Política

Os resultados das urnas mostram que se antes o PT era uma perspectiva de poder, agora é um fator real

I. Num cenário de aparente pouca lógica, o imediato pós-eleição vem sendo pautado por frenéticos, continuados, obsessivos acenos dos vitoriosos em direção aos derrotados. Alguém privado de notícias do Brasil que de repente ponha as mãos sobre os jornais das semanas que se seguiram ao 3 de outubro acreditará estar tomando contato com um país do absurdo. Certo candidato a presidente ganha as eleições já no primeiro turno, com o dobro dos votos do segundo colocado, e boa parte do espaço de mídia é gasto com especulações sobre qual será a atitude do vencido em relação ao vencedor.

É usual que notícias sobre perdedores não sobrevivam por mais de 72 horas após uma eleição. Por que desta vez está sendo diferente?

Porque os números saídos das urnas vão delineando uma realidade menos cor-de-rosa do que imaginavam colher as forças políticas e econômicas aglutinadas em torno de Fernando Henrique Cardoso (FHC). A jogada esperta do real obteve resultados apenas parciais. Ok, evitou-se a vitória de Lula. Entretanto, uma vista sobre o mapa político construído em 3 de outubro mostrará as limitações a que o tradicional condomínio das classes dominantes exerça livremente seu poder nos próximos quatro anos.

Os resultados finais provam que as energias mobilizadas para eleger FHC não foram suficientes para "verticalizar" a vitória do tucano. Ampliou-se a pulverização nos estados, com a necessidade de segundo turno para a escolha dos principais governadores. O redesenho do Congresso Nacional, em particular da Câmara dos Deputados, já mostra que possíveis reformas desejadas por FHC só serão viáveis se sustentadas numa articulação política que inclua adversários da coligação PSDB-PFL-PTB. O que terá, necessariamente, seu custo.

II.Antes de continuar especulando sobre o futuro, algumas observações sobre a eleição. Aliás, é positivo notar que o debate na esquerda tem procurado passar ao largo da histeria sectária que os adversários do PT esperam - e estimulam. A maioria do partido e das forças coligadas vem evitando o criticismo autofágico. Outro sinal de amadurecimento é a renúncia quase geral ao velho truque de pinçar dados parciais da realidade para "demonstrar", pela negação do que se experimentou, o "acerto" de teses que, derrotadas na discussão, nunca passaram pelo teste da prática1.

Verdade que alguns argumentos simplistas aparecem aqui e ali. Por exemplo, o de que nossos resultados não foram melhores devido a um perfil supostamente "radical" de programas e candidatos, e de uma hipotética rejeição a alianças. Mas como explicar, então, os fracos desempenhos do candidato a governador no Rio de Janeiro e da coligação com o PSDB na Bahia? Como encaixar nessa lógica o ótimo desempenho da candidata ao Senado em Santa Catarina? Como enquadrar nessa moldura o crescimento exponencial das nossas chapas no Rio Grande do Sul e no Distrito Federal na reta final do primeiro turno?

Outra tese: o real teria conseguido apoio maciço entre os pobres, os "sem conta" (bancária), que nos deixaram falando sozinhos e se tornaram a principal base de sustentação de FHC. Tese falsa, como mostram os primeiros perfis do voto já divulgados pela imprensa. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o apoio a Lula, a Zé Dirceu e ao PT, assim como os votos brancos e nulos, cresce conforme o foco se desloca das áreas mais ricas para as mais pobres, repetindo, grosso modo, o segundo turno das eleições para a Prefeitura, dois anos atrás2.

O plano antiinflacionário é assunto que pede prudência. Pode ter havido erro na avaliação dos efeitos econômicos do real e certamente subestimou-se o efeito da estabilidade monetária sobre o comportamento do eleitor. Mas nada autoriza a concluir que, evitadas essas falhas, o quadro teria se alterado substancialmente a nosso favor. Lembremo-nos de que Lula começou a cair nas pesquisas antes não apenas de qualquer tomada de posição do partido sobre o plano, mas antes mesmo do lançamento do real. Quem tentou embarcar tardiamente na canoa (como o candidato do PMDB ao governo de São Paulo) colheu resultados patéticos nas urnas. E o que dizer de Antônio Britto, cuja queda começou bem no momento em que sua candidatura se vinculou à de FHC?3

III. Maior atenção deve ser dada às razões estruturais da derrota. Em primeiro lugar, a debilidade das ligações orgânicas do partido e de seus políticos com as classes sociais potencialmente mais interessadas na implantação de um programa de governo como o da Frente Brasil Popular. Não se trata de subestimar a contribuição do PT para a inclusão das maiorias oprimidas de nosso país no mercado de consumo e nas esferas da cidadania. Mas, e as eleições mostraram isso, tais esforços ainda não resultaram nacionalmente em vínculos tão sólidos que sejam capazes de resistir a vendavais como o do real.

Historicamente, a principal fonte desses vínculos são os movimentos sociais (em particular os sindicatos), um patrimônio que deve ser a todo momento cuidado e ampliado. Essa luta esteve, está e estará no centro das atenções de todos os que sonham com um Brasil mais justo e democrático. Mas para torná-la qualitativamente mais eficaz seria necessário articulá-la melhor com o exercício do poder político e administrativo pela esquerda. Isso é particularmente vital num contexto em que as classes dominantes conseguem, ainda que à custa do recurso à social-democracia, conter a desagregação de sua hegemonia, conseguem tornar o Estado menos suscetível à pressão dos movimentos populares.

Outro dado a ser pesado é a fraqueza operacional que o PT e a esquerda demonstraram nas eleições. Em poucas palavras, não se montou uma máquina compatível com a potencialidade eleitoral. A falta de dinheiro, menos que uma desculpa, é mais uma evidência dessa fraqueza. Quando Lula começou a cair nas pesquisas e os grandes financiadores de campanhas passaram a jorrar recursos para FHC, o partido não conseguiu buscar na sua base social e política o dinheiro necessário para enfrentar - ainda que em desvantagem - a conjugação de máquinas (governamental, de mídia e financeira) armada do outro lado. Este aspecto guarda, evidentemente, uma relação estreita com o descrito no parágrafo anterior.

Detalhe importante é que a fraqueza estrutural deixou os candidatos do PT e partidos coligados à mercê das pesquisas eleitorais controladas pelos adversários. Nas eleições para governador este ponto causou enormes prejuízos, pois difundiu-se até a véspera da votação a certeza de que não haveria segundo turno na maioria dos estados, inclusive e principalmente nos mais importantes.

A situação política interna do PT também merece atenção específica no balanço das causas da derrota. A falta de uma hegemonia nítida, de um centro capaz de articular de modo permanente a maioria, arrastou o partido a uma situação de profunda instabilidade interna, de guerra civil, para a qual os adversários externos nunca deixaram que faltasse munição. Em vários lugares, esse cenário resultou no abandono de candidatos majoritários que enfrentavam dificuldades e na dispersão das candidaturas proporcionais. No salve-se quem puder geral, foi abortada a tradicional capacidade de reação petista em reta final de eleição.

Sobre a tão discutida política de alianças, parece evidente que ela mostrou pouca flexibilidade. A rigidez da tática de acordos preferenciais com o PSDB solapou as condições para que, consumada a alternativa FHC, o PT pudesse buscar acordos com o PDT e o PMDB. Quando se tentou operar uma mudança de rota, já era tarde demais. Não que faltasse tempo cronológico. Politicamente, o PT estava de tal forma enrodilhado no movimento antibrizolista e antipeemedebista insuflado pela mídia que qualquer alteração de rumos seria inviável. Um detalhe no caso do PMDB é que as correntes que se imaginava estarem potencialmente mais próximas do PT foram as primeiras a aderir ao adversário.

IV.De volta para o futuro, na busca dos novos caminhos que permitam chegar lá, é preciso partir da situação concreta nascida das eleições. Mesmo derrotados no projeto maior, obtiveram-se importantes vitórias parciais nos legislativos e na disputa dos executivos estaduais (independente até dos resultados do segundo turno). Se antes do 3 de outubro o PT e a esquerda eram uma perspectiva de poder, agora são um fator real para qualquer cálculo político em grande escala. Se é verdade que o PT não conseguiu um mandato para moldar o Brasil de acordo com seu projeto, nossos adversários tampouco obtiveram uma procuração para implantar a ferro e fogo a proposta neoliberal.

Eis o desafio hoje: operar a entrada definitiva do PT e da esquerda no jogo real do poder sem abdicar dos objetivos estratégicos, destacadamente a conquista do Executivo central. Um exemplo prático imediato são os segundos turnos estaduais. Em vários dos mais importantes estados do país o PT deverá ser não somente a força definidora da eleição, mas também o fiel da balança no Legislativo para que os governadores eleitos executem ou não seus programas.

A nova situação abre enormes possibilidades, mas também grandes tentações. O adesismo desenfreado precisaria ser evitado na mesma escala em que se combatem as tendências a um isolacionismo estéril. Exemplo é o real. O eleitorado manifestou claramente nas urnas a vontade de que a inflação continue baixa? O PT pode mobilizar seu peso específico e articular a sociedade com o objetivo de jogar a política antiinflacionária nas costas dos ricos. Para evitar que se firam os direitos dos trabalhadores, da ativa e aposentados. Para impedir uma centralização orçamentária que enfraqueça principalmente os municípios.

E assim em outros campos. O preconceito contra Lula e o PT foi largamente utilizado e estimulado pelos adversários na campanha eleitoral. Por onde começar a demoli-lo? Resultados como o do Rio Grande do Sul e do ABC mostram como o sucesso administrativo do PT ajuda a reduzir as taxas de rejeição não apenas do partido, mas de seu líder maior. Uma atenção especial precisaria ser dada ao poder local, sempre negligenciado, ainda mais se considerarmos que o calendário marca para daqui a dois anos eleições municipais em que o PT e a esquerda podem se enraizar por todo o país. Eleições cuja importância cresce à medida que se consolida a tendência à distritalização do voto proporcional.

Quatro anos é muito tempo. Com serenidade, firmeza e unidade, nada impede que entremos em 1998 mais fortes e amadurecidos. A força e a maturidade de que precisamos para, finalmente, ver Lula e o povo brasileiro chegando lá.

Alon Feuerwerker é jornalista.