Internacional

Balanço das eleições no continente mostra que a esquerda não conseguiu marcar posição, como o esperado

Este era para ser o grande ano da esquerda na América Latina. Além do entusiasmo provocado pelas chances eleitorais de Lula no Brasil, havia intensa torcida pelo mexicano Cuauhtémoc Cárdenas, do Partido Revolucionário Democrático (PRD), que se preparava para disputar, em agosto, a Presidência que lhe foi roubada através da fraude em 1988. Outra promessa era o M-19, a grande novidade política na Colômbia dominada pelo bipartidarismo. Fichas eram apostadas também em El Salvador, com a estréia eleitoral da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN). Todos esses partidos participam do Fórum de São Paulo, articulação internacional que tem no PT um dos seus principais organizadores.

A esperança de triunfo da esquerda em um ou mais países latino-americanos não se baseava apenas na vontade, mas numa série de fatos que, vistos em conjunto, sugeriam o esgotamento da maré conservadora dos últimos anos.

Na Argentina, a insatisfação com as mazelas sociais causadas pelo Plano Cavallo explodiu em 1993 com uma sucessão de distúrbios nas províncias, culminando, em dezembro, com o incêndio do palácio do governo por manifestantes em Santiago del Estero.

No México, a inauguração do Nafta (o acordo de livre-comércio com os Estados Unidos e o Canadá), no dia de Ano Novo, coincidiu com a revolta de guerrilheiros "zapatistas " na província de Chiapas. O levante, um suicídio do ponto de vista militar, despertou a atenção para o "outro México", pobre e atrasado, que se oculta atrás da vitrine cintilante do Nafta.

Na Venezuela, em dezembro do ano passado, um partido de origem sindical bastante semelhante ao PT, a Causa Radical, teve um excelente desempenho numa eleição cujo resultado, de qualquer maneira, foi de rejeição do projeto neoliberal.

No embalo desses fatos, aos quais veio se juntar a eleição de Nelson Mandela como presidente sul-africano, chegou-se a cogitar, nos meios petistas, a formação de um "pólo alternativo" à hegemonia mundial dos Estados Unidos, a partir dos governos de esquerda no Brasil, México e África do Sul (na realidade, a última coisa que Mandela deseja é criar atritos com os Estados Unidos, de cujos investimentos depende desesperadamente para reerguer seu país).

A dois meses do final do ano, a esquerda só está no poder em dois países da região: Cuba, onde se avolumam os sinais de desespero com a situação econômica e de descontentamento com o regime de Fidel Castro, e Haiti, com o retorno do presidente Jean Bertrand Aristide garantido - suprema ironia - por uma intervenção americana. A chance de uma vitória nas urnas está restrita ao Uruguai, onde há um empate técnico entre os três principais candidatos a presidente nas eleições de 27 de novembro: o ex-presidente Julio María Sanguinetti ("colorado"), Alberto Volonté ("blanco") e, à esquerda, o prefeito de Montevidéu, Tabaré Vásquez, da Frente Ampla, que se ampliou ainda mais incorporando democrata-cristãos e dissidentes "blancos " para formar a coligação Encontro Progressista.

No resto do continente, as notícias foram, quase sempre, decepcionantes. Veja, a seguir, um balanço do desempenho eleitoral da esquerda latino-americana em 1993/94.

Bolívia

As eleições de junho deram a terceira vitória consecutiva aos defensores do neoliberalismo, que continuam a colher os frutos da estabilização econômica de 1985. O novo presidente é justamente o arquiteto do plano que derrubou a inflação de inacreditáveis 24.000% (no último ano do governo de Siles Zuazo) para apenas 3,5% nos doze meses anteriores à eleição: Gonzalo Sánchez de Lozada, ou Goni, como é conhecido. Para se ter uma idéia do quadro político boliviano, basta dizer que o principal adversário de Goni foi o ex-ditador Hugo Bánzer. A esquerda, outrora poderosa, é hoje irrelevante do ponto de vista eleitoral. A derrocada se explica, entre outras coisas, por sua associação com o descalabro populista pré-1985 e também pelos duros golpes sofridos pelo sindicalismo sob os governos liberais. Os sindicatos de mineiros, espinha dorsal do movimento operário, praticamente desapareceram com o fechamento das minas estatais deficitárias - dos 28 mil mineiros, 23 mil foram demitidos. O triunfo de Goni nas urnas foi ainda favorecido pelo modesto crescimento econômico do país nos últimos dois anos, depois de uma prolongada recessão. O combate à miséria é agora tema dominante no discurso oficial.

Peru

A esquerda peruana, que na década de 80 chegou a administrar a cidade de Lima, está hoje à margem da cena política, destroçada pela luta de facções e pela violenta polarização causada no país pelo Sendero Luminoso. O que restou dela se juntou, em sua maioria, ao inútil boicote organizado pela Apra (o partido populista do ex-presidente Alán García) à eleição do Parlamento que substituiu o dissolvido pelo presidente Alberto Fujimori no autogolpe de abril de 1992. Na consulta eleitoral que se seguiu, o plebiscito de setembro do ano passado, Fujimori foi surpreendido pela margem apertada de aprovação à nova Constituição - 53% a 47%. Mesmo assim, o presidente conta com índices de popularidade em torno de 60% e é o favorito para a reeleição em 1995, apesar das brigas públicas com a mulher, Suzana, que também quer ser candidata. A alternativa ao casal Fujimori não é das mais animadoras: Javier Pérez de Cuéllar, ex-secretário-geral da ONU, cargo em que se notabilizou pela subserviência aos Estados Unidos. O prestígio de Fujimori é fruto de sua vitória contra aquilo que a maioria dos peruanos considera como os dois maiores inimigos do país: a inflação e o senderismo.

Chile

A grande particularidade da política chilena atual é presença dos socialistas - os herdeiros do partido de Salvador Allende - numa aliança de governo com os democrata-cristãos que mantém, em suas linhas básicas, a política econômica neoliberal introduzida sob Pinochet. O apoio popular a essa política pode ser medido pela impressionante votação do democrata-cristão Eduardo Frei na eleição presidencial de dezembro: 58%, contra 24% do conservador Arturo Alessandri. A oposição de esquerda, liderada pelo Partido Comunista, obteve 4,5% dos votos para seu candidato, o padre Eugenio Pizarro. Frei promete dar prioridade ao resgate da "dívida social" para com os setores mais pobres, sem abrir mão da estabilidade macroeconôrnica que viabilizou o espetacular crescimento do Chile nos últimos anos.

Venezuela

É o país onde a esquerda tem obtido seus melhores desempenhos nos últimos anos. É, também, aquele onde a implantação da receita neoliberal tem causado maior turbulência ("caracaço", golpismo militar, impeachment de Carlos Andrés Pérez). A Causa Radical (ou Causa R), que já havia conquistado a Prefeitura de Caracas, em 1992, disputou com chances a Presidência em dezembro de 1993, através da candidatura de Andrés Velásquez, líder sindical de grande prestígio e governador reeleito do Estado de Bolívar. Foram eleições históricas, que quebraram o controle da política por dois partidos - o Nacional e o Copei - que dominam o poder desde 1958. O vencedor, com 30% dos votos, foi o ex-presidente Rafael Caldera, um dissidente do Copei que concorreu à frente de uma coligação de 17 agremiações, entre as quais o Movimento ao Socialismo (MAS), um importante partido reformista de centro-esquerda.

Tanto a candidatura de Caldera quanto a de Velásquez tinham como questão central o combate à corrupção e à linha neoliberal do governo de Pérez. Velásquez teve 22%, quase o mesmo percentual dos candidatos do Partido Nacional e do Copei, mas sua campanha ajudou a Causa R a eleger uma forte bancada parlamentar: 49 deputados, num total de 198. O crescimento da Causa R, no entanto, não pode ser atribuído a uma opção classista ou ideológica. Foi, em grande medida, um protesto contra os partidos tradicionais, corruptos e ineficientes.

El Salvador

As eleições de março/abril marcaram a incorporação da FMLN à política institucional salvadorenha, culminando o processo de negociação que pôs fim a doze anos de guerra civil. Os ex-guerrilheiros se uniram com os social-democratas na Convergência Democrática.

Seu candidato presidencial, Rubén Zamora, perdeu para o governista Armando Calderón Sol, da Aliança Republicana Nacionalista (Arena), de direita. Zamora teve 26% dos votos no primeiro turno, contra 49% de Calderón Sol, que no segundo turno alcançou os 68%. Embora derrotada, a coligação de esquerda firmou-se como a segunda força política do país, numa eleição marcada pela fraude e pelo assassinato de muitos de seus militantes por esquadrões da morte de extrema-direita.

Argentina

O presidente Carlos Menem levou seu primeiro susto nas urnas, depois de triunfar - graças à estabilidade econômica - em todas as eleições que disputou durante sua Presidência, sempre com mais de 45% dos votos. O peronismo ganhou as eleições para a Convenção Constituinte, em abril, com 38% dos votos, mas foi uma vitória com sabor de derrota. Primeiro, porque o resultado ameaça os planos de Menem de se reeleger, em maio de 1995, com uma votação arrasadora já no primeiro turno. Segundo, pelo surgimento de uma alternativa à esquerda, a Frente Grande, que reúne dissidentes peronistas, social-democratas, comunistas e independentes. Sob a liderança de Carlos "Chacho" Álvarez, um deputado peronista que passou para a oposição em protesto contra o indulto do governo aos ex-comandantes da ditadura militar, a Frente Grande recebeu 2 milhões de votos no país inteiro (13% do total), ganhou na capital federal e ficou em segundo na província de Buenos Aires, o distrito eleitoral mais importante da Argentina. A União Cívica Radical teve a votação mais baixa de sua história (23%) e mergulhou numa crise interna da qual dificilmente se recuperará até as eleições do ano que vem.

O projeto de Álvarez é chegar ao segundo turno e derrotar Menem com o apoio da ala esquerda do radicalismo.

Cauteloso, o líder da Frente Grande promete manter as conquistas da estabilização e não mexer nas privatizações, ao mesmo tempo em que levanta as bandeiras que tradicionalmente pertenceram ao peronismo, como a da justiça social. Suas maiores debilidades são a falta de uma estrutura partidária nacional e, sobretudo, a inexistência de uma plataforma econômica clara. Espertamente, Menem explora o trauma da hiperinflação do final do governo de Raúl Alfonsín para se apresentar aos argentinos como o fiador da estabilidade. "Ou eu ou o caos" é a mensagem que tenta passar aos eleitores. É, por enquanto, o grande favorito.

Colômbia

As esperanças suscitadas pelos êxitos anteriores do M-19, organização de origem populista que em 1989 abandonou a luta armada, deram lugar a uma amarga frustração. Nas eleições presidenciais de 1990, o movimento surpreendeu com a expressiva votação (12,4%) do seu principal dirigente, Antonio Navarro Wolf, que logo depois integrou o governo do liberal Cesar Gaviria como ministro da Saúde. Em 1991, na eleição da Assembléia Constituinte, o M-19 teve um desempenho ainda melhor. Com uma lista de candidatos repleta de personalidades (a)partidárias, conquistou 19 dos 70 lugares em disputa. Nas eleições legislativas de março de 1994, porém, o partido desabou espetacularmente, perdendo todos os lugares que havia conquistado no Congresso. No pleito presidencial, em maio, uma nova derrota: Navarro Wolf, que um ano antes havia deixado o Ministério, teve apenas 4% dos votos. O principal motivo da derrocada foi a perda de identidade do movimento ao participar do governo federal - na opinião de seus antigos simpatizantes, o M-19 passou a reproduzir os vícios tradicionais do sistema político que antes combatia.

México

Foi, provavelmente, a derrota mais grave da esquerda latino-americana em 1994. Com 16%, Cárdenas não apenas ficou muito aquém do resultado obtido cinco anos atrás, como teve uma votação inferior à do candidato conservador Diego Fernández (30%), que acabou chegando em segundo lugar. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), no poder desde 1929, ganhou mais uma vez, com os 48% dos votos para seu candidato, Ernesto Zedillo. Esperava-se que o levante "zapatista", no início do ano, favorecesse o candidato da esquerda, ao colocar na agenda da campanha temas como o poder das oligarquias rurais e o abismo social entre pobres e ricos. Aconteceu o contrário. As pesquisas revelaram um eleitorado apavorado diante do perigo de desestabilização do país, justamente no momento em que os mexicanos depositavam suas esperanças na integração econômica com os Estados Unidos. A simpatia dos militantes do PRD em relação à guerrilha foi habilmente explorada por seus adversários, que retratavam os partidários de Cárdenas como radicais interessados na discórdia e na violência. O assassinato, em março, do candidato governista Luis Donaldo Colosio acentuou ainda mais o sentimento de insegurança.

Cárdenas, num esforço para aproximar-se dos eleitores, abandonou sua oposição ao Nafta, prometendo manter o acordo e renegociar somente alguns itens prejudiciais aos pequenos agricultores ameaçados pela concorrência americana. Comprometeu-se, também, com o combate à inflação e o pagamento da dívida externa (em 1988 ele defendia o calote). Foi uma virada tardia. Também pesaram, contra a sua candidatura, a manipulação dos programas sociais do governo, o uso descarado da máquina estatal em favor do PRI e, como de praxe em qualquer eleição mexicana, pela fraude eleitoral. Desta vez, porém, as irregularidades não ocorreram numa escala tão grande a ponto de alterar o resultado final.

Conclusão

Com base na experiência de vários países nos últimos anos, é possível extrair pelo menos três conclusões.

As condições da disputa política na América Latina deixam um amplo espaço para o avanço eleitoral e eventual conquista do governo por forças políticas que consigam canalizar os anseios, amplamente majoritários, por justiça social e melhoria do padrão de vida. O fim da Guerra Fria, como assinala o cientista político mexicano Jorge Castañeda em seu livro A Utopia Desarmada, favorece a esquerda, que pode, agora, livrar-se do fardo pesado das ditaduras comunistas - um fardo que, aliás, jamais lhe pertenceu. A esquerda que cresce na região difere de suas antecessoras pela ruptura com o dogmatismo, pela estrutura interna mais aberta e pelo compromisso com as regras do jogo democrático.

A estabilidade da economia, pré-requisito para a introdução do modelo neoliberal, não é uma demanda exclusiva das classes dominantes, mas do conjunto da população, sobretudo nos países que passaram por dolorosas experiências de hiperinflação sob governos populistas. A tendência a subestimar os efeitos nefastos da inflação está presente em quase todas as recentes derrotas eleitorais da esquerda latino-americana, que só poderá se firmar como uma alternativa viável se souber responder adequadamente a esse desafio.

A experiência neoliberal na América Latina parece estar ingressando numa nova fase, em que os governos comprometidos com essa política substituem o fundamentalismo do mercado por um discurso que, sem abrir mão dos postulados do Consenso de Washington, enfatiza o papel do Estado no combate à miséria e na correção das injustiças. Em muitos países, essa preocupação vai além da mera retórica e se traduz em políticas sociais de relativa eficácia, apesar de marcadas, quase sempre, pela demagogia e clientelismo. A simples denúncia, nesses casos, pode se tornar contraproducente. O desafio da esquerda latino-americana é o de formular, com criatividade, políticas alternativas capazes de proporcionar resultados palpáveis. Disso depende o seu futuro.

Igor Fuser é jornalista, membro do Conselho de Redação de T&D.