Cultura

Em seus 63 anos de vida, o maranhense Reginaldo Fortuna nunca deixou de ser turrão e de tentar impor seus pontos de vista em tudo o que fazia

"Estou convencido de que a charge num jornal tem o mesmo peso que um editorial; ela não pode cair na vala comum da ilustração. Quem desenha na página nobre trabalha fundamentalmente com opinião, de uma maneira muito particular: a charge é mais direta que o texto. Nela, as acrobacias de estilo, em que tudo que é dito numa frase comporia um 'mas, porém, contudo, todavia' no parágrafo não tem lugar."

Estas palavras de Fortuna, falecido no último dia 5 de setembro em São Paulo, vítima de um fulminante ataque cardíaco, resumem o fundamental de sua atividade como chargista, artista gráfico, cronista e editor ao longo de 45 anos de atividade na imprensa. Em seus 63 anos de vida, o maranhense Reginaldo Fortuna nunca deixou de ser turrão e de tentar impor seus pontos de vista em tudo o que fazia. A face mais visível dessa personalidade única era o seu traço inconfundível, feito de linhas aparentemente aleatórias que escondiam por trás os desígnios de um perfeccionista.

"Eu me identifico com os modernistas, nas sua busca pelo apuro formal e na fuga do fígurativismo fácil", insistia ele.

O desenho de Fortuna foi também fortemente influenciado pela geração de cartunistas europeus surgidos na esteira do pós-guerra, como Saul Steinberg, Sempé, Bosc, André François, dentre outros. O rompimento com a caricatura clássica, quase acadêmica e a aproximação do desenho de humor com as artes plásticas desta geração seduziu Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar, Claudius, Borjalo e evidentemente Fortuna, os grandes responsáveis pela revolução ocorrida no humor gráfico brasileiro a partir dos anos 50.

Fortuna fez quase tudo. Queria ser escritor, apesar das pressões da mãe para que seguisse carreira no Banco do Brasil. Publicou trabalhos nas principais revistas e jornais brasileiros a partir do final dos anos 40, participou da mais ousada publicação que se tem noticia no Brasil, a lendária Senhor da primeira fase, foi chargista do Correio da Manhã, de 65 a 69, fundou o Pasquim, foi editor de arte da Enciclopédia Barsa, de Veja, diretor de redação de Cláudia, lançou o primeiro gibi brasileiro moderno, o Bicho, criou com Tarso de Castro o Folhetim, na Folha de S.Paulo, onde também foi chargista.

Desde 84, Fortuna ficou sem espaço na grande imprensa. Muito disso se deveu às características de seu desenho. Ele não fazia caricaturas, recusava-se a meramente ilustrar os acontecimentos sem dizer o que pensava e tinha "um gênio filho da puta", como dizia jaguar. Voltou-se para a imprensa sindical, para a edição de seus livros e para a elaboração de projetos gráficos nos últimos anos. Ensaiava, neste 1994, um retorno à grande imprensa, com a publicação de uma charge semanal na Gazeta Mercantil.

Os desenhos que publicamos na versão impressa desta matéria são da melhor safra do Fortuna chargista, entre 1964 e 1969. A maioria deles faz parte do mais contundente livro de charges já produzido em nosso país, o antológico Hay Gobierno?, editado pela Civilização Brasileira em setembro de 64. Esgotadíssimo e, inexplicavelmente, jamais reeditado - Fortuna tentou fazê-lo neste ano - o livro literalmente tritura os aspectos mais ridículos do golpe militar - prosaicamente chamado de "revolução" - em desenhos primorosos de Jaguar, Claudius e Fortuna. Outra parte dos desenhos foi publicada inicialmente no Correio da Manhã e reunida no livro Aberto para Balanço, em 1980. Dois dos desenhos, por fim, estão no livro 10 em Humor, coordenado pelo próprio Fortuna e, que além dos seus, reúne trabalhos (desenhos e textos) de Millôr, Leon Eliachar, Stanislaw Ponte Preta, Ziraldo, Jaguar, Claudius, Zélio, Henfil e Vagn. Este livro, de dezembro de 1968, foi publicado pela Editora Expressão e Cultura.

São os editoriais gráficos de que tanto falava o nosso Reginaldo.

Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista.