Cultura

Parreira apostou na igualdade dos rotineiros e acabou criando o "futebol-burocracia"

Parreira não tem biografia!, já estava pensando depois de ler todos os jornais e revistas a que tive acesso, sobre a Copa do Mundo. Louvações a uns, críticas a outros, adjetivos pouco adjetivosos para o Parreira - os mais maneiros foram burro e teimoso -, mas biografia dele mesmo, nada. Teria ele descido de disco voador ou surgido do nada?

Mas enfim vi nuns rodapés que não é bem assim: ele tem uma biografia e uma carreira, que aliás começou por cima, ao contrário da maioria dos técnicos de futebol, que antes de chegar lá tiveram que suar a camisa nos campos. A carreira do Parreira (trocadilho horrível e rima paupérrima... mas será que ele merece coisa melhor?) começou com ele terminando o curso de educação física e "adentrando" o gramado, como diriam os radialistas, já por cima. Tanto que seu palavreado acadêmico faz com que os próprios jogadores da seleção o chamem de "professor".

Pois é, já aos 27 anos de idade, em 1970, ele estava na seleção brasileira, como preparador físico, fiel escudeiro do técnico Zagalo, quando o Brasil tornou-se tricampeão mundial, já que Zagalo não conseguiu destruir o trabalho feito por João Saldanha. Em 74, Zagalo foi mais Zagalo e seu futebol retranqueiro perdeu para a Holanda. E lá estava o fiel escudeiro Parreira como preparador físico. O mesmo Zagalo, vejam só que troca-troca interessante, viria a ser agora o seu fiel escudeiro, como coordenador técnico da seleção. Se continuar o rodízio, ainda teremos que ver esse tipo de futebol pela frente. Vige!

Bom, continuando, Parreira foi técnico da seleção do Kuwait de 1978 a 1983, conseguindo classificar a equipe para uma Copa, depois treinou a seleção brasileira por alguns meses, indo então para os Emirados Árabes. Fez nome por lá. "Grande josta", me diz um colega aqui, "lá não tinha futebol nenhum". Bem, pode ser. Em terra de pernetas... Mas é maldade não reconhecer méritos nisso. Pelo menos uma defesa Parreira pode ter: o futebol brasileiro andou uma porcaria nesse tempo e ele não teve culpa nenhuma, pois estava lá longe, onde muita gente acha que ele devia ter continuado. E seu futebolzinho ranheta rendeu-lhe até um título pela terra brasileira, pois num intervalo que esteve aqui foi campeão carioca pelo Fluminense, em 1985. Depois desse estágio (o que terá aprendido lá nas Arábias?) veio ser técnico do Bragantino, em 1991, até ser chamado para a seleção.

Fim de uma era

Com Parreira na seleção acabou-se uma era de brigas e discussões sobre como ela deveria jogar: o "futebol-arte" típico dos peladeiros brasileiros ou o "futebol-força" típico dos europeus sem ginga?

Parreira inovou: nem um, nem outro. Alegando que o Brasil não tem mais Pelé, Garrincha e outros do tipo e dizendo que se tivesse poria todos eles em campo (mas não pôs Ronaldo, uma promessa de artista do futebol, e só pôs Romário quando já parecia estar para ser linchado, no último jogo das eliminatórias, contra o Uruguai), ele veio com um futebol que chama de "organizado". Um futebol retranqueiro, rotineiro, feito meio à semelhança do que existe na Europa, tanto que ao responder por que insistia em jogar com apenas dois atacantes, e não três, perguntou: "Se todos jogam assim, por que eu tenho que ser diferente?" Quer dizer, enquanto todos admiram a diferença dos jogadores brasileiros, ele quer a igualdade dos rotineiros. Porém, como já disse, acho que ele não aderiu ao "futebol-força". Impôs algumas características pessoais e criou o novo paradigma do futebol mundial, já que ele ganhou a Copa: o "futebol-burocracia", algo que tem um pouco de "futebol de resultados", mas não é só isso.

Meticuloso, planejador, ele desenhava cada jogada com antecedência, limitava a área do campo por onde cada jogador devia andar, o que devia fazer com a bola... Só faltava sair no Diário Oficial. Olha, nesse tipo de futebol eu tenho a impressão que os jogadores não assinam a súmula antes de entrarem em campo: assinam o ponto! E os jogadores obedeceram direitinho. "O chefe manda, nós obedecemos", parecia ser o lema. Medo de perder o lugar. Tanto que Zinho, que joga tão bem no Palmeiras, virou um fantoche em campo. Um fantoche não - eis outra inovação de Parreira -, uma enceradeira. Depois do complexo de Édipo, se o estilo Parreira ganhar o mundo, o complexo de enceradeira vai ser moda, não nos divãs de psicanalistas, mas nos gramados, com os Zinhos rodando sem sair do lugar e sem pôr o pé na bola.

Os desobedientes

Romário, o salvador da pátria, não tinha lugar no time de Parreira. É desobediente, irreverente e tem opinião, coisa comum nas seleções gloriosas de 1958, 62 e 70, mas inadmissível agora. Acabou sendo chamado pra ser decisivo na classificação do Brasil para a Copa, e aí não deu mais para ele sair da seleção. O futebol-burocracia teve que engolir o sapo, quer dizer, o craque, mas parece que Parreira pôs um limite tipo "só ele, bem?".

Ronaldo, com seus 17 anos, o craque citado por Tostão como um cara que faz coisas com a bola que nem Pelé fazia, teve uma oportunidade na seleção de Parreira, na fase de treinamento. Mostrou não merecer lugar nesse time: jogou bem demais, criou, pensou, fez jogadas bonitas - que horror! E agora que todo mundo esperava uma busca desenfreada de jogadores brasileiros por times europeus, já que somos os melhores, quem foi o único a ser comprado a peso de ouro? Certo, ele mesmo, Ronaldo. O desprezado por Parreira foi para a Holanda.

Já nos jogos da Copa, a torcida sofrendo, pedindo, suplicando que tirassem Zinho ou Raí e colocassem Ronaldo ou Viola, ou mesmo Müller, Parreira às vezes resolvia judiar mais ainda da gente: substituía o jogador mas... por Paulo Sérgio! Que diabo! Vi gente espumando de ódio nessas horas, suspeitando que Parreira tinha alguma ligação diferente com essa figura desconhecida: "amorosa ou econômica?", resumiu um torcedor que perguntava insistentemente se Parreira era dono do passe desse jogador. Pretensioso, acho que defini certo para ele: "Nada disso. O cara é o jogador certo para o Parreira, veja como ele joga burocraticamente".

Parreira é tão burocrático (com a ajuda do escudeiro Zagalo) que até o lugar que o jogador ia sentar-se no avião era determinado por ele, com antecedência. Ora, não é muito mais fácil ele reservar o lugar dele e cada um marcar o seu lugar, junto com quem quiser?

Não se deve negar, no entanto, a coerência de Parreira. Nem ao todo poderoso João Havelange (além de presidente da Fifa é sogro do "chefe" de Parreira, Ricardo Teixeira), que também já se mostrava descontente e pedia mudanças na seleção, ele cedeu. Manteve o time do jeito que estava. Talvez porque mudanças no time burocrata tenham que ser pedidas através de ofício protocolado, com carimbos e tudo o mais. Itamar Franco e a própria mãe do técnico, como ele mesmo confessou, conseguiram convencer Parreira, que a cada pedido de mudança respondia que "torcedor é irracional".

Na final, aí sim é que foi um sofrimento. Não é à-toa que as cervejarias se interessem tanto pelo futebol: parece que pra não ter um piripaque no coração a cada ameaça de derrota, o jeito é encher a cara. E com o Parreira acho que nunca as cervejarias venderam tanto. Pelo menos eu não vi nenhum segundo tempo da seleção: sempre cheguei ao intervalo bêbado e transtornado. Bom, mas aí Parreira resolveu dar um "cala-boca" na torcida, pondo o Viola em campo nos últimos 15 minutos da prorrogação, como que para justificar e cobrar se a gente acabasse perdendo o jogo e a Copa: "Tão vendo? Exigiram tanto o Viola e não adiantou nada". E o Viola mostrou que não podia mesmo ser titular do Parreira: jogou futebol sem nenhuma burocracia. Ora! Não basta o Romário que ele teve que engolir?

Mas enfim ...

Dizendo que quem quisesse ver espetáculo que fosse a um show ou coisa parecida, repetindo mais ou menos a frase do escudeiro Zagalo, que aconselhava a ir a um circo, a seleção brasileira tornou-se enfim tetracampeã. Ufa! Festas e mais festas. Será que Parreira e Zagalo têm razão quando dizem que sempre que o Brasil joga bonito perde, concluindo então quando ganha é jogando feio?

Bem, se isso valer, pra que torcida? Quem vai se deslocar até um estádio, pagar entrada e ficar vendo um antiespetáculo? Que joguem com os portões fechados, então! Veja se alguém paga para assistir a alguma partida de dominó!

Além disso, as seleções de 58 e de 70 davam belos espetáculos e ganhavam. O Santos da era Pelé, o Cruzeiro da era Tostão e Dirceu Lopes davam belíssimos espetáculos e ganhavam. E é por isso que até hoje reverenciamos os craques que nos deram vitórias gloriosas, bonitas, gostosas de se ver e não sofridas como as desta Copa. Mas Parreira diz que a chiadeira era porque o povo é uma mera caixa de ressonância, que reclamava do futebol-burocracia, e que a imprensa (principalmente a paulista) era contra ele. Será? Veja que apesar da festa toda até a chegada, já não temos mais o clima de campeões do mundo. Já tem gente quase se esquecendo da Copa, enquanto ainda se lembra até da escalação das seleções de 58, 62 e 70.

Pois é, mas "vencemos"! Ou será que os outros perderam? O certo é que o futebol maravilhoso de Telê Santana nunca foi campeão mundial, com a seleção, embora também tenha ganhado duas vezes o campeonato mundial de clubes, com o São Paulo. Muita gente acredita que para ser campeão da Copa, hoje em dia, tem que ser com o joguinho feio do Parreira. Não é possível afirmar que sim nem que não. Parreira tem seus méritos: se propôs a ganhar a Copa jogando de um jeito e ganhou. Mas há também outro tipo de torcedor, entre os quais me incluo, que prefere perder jogando bonito do que ganhar jogando tão feio. Se futebol não é espetáculo, que se dispute logo a Copa do Mundo no palito.

Quanto à eficiência do estilo Parreira, vamos ver agora no time do Valentia, da Espanha, onde ele foi ser técnico. Se ganhar o campeonato com uma seqüência de jogos com resultado de um a zero e zero a zero ("o gol é apenas um detalhe", disse Parreira depois de três empates de zero a zero na fase de treinamento), viva o Parreira! Ele tem razão, então! Só que eu vou preferir ver um jogo de damas, de canastra ou de pebolim. Agüentar a final da Copa por "um a zero com gol de mão", com o que muita gente que concorda nestes tempos de valorização dos "resultados". Depois do sindicalismo de resultados, eis aí o futebol de resultados. Vale tudo para ganhar. E nessa, então, deveriam considerar Leonardo o melhor jogador brasileiro, pois num joguinho chocho e sem futuro, ameaçado de perder para o timeco norte-americano, ele fraturou a cabeça de Tob Ramos com uma cotovelada. Com isso, tirou o melhor jogador deles de campo e, sendo expulso, provocou os brios dos brasileiros, que suaram para ganhar de um a zero. Deu resultado. Futebol deve ser isso?! Não acho. E o futebol de Parreira (fora a violência, que isso em nenhum momento ele estimulou, só dei o exemplo da cotovelada infeliz de Leonardo para mostrar onde isso pode chegar) é meio por aí. É ficar torcendo para pegar o adversário mais fraco, ganhar sofrendo ou empatar, torcer para um jogador deles ser expulso, fazer um golzinho desesperado, na última hora. Cada vitória é um parto. Tanto que acho que o título mais correto para Parreira seria obstetra campeão.

Mouzar Benedito é jornalista.