre os governos e as firmas privadas. A preocupação central destas parcerias deve ser a de consolidar, dentro e fora do setor público, uma vanguarda econômica, tecnológica e cultural que atenda às necessidades de produção e de consumo da nossa vasta retaguarda econômica. No lugar do enfoque na miséria e na insegurança do povão - que todas as forças políticas brasileiras alegam compartilhar - o que importa é propor um sistema tributário e uma reconstrução das relações entre governos e empresas que comprimam de forma duradoura a hierarquia dos padrões de vida e libertem o dinamismo experimentalista do povo brasileiro.

Estes substitutos do discurso corporativo e assistencial precisam, por sua vez, repousar numa visão clara das exigências essenciais da emancipação cultural do povo e da mobilização popular institucionalizada e permanente. Esta visão opõe-se, dentro das esquerdas e do PT, à contrapartida política do discurso corporativo-assistencial: o gosto pelas causas jurídico-liberais - parlamentarismo, pluralismo sindical e voto facultativo. Em condições tão desiguais como as nossas, a promoção destas causas significaria dar ao primeiro Brasil um microfone e ao segundo uma mordaça. Não há política de mudança estrutural que não seja uma política de alta energia. O problema é identificar e estabelecer as instituições que dêem sobrevida e normalidade ao que de outro modo seriam momentos efêmeros de entusiasmo e esperança. Não haveremos de encontrá-las na agenda tradicional do liberalismo.

Emancipação cultural do povo significa investir na educação pública que seja não só acessível a todos, mas também acessível a todas as idades e que ponha a conquista de capacidades de fazer e apreender no lugar da memorização passiva. Significa também propor alternativas aos oligopólios da informação e da diversão que não regridam a fórmulas estatistas.

Mobilização institucionalizada e permanente do povo requer, num primeiro passo, diminuir abruptamente a influência do dinheiro sobre a política pelo financiamento público das campanhas eleitorais. Exige transformar o presidencialismo brasileiro numa máquina para a prática freqüente de reformas estruturais. O caminho para isso é manter a grande alavanca desestabilizadora da eleição presidencial enquanto se criam os mecanismos, tais como plebiscitos ou referendos e poderes de convocação de eleições antecipadas, que engajem o eleitorado na pronta resolução dos impasses de poder.

O bloqueio imaginativo que continua a negar ao PT clareza sobre um programa transformador como este está ligado ao problema congênito e central do partido: a ambivalência sobre o papel dos organizados num mundo de desorganizados e sobre o destino do primeiro Brasil - o Brasil arrumado e europeizado - dentro do Brasil todo.

As tendências internas do PT são, de forma geral, irrelevantes ou antagônicas à tarefa de imaginar e sustentar um tal programa. Estão em outra, preocupadas em moderarem ou extremarem o discurso redistributivista. Continuam, portanto, mais ou menos eqüidistantes dos problemas reais do país. Tanto sabem e sabiam disso as lideranças nacionais do PT que, no auge das pesquisas favoráveis, davam a impressão de que tanto tinham medo de ganhar quanto tinham medo de perder as eleições de 3 de outubro de 1994.

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Falhas de visão programática estão na raiz do segundo conjunto de erros cometidos pelo PT na campanha de 1994 - erros de estratégia. Os equívocos estratégicos são graves justamente porque não resultam de cálculos casualmente enganados; vinculam-se à desorientação programática.

Uma reflexão sobre a estratégia da campanha de 1994 deve começar com um esforço para resolver um paradoxo aparente. De um lado, acusa-se o PT de não ter cultivado alianças e de ter se isolado na luta pelo poder central. Os apelos aos partidos nanicos da esquerda e aos dissidentes do PDT e do PMDB apenas confirmam a realidade do isolamento ao qual não ofereciam uma alternativa substancial. De outro lado, porém, o PT também conduziu uma política de busca sistemática da respeitabilidade. No início da campanha, Lula deu sinais de que repetiria o erro estratégico de Brizola no começo da campanha de 1989: conduzir-se como se já fosse capitão do povo e se pudesse dar ao luxo de negociar os vetos das elites. É uma concepção que confunde fatalmente duas fases da luta: primeiro é preciso ganhar para depois, numa posição de força, negociar.

Foi assim que, meses a fio, ficou o PT negociando com o PSDB, um partido que, conforme dizem seus dirigentes a quem tivesse ouvidos para ouvir, queria desde o começo apresentar-se ao país como a alternativa providencial ao PT. Foi assim que se sucederam numerosas conversas com empresários nas quais as recaídas de autenticidade se revezavam com os protestos de confiabilidade. Foi assim que o candidato viajou aos Estados Unidos e à Alemanha para assegurar aos americanos e aos alemães que, no fundo, só queria resolver o problema dos pobres e que nada tinham a temer dele. Foi assim que na hora do programa de televisão prevaleceu a estética da sofisticação e do xarope, fazendo com que Lula aparecesse, desde as palavras até o terno, como um candidato produzido. Com a notável exceção das caravanas - a inovação mais importante da campanha - conduziu-se o PT como se estivesse decidido a dar credibilidade à pirraça de Darcy Ribeiro: a esquerda de que a direita gosta. Ao que se poderia acrescentar: gosta mais não vota.

Como, então, acusar o PT simultaneamente de se haver isolado e de se haver entregue à busca inútil do charme e da cordialidade? As duas coisas não só são compatíveis como também se reforçam reciprocamente. Por não haver sabido ampliar a unidade no plano das forças de esquerda e das classes trabalhadoras e pequeno-burguesas, o PT procurou um substituto desta unidade na campanha pela respeitabilidade. Esta campanha, porém, estava e está fadada a malograr, bloqueando ainda mais o caminho da unidade popular sem render os resultados práticos esperados.

Ampliação da base popular significa em termos sociais a abertura ao Brasil majoritário e não-corporativo e o distanciamento arrojado dos interesses e dos preconceitos do Brasil corporativo. Ampliação da base popular significa em termos de idéias o abandono do discurso corporativo-assistencial e sua substituição por um discurso de reconstrução institucional como aquele que antes esbocei. Ampliação da base popular significa em termos políticos e partidários a busca da fusão com os segmentos da esquerda brasileira que contestam o PT, especialmente o PDT, e a imposição de disciplina partidária às seções regionais do PT que dificultem esta união.

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Pior ainda do que para o PT, foi a eleição de 1994 para o PDT. Não é só que Brizola, o nosso patriota mais intransigente, houvesse afundado, sem saber furar o bloqueio da mídia nem reinventar uma mensagem de que o país cansou. É que, como resultado do pleito, três tendências ganharam força no PDT: a tendência dos oportunistas deslumbrados, a tendência dos conservadores honestos e a tendência dos conservadores bandidos. Nada disto, porém, deve alegrar o PT. Não só ajudou a negar à esquerda um segundo turno presidencial como também, e sobretudo, complicou o caminho indispensável da convergência.

Se o PDT não existisse seria preciso inventá-lo. Originando-se numa encarnação histórica anterior do mundo corporativo-estatal a que o PT continua agarrado, ele avançou lentamente em direção ao outro Brasil: o Brasil do povão desorganizado e das pequenas classes médias patrióticas, ressentidas e marginalizadas. Por isso mesmo, cultivou preocupações que o PT subordinou: com a autonomia da Nação e do projeto de desenvolvimento, com o uso do Estado e do setor público para atacar o dualismo e com a emancipação cultural do povo, vitimado pela ignorância e pela televisão. Por isso mesmo, também, permaneceu imune à propaganda jurídico-liberal do pluralismo sindical, do parlamentarismo e do voto facultativo, que perigosamente seduziu as lideranças do PT.

O problema hoje é que temos duas esquerdas, exprimindo confusamente uma divisão social e cultural que a esquerda brasileira unida deveria ter por tarefa superar. Por estarem contrapostas, as duas esquerdas acabam sendo partes do problema em vez de serem partes da solução. Agora precisamos de magnanimidade e clarividência para aprender a lição penosa dos fatos.

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Que fazer?
Primeiro, dissolver todas as tendências internas constituídas do PT. Estão organizadas em torno de um equívoco, que é o grau relativo de moderação e radicalismo nas reivindicações redistribuidoras. Dentro desta carroceria falta a máquina, que é o projeto de reconstrução institucional e de crescimento econômico. Ademais, tal como hoje praticadas, estas tendências ajudam a compor o clima da política estudantil a que o país tem ojeriza.

Segundo, distanciar-se dos compromissos corporativos desde o discurso das câmaras setoriais até a intimidade irrestrita com os sindicatos pequeno- burgueses de funcionários públicos e de operários relativamente privilegiados.

Terceiro, desenvolver uma alternativa clara ao discurso corporativo- assistencial: um discurso que, como a argumentação anterior exemplifica, enfrente o dualismo e responda às exigências do Brasil não-corporativo, que quer um futuro diferente da assimilação ao Brasil corporativo.

Quarto, aprofundar a prática organizadora, mas sem deixar que substitua as propostas feitas para uma sociedade que continuará a ser, como são todas as sociedades, desigualmente organizada e sem esquecer a advertência de Oscar Wilde de que o problema do socialismo é que tem reunião demais.

Quinto, cultivar lideranças nacionais, eventualmente capazes de substituírem Lula, que não se enquadrem em nenhuma das duas categorias seguintes: 1) a esquerda de que a direita gosta ("modernos", linguagem vaga social-democrata, gosto pelo parlamentarismo e outras causas do udenismo de esquerda); 2) a esquerda de que a esquerda gosta (caretas, estatistas que perderam fé no Estado, políticos estudantis envelhecidos). Procurar a esquerda de que o povão e os assalariados possam gostar. As preferências do próprio Lula devem pesar quase nada.

Sexto, buscar imediatamente a fusão com o PDT e atacar de frente os que dentro do PT de cada estado da federação sacrificam a causa nacional ao jogo das rivalidades e dos preconceitos.

Impossível? Claro que é impossível. Porém, é necessário. Quando o necessário é impossível, o jeito é buscar a melhor aproximação que as circunstâncias, empurradas por uma vontade forte, possam permitir.

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Se o raciocínio parasse aí, numa série de críticas e de propostas, estaria ainda faltando o essencial, que só a generosidade no julgamento pode revelar. A campanha de 1994, que terminou em desapontamento para a esquerda e que revelou a vulnerabilidade persistente do povo brasileiro, foi, apesar de tudo, um momento esclarecedor na história do país.

Há duas maneiras que uma política transformadora se pode desvirtuar. Uma é entregar-se inteiramente à máxima de Bismarck, segundo a qual a "política é a arte do possível". Quem respeita sempre os limites do possível e cultiva a imagem do realista acaba prisioneiro do sistema atual de interesses e preconceitos. Submete-se, como têm feito a generalidade dos partidos socialistas e trabalhistas nas democracias ricas do Ocidente. Procura apenas humanizar a ordem existente. Não tenta reinventá-la. Mas quem perde contato com as realidades refratárias e obscuras desorienta-se no vácuo das utopias soltas. Foi o que fizeram, no decurso do século XX, as esquerdas sectárias e revolucionárias. São poucos os exemplos que temos tido no século XX de uma esquerda que, percorrendo o caminho estreito entre estes dois perigos contrapostos, haja insistido em testar os limites do possível. O PT - não o PT das reivindicações corporativas, do discurso corporativo-assistencial e das simpatias criptoliberais, senão o PT das caravanas e da prática organizadora - tem sido um destes exemplos.

Por isso, o PT já demonstrou que tem potencial para transformar o país. Dissipará este potencial se não se transformar em si mesmo.

Roberto Mangabeira Unger é professor de Direito na Universidade e Harvard e membro da Academia Americana de Artes e Ciências, é filiado ao PDT.