Política

Entrevista com Francisco Weffort

Cinco meses antes das eleições as elites pareciam batidas, abatidas e divididas. Como e por que conseguiram virar o jogo?
As elites no Brasil talvez sejam fracas em termos de organização partidária, mas certamente são muito fortes em termos de poder econômico-político e de hegemonia social e cultural. Há cinco meses, o que víamos era o efeito desta debilidade partidária, que já havia levado à derrota a expressão partidária das elites em 1989. O que vimos, de lá para cá, é a prova de que eles têm muito poder econômico, político e hegemonia social e cultural. O Plano Real é a expressão deste fato. Seu uso político seria inexplicável sem essa capacidade que têm os grupos dominantes no Brasil, à parte a sua dificuldade, de organização partidária, de segurar a barra quando precisam. Um plano de estabilização, qualquer que seja, só tem êxito se contar com apoio efetivo, ou pelo menos se não contar com a hostilidade, dos setores econômicos dominantes. É claro que houve um entendimento prévio entre os proponentes do Plano e os setores econômicos dominantes, não apenas no terreno do mercado, mas também no plano político, no Congresso Nacional. O PT não podia ter um Plano Real. Isso era um trunfo do outro lado, que jogou com competência. Um plano de estabilização é privilégio de quem está no governo. É como num jogo de xadrez, no qual certas pedras estão de um lado e outras estão do outro. Nosso erro foi que reagimos, sem entender o peso que tem a inflação para a massa pobre do povo brasileiro. Deveríamos ter encontrado uma maneira de dizer que somos radicalmente contra a inflação, queremos uma moeda estável. Nós começamos a dizer: "o Plano vai começar a arrebentar daqui a não sei quantos meses...". Em história, é muito difícil dizer que alguma coisa é rigorosamente inevitável. Agora, a vitória do Lula era extremamente difícil. Porque o Lula cumpriu uma função, diante da incapacidade de organização partidária das elites, de catalisador, estimulou uma capacidade de organização que eles não têm. A derrota era altamente provável, porque o Lula tem um significado social de classe. Sejamos marxistas e vulgares uma vez na vida, porra! Não está em questão saber se o PT tem uma política revolucionária. Na minha opinião não tem. O que está em questão é que, para o tipo de organização de poder que tem essa sociedade, levar o Lula à Presidência significa eleger um operário à Presidência. É tão simples quanto isso. Como numa sociedade racista, eventualmente, subir um negro à Presidência é uma ruptura importantíssima. Eu acho que houve erros no PT. Mas a medida real das coisas é a seguinte: o Partido Comunista teve, em 1945, 10% em uma candidatura de voto direto. Em 1989, o Lula conseguiu 16% no 1º turno. Nesta eleição o Lula passou de 25%. Esta é a medida real, de enorme progresso. Nesta sociedade de enorme poder conservador, com esta pobreza tão grande da população, na qual o Plano Real tem este efeito, apesar dos erros do próprio PT, a estratégia seguida significou um enorme progresso. O caminho seguido foi o melhor. Nós podemos fazer autocrítica dos erros do varejo, não dos erros do atacado.

Você escreveu que era preciso oferecer garantias às elites. Que garantias eram essas?
Por exemplo: o Lula explicou que não pretendemos fazer reforma agrária em propriedade produtiva. Ou isto é assim e se berra, ou então o minifundista que tem uma pequena chácara vai se sentir ameaçado. Oferecendo garantias aos setores conservadores, visamos uma massa de opinião popular que esses setores conservadores hegemonizam. É uma ingenuidade pensar que o tema da propriedade privada é só do Olavo Setúbal ou do Antônio Ermínio. O tema da propriedade privada é de qualquer dono de táxi. Ou se determina os limites além dos quais você garante que não vai, ou vão inventar que você vai! Há todo um imaginário político do lado conservador, que tende a ver no candidato da esquerda uma potencialidade de agressão, muito maior do que aquela que ele pode ou quer fazer. O exemplo mais clássico de onde a política de garantias não foi oferecida na devida medida, foi no Chile de Allende. É claro que a CIA também estava no golpe do Chile. Mas o mais grave é que os caminhoneiros estavam no golpe do Chile. E os caminhoneiros tinham com freqüência um caminhão. Até Fidel Castro ia ao Chile e dizia: "Pelo amor de Deus, falem com as classes médias do Chile! Expliquem que vocês não são uma ameaça!" A política de oferecer garantias é muito complexa. É uma disputa pela hegemonia. Foi o que o Mandela fez com êxito, pelo menos até aqui, na África do Sul. Agora, eu não quero dizer que o Lula não tenha tentado. E não quero dizer também que, pelo fato de não fazer tantas quanto devesse fazer, tenha perdido a eleição.

Você sustentou que teria sido importante procurar alianças com o PSDB. Como você enxerga isso hoje?
Esse tema não saiu da ordem do dia para o PT, nas disputas do segundo turno e também quando se discute o governo federal, embora neste plano o assunto tenha se tornado mais complicado. A discussão de uma aliança PT-PSDB que se fazia antes era em termos da disputa. É como se o PSDB fosse uma jovem requisitada por mais de um rapaz no baile. Um dos pretendentes era o PT. Infelizmente para nós, outro rapaz levou a moça. Sabia-se que o PSDB já vinha tentando entrar no governo Collor, uma parte entrou. O PSDB assumiu o governo com o Itamar. Isso afastou a possibilidade de aliança, porque tornava-se inviável pensar numa aliança do PT, um partido de oposição, com um PSDB, que cada vez mais aparecia na linha de frente do governo. O tema permanece porque ainda está para ser provado que o PSDB foi engolido pelo setor conservador da aliança. Em segundo lugar, não acredito que o PSDB seja um grupo tão homogêneo que se passe inteiramente para um determinado lado. Ou seja, em determinados itens das propostas de governo, Fernando Henrique vai ter a necessidade, se quiser levá-las adiante, de apoios políticos que não estão no campo da aliança que o elegeu e que eventualmente não estarão no campo político da aliança com a qual ele vai governar, da qual o PT não fará parte. Vamos admitir que o governo se esqueça do que falou sobre reforma agrária - embora não tenha falado nada de extraordinário; o PT vai se esquecer, só porque o governo é do outro? Eu acho que o correto é cobrar certos itens da proposta do governo, que estão mais ou menos no horizonte de ação do PT. No que o PT levantar determinados temas, vai ter necessidade de acordos para que não seja apenas um protesto. Neste momento, você vai ter que raciocinar sobre a hipótese de aliança em favor das reformas, que vai além das alianças do governo e das alianças da oposição. Não acredito que o governo Fernando Henrique vá fazer uma revolução, nem mesmo democrática. O Brasil terá na oposição um grande líder operário. Se estas duas forças, uma na oposição e outra no governo, jogarem o seu papel, o Brasil estará entrando numa revolução democrática. Não estou imaginando que o PSDB seja capaz de persuadir o PFL a certas mudanças, no sentido do crescimento da cidadania no país, se a lógica do jogo se restringir ao campo das alianças do governo. Isso só vai acontecer se houver pressão do outro lado. Esta pressão ou virá do PT, ou não virá. Para que Fernando Henrique seja reformista na aliança dele, vai precisar de alguém que seja mais reformista do que ele fora da aliança. Se houver esta dialética das oposições que buscam reformas e que afetam o jogo no campo do governo, vai haver um crescimento no campo da cidadania no país. Nesse sentido é que se inicia um processo de revolução democrática, que significa a diminuição dos extremos de desigualdade que existem e o aumento das condições de participação da população no processo democrático.

Tanto Lula quanto FHC sustentaram a necessidade de reformas estruturais. Pelo menos aparentemente, elas eram de sentido oposto: Fernando Henrique defendia a agenda do Consenso de Washington, e Lula defendia o oposto. De que forma essas posições poderiam resultar num processo único e convergente?
Exatamente por divergências deste e de outros tipos é que o PT e PSDB não fizeram a mesma campanha, e vamos ter um governo e uma oposição. Mas também é verdade que uma das ênfases do Fernando Henrique é a insistência em que o país é injusto. Até aonde ele vai nisso? Também é verdade que houve um momento em que Lula disse que houve plágio do programa. Até aonde vai isso? O que eu não aceito é a idéia, simples demais e que não corresponde à realidade, de que o governo Fernando Henrique vai ser um governo conservador ao estilo de Antônio Carlos Magalhães. Se fosse assim não precisava do Fernando Henrique. Vai ser mais complicado do que isso. E vai ser mais complicado para o lado de cá. Em itens em que houver coincidência de interesses e coincidência programática, tende a haver, do lado da oposição, a pressão sobre o governo; e, do lado do governo, vai haver a busca de apoios na oposição, porque ele estará sendo bloqueado pelo seu lado conservador. Mas nem o governo vai ser capaz de buscar a oposição, nem a oposição será capaz de buscar alianças que estão no campo do governo para promover reformas, se não houver luta popular.

FHC parece estar convicto de que o problema da recessão está superado, que agora temos que organizar o crescimento. Será que a burguesia se unificou não apenas para derrotar o Lula, mas também em torno de um projeto de desenvolvimento para o país, de longo prazo?
São duas questões um pouco diferentes. Uma é a possibilidade de que o país tenha saído da recessão. Outra é saber em que perspectivas este bloco é capaz de organizar um período de crescimento longo. Isso envolve toda uma avaliação no plano econômico que eu não teria elementos para fazer. Mas acho que alguma coisa do gênero de crescimento do país deve poder acontecer. Eu me sentiria mais seguro para emitir uma hipótese no campo social e político. Nós chegamos a um momento no qual a vida política brasileira se organiza no caminho da consolidação da democracia e da participação popular. A participação dos partidos aumenta bastante. A participação dos minipartidos, a erraticidade do jogo político brasileiro, que vimos de 80 para cá, diminui muito. Aumenta enormemente a capacidade dos governos governarem, tanto nos estados, quanto no plano nacional. Isto significa que aumenta muito mais a capacidade das oposições praticarem oposição, dentro deste jogo democrático que se vai consolidando. Se essa hipótese é verdadeira, não dá para imaginar um processo de desenvolvimento para o país que tenha as características de exclusão da época atual. Ou mudam as características de exclusão, ou, então, não acredito na possibilidade de ter mais dez, quinze anos de crescimento da democracia com a presente exclusão. É como se tivéssemos dois barquinhos e o mesmo cidadão tivesse uma perna em um e a outra no outro. Por mais que haja uma autonomia entre a economia e a política, chega um momento em que o cara cai n'água! Porque vai aumentando a participação política, e a economia vai afundando. Em algum momento, este crescimento da participação vai significar um redimensionamento do processo de desenvolvimento econômico. A proposta do PT, de abertura para o mercado de massas é, em parte, a vontade política do PT, em parte uma imposição das circunstâncias em relação a uma grande época histórica que se esgota. Neste sentido há razões para otimismo. Não um otimismo de governo apenas. É um otimismo também de quem está na oposição. Os partidos de oposição, que se baseiam especialmente nos movimentos populares, na sua capacidade de organização, têm muito mais capacidade de pressão num país mais desenvolvido e moderno.

Depois de duas derrotas, qual é o caminho para o poder? Nós devemos imprimir adesivos com a foto do Lula e dizer "Feliz 98"?
Não, isso demonstraria um tremendo eleitoralismo, que o PT não tinha em 1980. Nós sabíamos que íamos perder as eleições de 1982. Agora, fazíamos o jogo de ajudar a construir a organização popular. De ter uma política de crescimento para a sociedade. Isso eu acho que devemos ter. E nos preparar para concorrer, porque no meio do caminho tem as prefeituras, um round importante. Não devemos imaginar que um partido que se proponha a mudar uma sociedade ganhe a parada em dez anos. O Allende concorreu quatro eleições, vinha desde os anos 40 naquela briga. A idéia de que você forma um partido em 1980, num dos maiores países do mundo, e depois de dez anos chega ao poder, é uma idéia que só pode ocorrer na nossa ingênua cabecinha! Levando em consideração o que tem de organização nessa sociedade, vai levar muito mais tempo. A trajetória do PT não é de derrota. Tem sido até aqui, e provavelmente vai continuar sendo, uma trajetória de vitórias. É a segunda derrota eleitoral para a Presidência, mas o partido continua crescendo. Só o PT pode derrotar o PT. O PT não tem mais núcleo, não tem mais uma política cultural, uma política de massas. Além das vinculações importantes no movimento sindical, que indicam mais a influência de sindicalistas no PT do que o contrário, qual a relação que temos fora da época eleitoral com a sociedade brasileira? O PT hoje ou é um partido de mandatos - de vereadores, de deputados, de prefeitos -, ou é um partido de tendências organizadas. Qual é o lugar para o cidadão comum, que tem uma simpatia vaga pelas propostas do PT, que sustenta o partido nas suas grandes campanhas políticas, qual é o ato em que ele participa do PT que não seja o da eleição? Essa coisa do partido que tem uma existência cultural uma existência social permanente além do processo eleitoral, fomos nós que inventamos, pelo menos no Brasil. Mas depois da eleição de 1989, mandamos afixar nos carros: "Feliz 94". Um partido que muda de cara desta maneira está condenado a perder, apesar de não ser essa a sua trajetória.

Antônio Martins é jornalista.

Valter Pomar é diretor de T&D.