Internacional

Principal obstáculo foi a falta de mecanismos organizativos para enfrentar a campanha e chegar à vitória

Apesar das expectativas criadas e da profunda crise que atravessava o Estado mexicano, as eleições de 21 de agosto não transcorreram como esperávamos. O Partido Revolucionário Institucional proclamou-se vencedor com pouco menos de 50% dos votos, atribuiu-se ao partido da direita confessional (o Partido Ação Nacional) cerca de 30% dos votos e ao cardenismo, agrupado no Partido da Revolução Democrática, somente 16% dos votos. Neste sentido, frustrou-se a esperança de mudança pacífica eleitoral. Buscar as razões disso não é um simples exercício intelectual, mas uma angustiante necessidade para um movimento democrático de esquerda que estava bastante seguro de ter, finalmente, encontrado seu caminho.

Creio que não existe uma única razão para isso. Evidentemente, setores fundamentais do movimento democrático procurarão explicar tudo em função dos mecanismos de fraude eleitoral que sobrevivem no México. Mesmo sendo este um elemento importante, não é o único. É fundamental buscarmos os outros.

E todavia será necessário começar pela fraude. Poucos países são tão antidemocráticos quanto o México. Isso é pouco percebido no resto do mundo por uma atuação política internacional tradicionalmente progressista. Mas nós que vivemos neste país sabemos perfeitamente o que isso significa. A relação corporativa do Estado com a sociedade, através das organizações sociais, foi desenhada de uma maneira tão inteligente que até agora não foi possível romper com ela (apesar de Salinas, por motivos produtivistas, ter tentado acabar com esta relação). Daremos apenas alguns exemplos.

O governo - preocupado com a possibilidade de perder as eleições e ao mesmo tempo pressionado pela imposição de centenas de observadores internacionais, que vieram vigiar o processo eleitoral - teve que implementar uma série de mecanismos prévios que lhe assegurou uma votação substancial.

Assim, em vários municípios e distritos eleitorais, os certificados de conclusão do ano letivo para as crianças do primário não foram entregues, e ameaçaram-se as mães que se os resultados eleitorais fossem desfavoráveis, estes certificados se perderiam para sempre.

Foram igualmente utilizados para influir nos resultados, os novos instrumentos criados por Salinas de Gortari, Solidariedade e Procampo: entregavam-se cestas básicas com apenas metade dos produtos e prometia-se que se o PRI ganhasse claramente as eleições nestas regiões, o restante seria entregue posteriormente e com acréscimo. Iniciava-se a construção de poços ou a instalação de energia elétrica ou de comunicação telefônica, os trabalhos eram suspensos na metade e se condicionava sua continuidade ao resultado eleitoral. E estes são só alguns exemplos.

Por outro lado, manteve-se a tradicional forma de organizar a fraude. O "carrossel", o "ratão louco", a "operação tamal", a "operação taco", a "operação sapato" continuaram sendo utilizadas, sobretudo nas regiões agrícolas, mas também em algumas urbanas. Tivemos o deslocamento massivo de votantes com transportes semi-oficiais, que foram previamente pressionados em função de um pagamento que seria completado ao conhecer-se o resultado eleitoral à noite (carrossel); os votantes da oposição que nunca encontram sua seção eleitoral e que são enviados de seção em seção até que se aborrecem e vão para casa (o ratão louco); os membros do PRI que levam dezenas de votos já previamente preparados quer seja envoltos como tamal, quer seja enrolados como tacos, e que os introduzem nas urnas onde há pouca vigilância. E a manutenção da prática do PRI de atribuir-se 100% dos votos possíveis naquelas seções em que não há representantes dos partidos legais de oposição (se é que ainda é possível falar no plural).

Enfim, tudo isso já havia sido denunciado previamente, quando nas páginas do jornal mais influente do país, o La Jornada, foi divulgado o "manual del mapache" (o fato de ter uma capa com a figura deste animal fez com que os mexicanos dessem esse nome aos magos da fraude). Nele eram listados todos os recursos que os "mapaches" priistas deveriam utilizar antes, durante e depois que as urnas fossem fechadas.

Manipulação do cadastro

A isso acrescentaram-se três novos elementos: a "operação rasurar", a "operação homônimos" e a "operação sobre-rasurar". Em princípio foram eliminados das listas eleitorais cerca de 5 milhões de mexicanos, que simplesmente não obtiveram título de eleitor. Em troca, foram distribuídos dois ou mais títulos a uma série de priistas, e isso foi "justificado" sob o pretexto de que existem muitos mexicanos que têm o mesmo nome. Assim, apenas na Cidade do México, onde havia 6 milhões de possíveis eleitores, foram descobertos 1,2 milhões de pessoas que "tinham o mesmo nome"; no estado de Chiapas, onde eclodiu a insurreição armada de 1º de janeiro, descobriu-se que cerca de 35% do eleitorado era homônimo. Para finalizar, em 21 de agosto, ocorreu a "sobre-rasura", isto é, o desaparecimento na última hora de milhares de cidadãos das listagens eleitorais, que não puderam votar.

Confiança numa grande votação

Pois bem! Tudo isso existiu, foi feito com o maior profissionalismo e fez com que os observadores internacionais aprovassem o resultado eleitoral (sempre aceitando a existência de irregularidades). Com isso conquistou-se uma legitimidade que o governo não obteve em 1988.

Mas creio que seria um erro ficar no aspecto mais aparente do problema. De alguma maneira todos nós que apoiávamos a candidatura de Cuauhtémoc Cárdenas sabíamos que estes mecanismos seriam utilizados e todavia participamos das eleições com a confiança de que uma grande votação (superior à de 1988) impediria que a fraude fosse consumada ou, pelo menos, que seria tão evidente que a legitimidade estaria do nosso lado, o que permitiria uma mobilização social muito grande e um isolamento muito profundo do priismo. Isto não aconteceu, e é o que devemos explicar. Eles fizeram seu trabalho; já o nosso não foi tão eficiente. Trataremos de oferecer uma explicação pluricausal e em alguns aspectos contraditória, buscando periodizar as diversas fases da campanha eleitoral.

O lançamento das candidaturas

A candidatura de Cuauhtémoc Cárdenas à Presidência foi lançada formalmente no mês de setembro de 1993, mas de fato ele já estava há sete anos em pré-campanha. A situação não podia ser mais promissora. Os apoios que obteve permitiam prenunciar uma grande possibilidade de vitória e apesar de seu partido ter sofrido um retrocesso eleitoral muito grande em 1991 e ter um nível significativo de contradições internas, isso era neutralizado pelo grande apoio cidadão a sua candidatura. Conformou-se, dessa maneira, uma aliança que ia desde o Partido Revolucionário das e dos Trabalhadores (que em 1988 havia lançado Rosário Ibarra como candidata à Presidência) até uma corrente que rompeu com o Partido Ação Nacional.

De outro lado, o "destape" de Luis Donaldo Colosio como candidato do PRI - no México, desde 1929 se diz que o presidente que encerra seu mandato "destapa" o candidato à Presidência do partido oficial, como se fosse um sistema monárquico de sucessão transversal a cada seis anos - havia provocado uma série de fissuras na burocracia priista. Isso permitiu que um político com as aspirações e a inteligência de Manuel Camacho Solís, preterido, começasse um "trabalho de sapa" da candidatura de seu companheiro de partido. Neste sentido, a imagem não podia ser mais plástica: a candidatura de Cárdenas unia; a de Colosio dividia.

A sublevação de Chiapas

Em 1º de janeiro, quando a oligarquia financeira mexicana e seu governo estavam abrindo garrafas de champanhe e declarando-se prontos para levar o México ao Primeiro Mundo, estalou a rebelião indígena do estado de Chiapas e, de repente, os "homens pequenos" das comunidades Tzeltales, lzotziles e Tojolabeles (sobretudo) retiraram bruscamente seus mantos e o que ficou à vista de todos foi o México profundo. A rebelião chiapaneca colocou o México frente ao espelho de uma realidade lacerante, de miséria, fome e doenças. Os indígenas chiapanecos conseguiram gerar um nível de solidariedade e de apoio tal que o Estado teve medo de desenvolver uma linha de extermínio (sua primeira reação) e lhes outorgou um reconhecimento muito importante. As tremendas reações da sociedade para barrar os bombardeios não conseguiram somente isso, mas também modificaram os planos iniciais do Exército Zapatista de Libertação Nacional. A partir desse momento, o EZLN converteu-se no promotor de um diálogo cívico com o resto da Nação. O subcomandante Marcos começou a exercer uma espécie de encantamento sobre uma boa parte dos habitantes das zonas urbanas.

Em função disso e da nomeação de Manuel Camacho Solís como mediador para a paz, a candidatura de Luís Donaldo Colosio e a de Diego Fernández de Cevallos do PAN viveram um ostracismo muito grande. O candidato do PRI, em especial, começou a ser objeto de uma campanha de desprestígio nas fileiras de seu próprio partido. De fato, foi necessário que Salinas o "destapasse" pela segunda vez frente aos crescentes rumores de que seria substituído por Camacho.

Neste momento, as pesquisas davam o primeiro lugar a Colosio, mas com uma diferença muito pequena entre ele e Cárdenas. Em compensação, Cevallos, candidato do PAN, mal aparecia nas sondagens.

Série de erros

Começou aqui uma série de erros dos estrategistas da candidatura de Cárdenas. Partia-se de um pressuposto falso e não comprovado: Cárdenas havia assegurado a imensa maioria dos votos dos de baixo e agora deveria buscar o voto dos de cima (que, como assinalamos, estavam divididos). Isso, que parecia uma decisão muito inteligente, demonstrou-se profundamente equivocada. Era falso que Cárdenas tivesse assegurado o respaldo da maioria dos de baixo. E mais: seus canais de comunicação e de organização com estes setores eram muito limitados, tanto pelo discurso que sustentava neste momento, quanto pelo fato de que do ponto de vista organizativo a campanha tinha falhas e limitações. Estes setores assistiam aos comícios, mas a eles não era proposto nada de concreto, apesar da insistência com que se apontava a necessidade de evitar a fraude eleitoral.

Mais ainda! Neste momento começava a existir em importantes setores da sociedade um certo distanciamento da candidatura do PRD. O trabalho de sedução feito por Marcos produziu não apenas um flanco esquerdo à candidatura, mas também uma espécie de deslocamento na consciência dos de baixo. Cárdenas viu-se prisioneiro de uma contradição: queria ganhar os de cima, mas não podia tomar a distância necessária e suficiente dos de baixo e, por outro lado, suas colocações começaram a soar estranhas e pouco confiáveis para os de baixo. Caiu numa linha errática que a longo prazo foi totalmente contraproducente.

O assassinato de Colosio

A forma brutal e premeditada como ocorreu a morte de Colosio comoveu todo o México. Ninguém duvidou que se tratasse de um assassinato de Estado. Todos os dedos apontavam para Salinas. A bala que foi decidida no escritório de uma instituição do Estado matou não apenas Colosio mas também qualquer possibilidade de veleidade democrática no interior do PRI. Decidiu-se, neste momento, por uma fraude selvagem.

Muitos de nós nos equivocamos, neste momento, ao analisarmos as conseqüências que este assassinato teria: pensamos que isso iria polarizar a sociedade contra o Estado e não nos demos conta que mais do que os acontecimentos de Chiapas, isso começou a gerar um grande medo na população que não se mobilizava. Muitos imaginavam que se a burocracia priista fazia isso com seu candidato à Presidência, o que não faria com o cidadão comum se perdesse as eleições?

O debate na televisão

Esta que havia sido uma das demandas da oposição converteu-se em um dos elementos chaves contra Cárdenas. Antes as coisas eram muito simples: os setores democráticos constatavam que os seus candidatos não apareciam nas cadeias de televisão e utilizavam isso para denunciar o Estado e a forma como corporativizava os meios de comunicação. Agora, a inssurreição chiapaneca tinha imposto um pacto entre os candidatos e um dos seus pontos era a celebração de debates públicos. O resultado foi catastrófico: Cárdenas perdeu o debate. O grande ganhador foi Fernández de Cevallos que se mostrou um polemista hábil e ao mesmo tempo rude. Na prática o seu objetivo fundamental foi atacar Cárdenas destacando seu passado priista. Cárdenas não quis entrar nesta discussão e isso ficou claro para a maioria dos mexicanos. Mais uma vez, o resultado do debate foi menosprezado ou pelo menos relativizado. Entramos de repente na política televisiva e continuamos avaliando as coisas em função dos comícios.

Como resultado deste debate Fernández de Cevallos subiu para o primeiro lugar e se não ganhou a eleição, agora isto está mais claro do que nunca, foi porque seu partido e ele mesmo não quiseram. Imediatamente depois do debate, quando boa parte daqueles que queriam votar na oposição tinham passado para seu terreno, freou surpreendentemente sua campanha durante trinta dias, sob o pretexto de que estava reorganizando-a, o que permitiu a recuperação de Zedillo e também de Cárdenas, o mais atingido. O que se passou? Muito simples: o PAN demonstrou que não queria uma confrontação com o partido do Estado e muito menos ainda com o Estado. Na prática, o PAN não queria correr o risco de governar um país convulsionado. Como nunca, viu-se Cevallos entrar e sair da casa de governo.

A recuperação do PRI e do PRD

No vazio deixado pelo PAN, Zedillo elimina Camacho Solís do cenário político, consegue unificar os grupos mais importantes do priismo a partir da liderança mais vinculada aos negócios sujos (os chamados narcopolíticos), que sustentava uma linha dura contra a oposição, especialmente frente ao PRD e ao zapatismo (posição que não é de imediato posta em prática, mas que apenas um cego pode descartar no futuro). Os homens mais sujos, mas também os mais poderosos, tomam o controle da campanha de Zedillo e este é apenas uma marionete em suas mãos.

Começa o desenho da fraude eleitoral. Para isso, foi fundamental a utilização dos meios de comunicação de massa que no dia seguinte ao debate anunciaram as mais variadas pesquisas que colocavam Cárdenas em terceiro lugar, com 7% da votação total. Ao mesmo tempo, utilizaram recursos impressionantes para comprar os mais pobres, contratando uma série de empresas que apenas tinham como objetivo legitimar um cadastro eleitoral completamente fraudulento. Com isso, foram distribuídos 2 milhões de títulos de eleitor duplos.

No dia seguinte ao debate, Cárdenas foi para a selva Lacandona, para um encontro com o EZLN. Nesta reunião se deram dois processos. De um lado, os indígenas zapatistas queriam explicar a Cárdenas seu ressentimento com uma sociedade, uma ideologia e um mundo que os havia condenado à marginalização total. De outro, procurava-se tornar evidente que ele era o único candidato que merecia seu respeito.

O resultado não foi o que se esperava. O subcomandante Marcos formulou um discurso que era uma autêntica filípica contra o PRD e todas suas correntes. O problema não foi se tudo o que disse sobre as debilidades desse projeto era verdade ou não, creio que no fundamental era, mas antes de tudo era exagerado e depois, quando isso foi publicado, converteu-se em eixo de ataque. A mídia deu destaque ao tema, assinalando que nem na selva Cárdenas e seu partido conseguiam consenso. Isso era ainda mais incorreto se considerarmos que dentro da estratégia zapatista a vitória de Cárdenas era fundamental.

Apesar disso, Cárdenas viveu um grande processo de recuperação. Os que viviam nos porões da sociedade saíram para as praças, estradas, ruas dos bairros mais pobres do México e foram para seus comícios. Cárdenas decidiu mudar o fundamental de seu discurso, ao aperceber-se que a idéia que lhe haviam vendido era falsa, de que os de baixo não estavam completamente com ele. Foram os melhores momentos da campanha. As praças foram se enchendo, os comícios eram sempre maiores que os do PAN, da dimensão dos do PRI, mas sem os perversos artifícios do partido do Estado. Isso culminou em uma impressionante concentração no centro da Cidade do México, onde cerca de 300 mil mexicanos foram escutar um discurso magnífico, cheio de esperança na busca de um México democrático.

A intervenção dos zapatistas

Os zapatistas rechaçaram os 34 acordos propostos pelo governo mexicano, mas, ao mesmo tempo, não lançaram uma nova ofensiva militar. Com grande capacidade, entenderam que o melhor que podia se passar com país era articular esse movimento democrático eleitoral com a luta zapatista, mas a partir de um reconhecimento da necessária subordinação, pelo menos parcial, da segunda ao primeiro.

Por isso, na Segunda Declaração da Selva Lacandona, os zapatistas reconhecem que é a hora da sociedade e não da guerra, que é a hora da luta pela mudança política e não da luta armada. "A bandeira está agora nas mãos dos que têm nome e rosto, de pessoas boas e honestas que caminham rotas que não são as nossas, mas cuja meta é a mesma que orienta nossos passos. Nossa saudação a estes homens e mulheres, nossa saudação e nossa esperança de que levem esta bandeira aonde ela deve estar. Nós estaremos esperando, de pé e com dignidade. Se esta bandeira cair, nós saberemos erguê-la novamente" (12 de junho de 1994).

Neste texto lançaram a proposta de organizar uma grande Convenção Nacional Democrática (CND), que significaria um passo adiante fundamental para assegurar tanto o triunfo das forças democráticas no terreno eleitoral quanto a criação de um mecanismo organizativo capaz de defender este triunfo. Assim, mais de 7 mil delegados de todas as partes do país viajaram até a selva Lacandona, nas montanhas azuis, para estabelecer um pacto unitário que criava as condições para lutar contra o sistema do partido de Estado.

Apesar da CND não ter se pronunciado pela candidatura de Cárdenas, implicitamente ninguém duvidava que era disso que se tratava. O subcomandante Marcos, em um discurso que entrará para a história de nosso país, falou-nos da CND como nossa nova Babel, que diferentemente da outra tinha um bom sistema de tradução simultânea; como nossa arca de Noé, que nos salvaria do dilúvio do fracasso das ideologias autoritárias que usurparam a essência das teorias igualitárias e plebéias; como nosso Fitzcarraldo que transportaria 7 mil delegados por outra selva, mas com o mesmo espírito épico para admirar "Aguascalientes" (em homenagem a outra Convenção, a de Zapata e Villa realizada em 1914, em um estado muito distante da selva, chamado Aguascalientes), da construção de um auditório para 8 mil pessoas realizada por indígenas zapatistas tojolabales, ponto de reencontro e redescobrimento de nossas raízes utópicas. Uma vez mais ficava claro, como dizia Mariátegui, que "a própria razão tinha se encarregado de demonstrar aos homens que ela não lhes basta. Que unicamente o mito possui a preciosa virtude de preencher o seu eu profundo".

Dois dias depois da viagem à selva, Cárdenas encerrou sua campanha na Cidade do México, onde as 300 mil pessoas que o assistiram se permitiram ter segurança de que por fim o México mudaria.

O voto do medo

Enquanto isso, o PRI continuava trabalhando a todo vapor, tanto na fraude eleitoral, quanto em seus mecanismos corporativos, e também para difundir medo na população que queria votar pela mudança, com o objetivo de conseguir que os que o fizessem votassem pelo PAN.

Um intelectual mexicano explicou isso no New York Times, ao assinalar que, em 21 de agosto, os cidadãos mexicanos escolheriam dois tipos de aterrissagem na democracia, a suave que representava o PAN ou a forçada que representava o cardenismo. Uma boa parte da população se decidiu (insistimos, para mais além da fraude inegável, que nos impede de saber o verdadeiro resultado dos votos de Cárdenas) pela aterrissagem suave. Atrás estava uma profunda campanha de ódio. Há sete anos que o Estado tinha convertido Cárdenas em seu principal inimigo, não odeia ninguém tanto quanto ele, não quis esmagar ninguém como a ele.

Efetivamente, setores importantes da população, que queriam a mudança, tiveram medo e votaram ou pelo PAN ou se viram obrigadas a fazê-lo pelo PRI.

Conclusões iniciais

Evidentemente, não faltaram aqueles que, algumas horas depois da proclamação do resultado eleitoral, buscaram nas próprias fileiras do cardenismo responsabilizar o candidato pelo fracasso eleitoral. Para alguns, o problema foi que Cárdenas se vinculou demasiado ao zapatismo e isso gerou medo na população; para outros, o problema é que ele não negociou a tempo com o Estado a transição para dar garantias à casta política priista assegurar sua saída. Enfim, para outros, o problema está no caráter de classe não proletário do cardenismo e na sua não definição socialista.

Para mim, todas estas interpretações são profundamente equivocadas. Cárdenas não podia conduzir uma campanha socialista porque não é socialista. Teve que atuar da maneira como fez frente à insurreição indígena porque, se tivesse agido de maneira diferente, teria perdido boa parte de sua base radical de apoio. Cárdenas não podia pactar a transição com Salinas, porque este não o reconhecia e na prática impediu a alternância no governo e, de outro lado, uma das conquistas mais significativas do cardenismo foi sua atitude intransigente e firme de não reconhecer o presidente usurpador.

Podemos criticar a posição errática de sua campanha, os vôos da esquerda para a direita, podemos também pensar que se tivesse tido uma posição mais agressiva no debate, outra coisa teria ocorrido, mas em última instância tudo isso é muito especulativo. O problema central do meu ponto de vista é que Cárdenas se confrontou com o partido do Estado com um partido muito fraco, dividido e questionado; em meio de uma série de derrotas muito fortes das classes sociais fundamentais, produto de uma impressionante reestruturação produtiva; sem ter conseguido construir mecanismos organizativos sérios, que pudessem enfrentar a campanha e eventualmente a vitória; e com um flanco esquerdo que, se bem simpatizasse com sua pessoa e sua candidatura e tenha provocado uma crise do modelo de Estado, significou um novo desafio político difícil de decifrar. Como trabalhar com uma força política que conduz uma insurreição indígena e que logo, quase imediatamente, se converte em paradigma da esperança de uma boa parte da sociedade civil, ao privilegiar a luta política?

Por isso, dizíamos, no princípio, que não acreditamos que exista uma razão monocausal para explicar os resultados eleitorais no México. Agora o que permanece por se averiguar é se esta derrota significa um obstáculo a mais na vida política de Cárdenas e ele consegue superá-lo, ou estamos frente ao fim de uma liderança política (a liderança inquestionável da ala jacobina radical que vem da revolução mexicana e da qual Cárdenas é seu autêntico e legítimo herdeiro). Para isso, não há uma resposta simples.

E há outra grande interrogação: qual será o destino do EZLN com esta derrota? O grau de legitimidade conquistado pelo EZLN e em especial por Marcos, tanto na guerra quanto na paz, enfrenta hoje seu desafio mais importante. Uma ação unilateral de voltar a lançar a luta armada ou uma iniciativa do mesmo estilo para negociar a paz pode comprometer essa legitimidade. O EZLN se caracterizou por não permitir que a bola permanecesse muito tempo em seu campo; agora cada dia que passa com a bola em seu campo joga contra ele. Enfim, durante a manhã de 22 de agosto, no comício de cerca de 40 mil pessoas em que Cárdenas analisou os resultados eleitorais havia raiva e tristeza. As pessoas gritavam e choravam e eu não tive outro remédio senão lembrar aquela madrugada e aquela manhã em Manágua, na qual as pessoas se perguntavam: o que aconteceu?

Sérgio Rodrigues é jornalista e dirigente do Partido Revolucionário das e dos Trabalhadores.