Economia

O IBGE divulga os primeiros resultados do Censo Demográfico de 1991 - um retrato ainda incompleto

Os resultados do Censo de 1991 vão saindo aos poucos. Desde 1940, de dez em dez anos o Brasil conta sua população. Efeito das investidas do governo Collor de Mello que desorganizaram a máquina do Estado, este foi o primeiro rompimento, em meio século, dessa série decenal. No começo de agosto, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou um primeiro esboço do retrato do país revelado pelo Censo - ainda incompleto, pois faltam os dados do Pará, que estão sendo reprocessados desde a descoberta de fraude na contagem da população em alguns municípios daquele estado.

O retrato mostra um Brasil moderno, pobre e complicado, diz o presidente da Fundação IBGE, o sociólogo Simon Schwartzman. O país tornou-se mais urbano, mais alfabetizado, os fluxos migratórios mudaram de rumo, o ritmo do crescimento populacional diminuiu e o saneamento melhorou, embora ainda continue muito ruim. Ao mesmo tempo, a marginalização de grande parte da população e a profundidade das diferenças regionais permanecem graves.

Contudo, o IBGE, o governo e as classes dominantes comemoram os resultados. Dizem que esta não foi uma década perdida. O Brasil deixou de sofrer com os problemas típicos de uma sociedade agrícola atrasada e passou a ter os problemas de uma sociedade urbana moderna, diz Schwartzman.

Um dos motivos da festa é a taxa de fecundidade de 1,9%, a menor deste século. Ela mostra que o Brasil já fez aquilo que os demógrafos chamam de transição demográfica, passando de altas taxas de crescimento para números próprios de uma sociedade moderna. "Os números mostram um país mais urbano, com população mais velha e que cresce menos rapidamente. São dados fundamentais para o desenvolvimento de políticas sociais", comemora Beni Veras, ministro do Planejamento.

"Esta redução", dizem os técnicos do IBGE, "está fortemente associada ao declínio intensificado dos níveis de fecundidade por conta do uso maciço de anticonceptivos orais, cirurgias de esterilização e práticas abortivas", confirmando velhas denúncias - das quais o antropólogo e senador Darcy Ribeiro, do PDT, se tornou campeão - de esterilização generalizada das mulheres brasileiras em idade fértil.

A transição para níveis mais baixos de fecundidade também resulta, explica o IBGE, da "mudança nos padrões sócio-econômicos e culturais da sociedade. Além disso, a rápida urbanização e a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho, aliada ao fato de que as condições de vida e reprodução das famílias exigem custos e despesas cada vez maiores, desestimulam a existência de proles numerosas".

A primeira conseqüência desse crescimento menos rápido é o envelhecimento da população. Os brasileiros com 65 anos ou mais eram 4,35% do total, em 1980, e agora são 5,06%. Ao mesmo tempo, a faixa de zero a 14 anos de idade diminuiu, percentualmente, em todos os estados. No Sudeste, metade da população tinha menos de 22 anos de idade em 1980, e agora tem menos de 25 anos - isto é, a metade mais jovem da população ficou mais velha. No Nordeste aconteceu a mesma coisa. Lá, em 1980, metade da população tinha menos de 17 anos, e agora tem menos de 19 anos.

A fuga maciça do campo é outro registro do Censo, confirmando dados das décadas anteriores. A população rural diminuiu em 22 dos 27 estados, e três em cada quatro brasileiros moram em cidades, mostra o Censo. No Sudeste, 88% das pessoas moram em cidades; no Nordeste, são 60,6% (em 1980 eram 50,5%). Número significativo está nas regiões metropolitanas - 42,6 milhões de pessoas, cerca de 1/3 do total, número semelhante ao de 1980.

As pessoas pararam de procurar as grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, e há um movimento importante de fixação regional e de redirecionamento do fluxo migratório para o interior do país. Não é por acaso que o Censo encontrou doze cidades com mais de 1 milhão de habitantes. O crescimento do Rio de Janeiro, por exemplo, caiu drasticamente, de 2,3% ao ano, em 1980, para 1,15, em 1991. No Nordeste, a tendência dos migrantes não é mais procurar as cidades grandes do Sudeste, mas sim os centros regionais. A população nordestina iniciou um movimento de fixação, diz o IBGE, e a população urbana cresceu 3,55% ao ano, taxa maior que a média global da região; paralelamente, o volume da população rural caiu em mais de meio milhão de pessoas.

Os brasileiros também ficaram mais alfabetizados - esta é outra revelação importante do Censo de 1991. Em 1980, a maioria dos chefes de domicílio era analfabeta, situação que se inverteu em 1991. Mas a região Nordeste continua em situação muito desfavorável em relação à Sudeste. No Nordeste, 37,5% das pessoas maiores de dez anos são analfabetas, contra 11,5% no Sudeste e 10,8% no Sul. Fica ainda pior quando se contrapõe os números da cidade e da zona rural. No Nordeste, na cidade, os analfabetos são 26% do total da população; no campo, a marca é ainda típica de quarto mundo: 56,7%. No Sudeste, as cidades ainda têm 9,5% na cidade, e um número alto no campo, 27,2%. Na região Sul, 8,8% dos moradores das cidades eram analfabetos, contra 18,5% no campo.

As mudanças encontradas pelo Censo revelam uma nação dividida, radicalmente, por desigualdades regionais e sociais. O Brasil é, diz Schwartzman, "um dos países com níveis mais altos de desigualdade social". "Há um contingente de pessoas que vive das sobras da sociedade". O grande problema, diz ele, é incorporar esses milhões à sociedade.

Essa desigualdade é revelada de forma eloqüente pelos dados sobre renda. No Sudeste, a renda média mensal do chefe de domicílio em 1991 era de 4,4 salários mínimos; no Nordeste, era de 1,9. Dados referentes a alguns estados selecionados mostram essa disparidade com maior clareza. A renda da metade mais pobre dos chefes de família variou muito de estado para estado. No Ceará, por exemplo, 61% tinham renda inferior a um salário mínimo. Em Minas Gerais, 65% ganhavam menos que dois salários mínimos (sendo que 42% tinham menos que um). No Paraná, 56% tinham renda inferior a dois salários mínimos (31% tinham menos que um). No Rio de Janeiro, 48% ganhavam menos que dois salários mínimos (25% ganhavam menos que um). Em São Paulo e no Distrito Federal, a metade dos chefes de família de renda mais baixa estava abaixo da marca de cinco mínimos. No Distrito Federal, eram 62% (13% tinham renda menor que um mínimo); e em São Paulo, eram 67% (12% ganhavam menos que um mínimo).

Como a pobreza, a riqueza também está concentrada regionalmente. Ceará, Minas Gerais e Paraná tinham menos de 2% de chefes de família com renda superior a 20 salários mínimos. Em situação melhor, Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo tinham mais de 3% de chefes de família nessa faixa privilegiada (com destaque para o Distrito Federal, onde foram encontrados 8% de chefes de família nessa faixa).

O Censo mostrou também que a população potencialmente ativa (isto é, pessoas com idades de 15 a 64 anos) aumentou. Há mais gente em idade de trabalhar em relação ao grupo de pessoas (menores de 15 anos ou maiores de 65) consideradas potencialmente não ativas. Em 1980, a razão de dependência era de 62,2 (isto é, em cada grupo de 100 capazes de trabalhar, havia 62,2 para serem sustentadas). Em 1991, esse número caiu para 57,1.

O Censo não traz dados, infelizmente, para uma avaliação da distribuição da população brasileira por classes. Mas permitem aproximações, complementadas com dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1990, ano em que a PEA (População Economicamente Ativa) brasileira era de 62 milhões de pessoas (40 milhões de homens e 22 milhões de mulheres). O setor primário da economia (agricultura e indústria extrativa), que absorvia 30% da PEA em 1980, tinha 23% em 1991, segundo o Censo. O setor secundário (indústria de transformação e transportes) tinha 24%, em 1980, e 23% em 1991; o setor terciário (comércio e serviços) passou de 46% em 1980 para 54% em 1991.

Menos de 5% da PEA era formada por patrões em 1990; 23% eram trabalhadores por conta própria (autônomos) e 65% eram empregados assalariados (mas só 38% tinham carteira profissional assinada).

A metodologia do Censo não permite uma avaliação do tamanho da classe operária. O IBGE pesquisa a distribuição dos trabalhadores por ramo de atividade e a posição na ocupação, sem preocupar-se em identificar com precisão o caráter da função exercida (trabalhador manual, técnico, administrativo, cargos de chefia, gerência e direção etc.). Por isso, os dados do Censo e da PNAD permitem apenas uma indicação da situação de classes. Em 1990, existiam 40,2 milhões de trabalhadores assalariados no país (65% do total de trabalhadores). O número de trabalhadores da indústria era de 14,2 milhões; em 1980, era de 11,3 milhões. Apesar de ter crescido em termos absolutos, em termos relativos esse segmento diminuiu. Naquele ano eles representavam 26% da PEA, e hoje representam 23%. Os patrões eram, em 1980, 3% da PEA; hoje, são 5%. Os autônomos e os familiares não remunerados eram 31 % em 1980, e continuam nessa marca em 1990.

O Censo de 1991 registra mais uma etapa da profunda transformação que o Brasil vive, pelo menos, desde os anos 60. Essa mudança tem várias conseqüências. Uma delas é a caracterização do país como subdesenvolvido. As querelas conceituais foram resolvidas pela própria realidade, e hoje o Brasil é um país de capitalismo desenvolvido, onde as categorias próprias deste modo de produção (o trabalho assalariado e a generalização das relações mercantis, por exemplo) estão firmemente enraizadas. Mas trata-se ainda de um capitalismo pobre e dependente, cujas potencialidades só poderão florescer plenamente com um projeto de desenvolvimento baseado em suas próprias forças e necessidades.

Outra conseqüência é de caráter social - diz respeito à transformação na estrutura de classes da sociedade brasileira. Três em cada quatro brasileiros vivem nas cidades e são, portanto, parte das classes urbanas, cuja importância cresce no conjunto da sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que é visível a redução da base social das oligarquias agrárias que ainda subsistem e monopolizam a posse da terra. Ou as monarquias se modernizam, ou se extinguirão.

Finalmente, outra conseqüência importante do Brasil revelado pelo Censo de 1991 é política. A concentração da população nas cidades - mais que isso, em cidades grandes - vai acabar com os velhos currais eleitorais que sustentam as oligarquias agrárias. Isso não significa, automaticamente, um crescimento do eleitorado urbano progressista, mas pode levar ao fortalecimento temporário de práticas populistas baseadas em relações pessoais, no clientelismo e no salvacionismo messiânico - retrato de um atraso político urbano em transição a uma compreensão madura, autônoma e classista, da cidadania.

O retrato pintado pelo Censo mostra um país que, sai governo entra governo, vai resolvendo sua própria vida, vai tecendo sua história. Cabe aos partidos progressistas, ligados à luta do povo, compreender essa realidade para poder atuar nela.

José Carlos Ruy é jornalista, membro do Conselho Editorial das revistas Princípios do PCdoB e Debate Sindical, do CSC.

Tabelas

Renda do chefe do domicílio
estados selecionados - em salários mínimos
IBGE - Censo de 1991

Faixa de renda Ceará Minas Gerais Paraná Rio de Janeiro Distrito Federal São Paulo
até 1 SM 61% 42% 31% 25% 13% 12%
1 a 2 19% 23% 25% 23% 20% 21%
2 a 5 11% 20% 25% 27% 29% 34%
5 a 10 4% 8% 10% 12% 16% 17%
10 a 20 2% 4% 4% 6% 12% 8%
mais de 20 1% 2% 2% 3% 8% 4%
s/renda 2% 3% 3% 4% 2% 4%

População Economicamente Ativa
Posição na ocupação - PNAD 1990

Categoria

Número
(em milhões)
%
Empregados 40,2 65
Autônomos 14,1 23
Empregados 2,9 5
Não remunerado 5,0 8

População Economicamente Ativa
Distribuição por ramo de atividade - PNAD 1990

Ramo

Número
(em milhões)
%
Agrícola 14,2 22,8
Indústria 14,2 22,8
Transformação 9,4 15,1
Construção 3,8 6,1
Outras 1,0 1,6
Comércio 8,0 12,8
Prestação de serviços 11,1 17,9
Serv. Aux. da Ativ. Econ. 2,0 3,3
Transporte e comunicação 2,4 3,9
Social 5,4 8,7
Administração social 3,1 5,0
Outras atividades 1,7 2,8

José Carlos Ruy é jornalista, membro do Conselho Editorial das revistas Princípios do PCdoB e Debate Sindical, do CSC.