Primarismo poético e ideológico, engajamento envergonhado e outras considerações sobre o poema que Haroldo de Campos fez para a campanha Lula-94
Primarismo poético e ideológico, engajamento envergonhado e outras considerações sobre o poema que Haroldo de Campos fez para a campanha Lula-94
Discute-se tão pouco poesia no Brasil, que parece um absurdo alguém vir a público para embirrar com um poema que expressa simpática adesão ao candidato do PT às eleições presidenciais, o que evidentemente mereceria antes celebração do que alguma crítica. Falando a verdade, mais me indignaram os termos inacreditáveis do elogio feito ao poema em resenha há pouco publicada (Ivan Teixeira - "Haroldo de Campos, artista do provável", Cultura, O Estado de S. Paulo, 20/08/94), do que o primarismo poético e ideológico de "Por um Brasil-Cidadão", estampado na Folha de S. Paulo (3/07/94), já que não causa surpresa alguma encontrarmos formas de expressão desse tipo na recente produção de Haroldo de Campos.
O referido poema foi escrito para ser divulgado no material de campanha do PT, a pedido de Sérgio Mamberti (coordenador da comissão de artistas em apoio à candidatura de Lula). O que terá motivado o poeta a aceitar a encomenda e aprontá-la a tempo? É claro que o pretexto criativo e a atitude política não desabonam, pelo contrário. Sobretudo em tempos de conservadorismo como o nosso, quando a poesia de inspiração e convicção políticas, se não está absolutamente desmoralizada, é o gênero poético menos prestigiado. O fato de alguém se dispor a trovar em torno de suas preferências políticas, mesmo que momentâneas, já é um acontecimento - ainda mais em se tratando de um poeta cosmopolita, que já viu tanta coisa neste mundo (leia-se "Meninos eu vi", em Os melhores poemas de Haroldo de Campos. Global, 1992), polilíngue, íntimo de atrizes globais e popstars, tradutor da bíblia e de Severo Sarduy, e sobretudo o vanguardista mais indiscutivelmente pontual de nossa literatura. Por que o poeta não poderia se impor um tema, ou partir de um assunto qualquer, para realizar seu trabalho de arte? Afinal, os temas considerados como indignos da poesia pura ou sublimizante - os temas da vida dos homens - foram objeto de poetas os maiores que conhecemos, em todos os tempos e lugares. Neste sentido, tendo a concordar com o João Cabral dos anos 50, quando, às voltas com questões da profissionalização do escritor e da comunicabilidade da poesia moderna, dizia que o preconceito dos poetas contra a encomenda advinha não da possível baixeza, banalidade ou prosaísmo dos temas propostos, mas de um certo desprezo pela razão e pela atividade intelectual, numa aceitação comodista de que o homem nada pode por si mesmo. Certamente não esperaríamos que Haroldo de Campos, ex-tudo mas sempre poeta, viesse hoje endossar os princípios de racionalidade e construção do trabalho de arte, nos termos defendidos pelo poeta de Agrestes. Quem vive batendo na tecla da "razão antropofágica", do descentramento, contra o logocentrismo, só mesmo por motivos inesperados poderia aprontar a encomenda que um petista lhe solicitou, em nome da razão e da boa consciência política. Se atendeu o pedido, é porque tem uma noção pós-vanguardista e pós-moderna tanto da intervenção poética quanto do engajamento político, o que aliás dá idéia de como evoluiu o ideário construtivo da poesia brasileira de 1945 para cá, até desembocar em "Por um Brasil-Cidadão".
De qualquer modo, Haroldo de Campos fez um poema para Lula, e entrou para a campanha do PT inspirado pelo "engajamento poético de Maiakóvski". É o que ele próprio alardeia na matéria que fez acompanhar a publicação do poema, numa toadinha estratégica que repete as mesmas palavras do "salto participante" da imaculada poesia concreta, nos idos do pré-1964. Se, então, isso significava uma enorme concessão que a poesia pretensamente mais alta, pura e radical fazia aos imperativos impuros daquele momento histórico, cujas tensões políticas e sociais exigiam sacrifícios do artista, obrigando-o a tomar posição e alterar seus planos, agora, em 1994, o vanguardista consagrado pode chamar os refletores da mídia para acompanhar a entrega de sua encomenda. Nada mudou? A diferença é que, naqueles anos, a discussão se travava por meio de manifestos, propostas e polêmicas inflamadas - uma verdadeira batalha de poéticas -, em cujas idéias se acreditava, cada tendência política a seu modo, e dos quais resultariam, esperava-se, transformações sociais e culturais decisivas para o país. Ao passo que hoje, o que resta? Como professora de literatura que estuda o período, vejo-me obrigada a lembrar que, naqueles anos, Haroldo de Campos expressou num poema as perplexidades do poeta puro e esteticista diante da necessidade histórica de ação política, nos moldes da esquerda oficial da época. "Servidão de Passagem" (1961) definia bem a má consciência do intelectual burguês, culto e estranho à política, que precisava jogar fora suas panóplias, seus termos raros, seu refinamento artificial, para se solidarizar com a luta por reformas estruturais. Introduziam-se modestamente no reino da poesia pura a referência da miséria, do trabalho explorado e da fome, enfim, a referência do subdesenvolvimento brasileiro, em que o azul não é puro, as metáforas não são reais e a poesia é pouca. Era apenas a inserção (provisória ou não, tirem os leitores sua conclusão) do espaço da História no esteticismo mais abstruso. No Brasil, foi um acontecimento, sem dúvida, pois o curso do processo político empurrava o escritor a agir fora de suas motivações e mitologias privadas. Se havia um mérito pessoal aí, não se restringia ao âmbito narcísico da criação, uma vez que a urgência dos acontecimentos sobrepunha-se ao impulso pessoal de criação. Já nos dias de hoje, que energias profundas teriam mobilizado o vanguardista da mídia e dos saraus a homenagear o candidato do PT, em alto e bom som?
Trinta anos depois, o compromisso eleitoral com o candidato petista vem amparado por justificativas e explicações iguaizinhas às dos anos 60: "Por um Brasil-Cidadão" é uma concessão ao momento político, mas não implica, de modo algum, renúncia aos princípios de experimentação poética, aos quais o poeta diz se manter fiel. Se é possível ao escritor repetir o mesmo comportamento da juventude, certamente é porque está convencido de que a política e o país são os mesmos de outrora, e que ele pode se dirigir à intelligentsia e ao povo do alto de sua cátedra, como se nada tivesse se passado. Como prova disso, eis que outra vez se recorre a idéias, recursos e artifícios autorizados pelo poeta revolucionário mais oficial de todos, Maiakóvski - sempre invocado, no Brasil, para resolver dilemas do engajamento! Será que ninguém pode fazer poesia política, sem precisar recorrer a algum nome ilustre, bolchevique ou não, como que pedindo desculpas aos leitores, no caso presente, pelo pecadilho petista que está sendo cometido?
Se o mestre é Maiakóvski, vamos lá. O poeta cubo-futurista entendia a encomenda como encargo social, destinada a enfrentar "um problema cuja solução é concebível unicamente por meio de uma obra poética", a qual deveria assim expressar uma consciência clara do objetivo a alcançar pela classe social interessada na matéria. O objetivo de Haroldo de Campos, mais do que apoiar Lula e colaborar para a vitória deste candidato, é criar palavras de ordem (poéticas ou não) para serem gritadas a "plenos pulmões" em comícios e passeatas. Afinal, não é hoje o PT o partido político que levantou o nível e a seriedade da política brasileira, como lembrou recentemente o insuspeito Mangabeira Unger? E não estava Lula na liderança das pesquisas, quando a encomenda foi aceita? Portanto, era a hora certa para encenar o gesto histórico e ganhar a simpatia de uma faixa ampla e diferenciada de leitores. Boa ocasião para que o escritor, conquistando uma audiência inesperada, se regozijasse do êxito popular de sua criação. A coisa pode também ser vista pelo outro lado, como nos lembra, sem qualquer pudor, Ivan Teixeira: "Deve ter sido uma conquista para a campanha contar com o apoio de um poeta como Haroldo, cujo projeto é um dos mais rigorosos e coerentes da poesia no Brasil". À parte a bajulação, ele está insinuando que é uma maravilha para um partido de gente primária, poder contar com um poeta tão erudito, tão viajado, cosmopolitérrimo, com cacife de maioral, cuja seriedade, competência e coerência, acima da poesia e da ideologia, darão uma boa lição no petismo. Já não há nenhuma decisão histórica na qual as pessoas possam se engajar e pela qual valha a pena lutar? Quem faz arte política age por interesses individuais os mais inconfessáveis, ou então para massagear o ego, se tem algum. De fato, em 1994, os partidos no Brasil arregimentam à esquerda e à direita seus artistas, seus marqueteiros, seus publicitários. Ótimo se os primeiros podem apresentar suas credenciais vanguardistas.
Nesse sentido, vale acompanhar a franqueza das considerações de Ivan Teixeira, cuja resenha cito: "A outra face de 'Por um Brasil-Cidadão' é aquela do texto enquanto exercício de provocação. Por essa perspectiva, o poema ganha mais sentido se for lido como manifestação singular do programa geral do poeta. Com efeito, trata-se de um gesto resultante do conceito de arte como busca do imprevisto. Tendo praticado principalmente uma poesia hermética e intelectualizada - destinada sobretudo a leitores com experiência na melhor tradição da poesia universal - , Haroldo, ultimamente, tem escrito poemas de leitura clara e comunicativa. Assim, a melhor atitude diante de 'Por um Brasil-Cidadão' será considerá-lo depuração de uma das vertentes da poesia haroldiana (...). Não obstante, trata-se de um poema refinado. Sua estrutura simples baseia-se na enumeração ostensiva de versos formulares ainda que renovados por sutilezas sonoras e sintáticas, que ecoam na poesia popular brasileira desde os trovadores portugueses".
Peço ao leitor que se detenha nas palavras citadas: a adesão política é interpretada como exercício de provocação, que, por sua vez, seria um desdobramento do programa geral do poeta. Para o resenhista, tão irrisório é o significado histórico desta eleição, que mais vale o gosto do imprevisto, arma tradicional da vanguarda, que o pretexto da encomenda poética. O que importa aqui é a provocação: o poeta, emérito transgressor, escreve um poema político como quem não se subordina a nada, para reafirmar que está acima das regras e para surpreender seus leitores habituais, destruindo a mesmice onde ela estiver. Ao contrário de tudo o que se possa dizer do poema, deve-se considerá-lo sobretudo como um estratagema, porque é inconcebível que um poeta tão culto faça um texto tão simples, mas se é simples é porque é culto, e mais do que culto é principalmente "refinado": está inscrito na melhor tradição da poesia luso-brasileira e na própria obra do autor. Por que um poema para ser bom precisa ser "refinado"? Por que não pode ser simples, didático, engajado e até singelo? Exemplos na literatura não faltam, mas o resenhista está lembrando que o poeta precisa lisonjear a comunidade de leitores qualificados, a comunidade do seu coração, com a referência maiakovskiana, a declaração de extrema coerência e o rótulo de experimentalismo, os quais estão em foco no poema, mais do que o significado político que ele possa ter. Se o poema tem uma linguagem clara e comunicativa é para enganar os bobos, cujos desejos são atendidos e os sonhos realizados, porque os espertos, esses são capazes de nele ler um texto sofisticado, uma verdadeira exibição de técnicas, procedimentos e que tais. Enfim, Haroldo de Campos é poeta rigoroso e coerente a um grau que, quando faz o oposto do que sempre fez, sabe transmutar o que é simplório em algo refinado, onde ecoa a poesia desde os trovadores. Jamais ocorreria ao resenhista, como estamos vendo, admitir que um artista colaborasse despretenciosa ou engajadamente com uma campanha política, escrevendo refrões e versinhos simples mas eficazes. Este é um ponto a ser meditado.
Seguindo o raciocínio de Teixeira, o grande poeta, de seu pedestal, vai subverter a vulgaridade da política e demonstrar, mais uma vez, a qualidade de sua técnica vanguardista. Deixo que o leitor julgue as palavras de louvação: "Os que acreditam nas transformações imediatas de Lula devem ter visto no poema uma profecia apaixonada e messiânica, com a confortante hipótese de iminente realização. Ainda nessa linha de entendimento, houve leitores (e estes se manifestaram pela imprensa) que contemplaram no poema a expressão equivocada das expectativas do poeta. Embora admissível, esta é a menos esperada das leituras, pois, vinda de pessoas preparadas, desconsidera a idéia de que a poesia engajada, tal como a teorizou Maiakóvski, deve simplificar a matéria para intensificar sua penetração. Não leva em conta, também, o princípio elementar do fingimento poético". Noutras palavras: a poética pessoana do "poeta fingidor", até então sempre compreendida como comprovação de que a poesia moderna conquistara sua autonomia, não se confundindo com a esfera da subjetividade e da psicologia individual, estando, pois, livre dos condicionamentos imediatos da vida diária, foi promovida assim, e pela primeira vez - até onde eu saiba -, a justificação do oportunismo poético. O poeta político é também um fingidor? Haverá convicção na aposta poético-política de Haroldo de Campos? Ou a poesia política é sempre fingida? Tão ousada é a sugestão, que passei a olhar para o passado com outros olhos: o "pulo da onça" da poesia concreta também não terá sido um fingimento? O poeta-provocador, imbuído da estética do imprevisto, permite-se trocar de máscara a torto e a direito, com a liberdade de praticar todas as formas de mistificação, porém sempre driblando todo mundo com suas atitudes poéticas, políticas e mercadológicas.
Ao identificar no poema pró-PT uma grande realização de Haroldo de Campos nessa linha, Teixeira assume um ponto de vista pertinente e atual, bastante cínico e desencantado por sua vez, para dar legitimidade a qualquer mistificação que um escritor venha a praticar. Amparado na teoria do fingimento, ele se dispensa de discutir a matéria formulada poeticamente em "Por um Brasil-Cidadão", podendo fazer vistas grossas para o que está em jogo no poema e no cenário em que aparece. Como meu ponto de vista é outro, e não quero prescindir da forma como realização do sentido poético, prefiro me deter no que o poema diz. Mas como sei que no Brasil as questões de ética estão em baixa, não só na política mas também na cultura e na vida intelectual, seria um despropósito perguntar sobre as convicções políticas de um poema desse tipo, que intenciona pegar de imprevisto todos nós. Lembro que na mesma matéria da Folha de S. Paulo, o mestre da provocação dá a entender que não acredita em nada do que apregoa em seu poema (será esta sua provocação?) - nem no candidato que ora louva, nem em seu programa político, menos ainda nas idéias do PT. Faz aí questão de se proteger de alguma falha que, porventura, a profecia eleitoral de seu panegírico esteja cometendo, pois essa incursão no poema político-panfletário, assim como não implica renúncia aos princípios da experimentação estética, também não significa uma adesão partidária incondicional. Diz assim: "Não pertenço e nunca pertencerei ao PT, pois acho que o intelectual deve ser independente. Concordo com as atuais propostas de um socialismo democrático, mas tenho divergências com os senhores xiitas do partido" - palavras pronunciadas ao jornal, devidamente acrescidas da declaração de voto em Brizola no primeiro turno das eleições de 89. Em vez de uma declaração de simpatia ou confiança na transformação política (o mínimo a ser exigido num caso como este), o cidadão repete a lengalenga dos conservadores, para ressaltar que não trai sua arte nas situações mais adversas. Tão excepcional é sua independência intelectual, que até um encargo publicitário dá pretexto para que ele reafirme a fé na liberdade de criação! Lembro apenas que quem se superestima aos olhos da mídia pode já ter se rebaixado artisticamente.
É bom prestarmos um pouco mais de atenção no poema que, por certo, lançará novas luzes sobre as questões que nos interessam.
Ler o texto em voz alta, várias vezes, em tons diferentes, mas obedecendo ao seu impulso rítmico, é uma experiência curiosa, e, dirão alguns, próxima do riso. A cadência sincopada, sobrecarregada de batidas fortes e monótonas, apoiada na rima em "ão" e pontuada basicamente pela redondilha, com certos truques, quebras e licenças, pede tanto o tom cívico-celebratório da declaração adornada com gesticulações braçais típicas, quanto o grito, próprio à euforia dos slogans e palavras de ordem que animam manifestações políticas. Os versos martelam na cabeça sempre a mesma coisa, até chegarem à fluência encantatória do "lulalá lulalá lulalá" (cantarolado), que é interrompida pelo didatismo cavernoso do dístico final. O último verso retoma o título e a cantilena recomeça. Observe-se como a quebra da linha mais alongada e melódica, da canção petista citada, exige mudança de tom e ritmo para dar empostação solene à banalidade do chavão de ouro: "não vote em vão: vote em lula/por um brasil-cidadão". A pontuação, impondo uma pausa forte no meio do primeiro verso, quebra ideologicamente a redondilha em duas orações com força de slogan. A pausa na palavra "vão" acentua o peso da rima interna com "cidadão", e o "ão", pedal fônico do poema, amarra sons e sentidos, à maneira da versalhada de Violão de Rua.
Recursos convencionais de composição, misturados ao sonho da estrutura verbi-voco-visual, estão a serviço de frases assertivas, fáceis e primárias, cujo sentido de mão única é justificar a certeza do estribilho: vai dar Lula nas eleições de 94. No intuito de mistificar a candidatura do PT, Haroldo de Campos se dispõe a traficar com todas as esperanças: "quem quer terra/ vai ter terra", "quem tem fome/ vai ter pão", "adeus meninos de rua", enfim, o país vai ser moralizado, a reforma agrária vai ser feita, o Brasil vai ser integrado no sistema mundial etc. São prometidas, além do paraíso na terra, todas as mudanças estruturais que nunca vieram, e que as elites dirigentes estão sempre prontas a liquidar (a mesma mistificação que Collor aprontou em 89 e que foi denunciada pelo PT desde então). Noutras palavras: arrogando-se máxima liberdade de espírito, além de sua condição de ave de arribação petista, o poeta oferece ao partido tudo aquilo que não se coaduna com sua prática política e que, certamente, aos olhos da militância, deve parecer um atestado de atraso. Um intelectual simpatizante do PT antes de tudo perguntaria, sem qualquer afetação: como fazer uma campanha honesta, sem mentir e sem falsear as reais condições de mudança que a vitória de um candidato progressista pode trazer. Todavia, o messianismo não incomoda nem um pouco Haroldo de Campos, porque ele não age nem como artista, nem como intelectual; o que prefere fazer, como disse o resenhista, é uma "compilação estética das idéias do PT", expressa de "maneira fácil e não problematizante" (aqui, Ivan Teixeira revela sua preferência pela arte comercial, cuja vocação crítica é zero, sendo certeiro em identificar a vanguarda contemporânea como esta arte). Já que o comercialismo e a facilitação pesam mais que tudo, só restaria ao poeta e ao intelectual o espaço publicitário, no qual as apostas políticas e artísticas são rebaixadas a jogada de marketing - no caso presente, é o que se entende como margem de imprevisto e fingimento?
Assim, com algum esforço de aritmética e uma rima fácil - "como um mais dois são três/ vai dar lula desta vez" - pode-se ganhar as eleições. E tudo vai dar certo para o Brasil. Neste dístico, estribilho do poema, há uma certeza elementar, irretorquível, que descaetaniza ("como dois e dois são cinco") qualquer complexidade poética que possa haver numa soma. O problema é fazer um raciocínio desse tipo para fins eleitorais e colocar a moralização do país, a reforma agrária, a garantia de qualidade básica de vida, a retomada do desenvolvimento, na mesma relação paralelística. Como leitores de Jakobson, nunca nos esquecemos da força que o paralelismo tem na configuração do sentido do poema e, por isso, sentimos o quanto é palpável o menosprezo pela cultura política do eleitor. Nas duas primeiras estrofes, a construção sintática insiste em afirmar com todas as letras que vai dar Lula por uma questão de soma, a reforma agrária será feita por quem quiser, o Brasil vai desmentir a frase de De Gaulle. São previsões que o poeta garante, com seu profetismo ou sua autoridade intelectual, sem cogitar do emaranhado de problemas que cada uma delas envolve. Observemos a banalidade da imagem da "contramão" em que o país entrou: a década perdida, o colapso dos projetos de desenvolvimento, a crise política, são tratados como se fossem escolha voluntária de quem estacionou o carro no lugar proibido. Com um simples "adeus" romântico, à Gonçalves Dias, e pronto, a situação miserável dos meninos de rua se resolve. Exortações mágicas conjuram os males da "grande nação". Vai embora miséria, vai embora fome, vai embora sem terra, vai embora desemprego, porque o Messias vem aí - devidamente anunciado num hipérbato erudito que coloca sua vinda no fim do verso e sua ação cirúrgica num enjambement audacioso ("de um metalúrgico vem/esta operação cirúrgica/ que vai tirar da UTI/o brasil - grande nação"). O efeito é o seguinte: a força do vaticínio se acentua pela oposição do vai/ vem, pela metáfora-surrada doença/cura, pelo ufanismo desajeitado do aposto e pela surpresa de que o agente da transformação seja um operário. A preferência por um raciocínio simplificado, ao gosto da aritmética do um mais dois, retira da formulação verbal das redondilhas qualquer graça e humor que os contrastes absurdos e jocosos criam na poesia popular. Em lugar da alegria pela satisfação de um desejo temos a austeridade de um esquema pouco imaginativo. A bem da métrica e da rima, e lá vem um tal de "luís lula", para realçar, a despeito de revelar a falta de familiaridade com o candidato Luís Inácio, o efeito sonoro (paronomásia). Esta forma de intervenção do "anunciado" que vem salvar a pátria contraria, até onde se saiba, os princípios defendidos pelo PT, rebaixando-os a termos personalistas e carismáticos. Outro disparate é a imagem do operário que o poema apresenta: a rima esdrúxula "metalúrgico/cirúrgica" (de inspiração maiakovskiana, segundo declara o poeta ao jornal), em vez de exaltar as qualidades do candidato, sua confiabilidade e eficiência políticas, associa operário e ciência à maneira do ideário científico- tecnológico que a poesia concreta sempre divulgou (reafirmado mais uma vez em artigo recente por Augusto de Campos - "Invenção poética escapa de morte precoce", O Estado de S. Paulo, 4/9/1993). Por ser torneiro mecânico, Lula é quem tem a ciência da máquina, conhece, ama e se identifica com seu torno, estando assim apto a fazer, com a "máxima objetividade", a cirurgia que vai tirar o Brasil da UTI ("O operário quer um poema racional, que lhe ensine a agir e pensar - como a máquina lhe ensina", porque, acrescenta Décio Pignatari em célebre passagem da Teoria da Poesia Concreta, o "operário ama a máquina"). Aqui a idealização do operário e da técnica certamente remete ao imaginário da mecanização e da industrialização dos tempos da "construção do socialismo em um só país". Por sua vez, a eficiência da UTI está no fato de ser uma sigla publicitária, cujas maiúsculas são o único destaque propriamente visual do poema. Uma gracinha poética que não disfarça o gosto já passado por siglas - e se o mundo der numa sigla, está tudo resolvido.
Ao longo do texto, o mal-estar maior é provocado pela idéia de Brasil-Cidadão que surge da prodigiosa intercessão de Lula. A cidadania é uma outorga de direitos feita pelo Esperado. Contudo, no esforço de organização e mobilização que a sociedade brasileira vem realizando, à margem da falência do Estado e do clientelismo, quem fala em cidadania está ativamente lutando por seus direitos, pelo cumprimento da lei, pelo aperfeiçoamento das instituições, para que a sociedade seja menos excludente etc., e sabe que as conquistas dos movimentos sociais dependem de uma luta política miúda e diária, pois nunca virão de mão beijada. Nas últimas décadas o povo brasileiro tem inventado formas de organização mais autônomas e consistentes do que é capaz de supor um vanguardista, que as desconhece. Por isso, justamente no verso em que o Brasil "vai virar país-cidadão" - impulso desejante do poema inteiro, em que tudo "vai dar", "vai ter", "vai sair" etc. -, ritmo e sentido se atropelam. Tanto a mudança política tem um quê de irracional que a certeza do vaticínio depende de uma licença poética, a não ser que se coma o hiato da palavra "país". Além do mais, a transformação que deveria promover a cidadania realiza em vez o destino mítico da unidade nacional. O Brasil cidadão só cabe na métrica graças ao truque do poeta que tem autoridade para acrescentar uma sílaba à redondilha, do mesmo modo que sua majestade "luís lula" tem poderes para decretar a redenção do país. Por rebaixar o tom do debate político a messiânicos acenos de mudança imediata, por estimular mistificações de toda ordem, quando caberia ao intelectual se manifestar criticamente, o poema desqualifica a imagem do candidato e a inteligência de seu eleitor.
É óbvio que a surpresa deste poema não está na sua forma. De qualquer maneira, ele demonstra por um mais dois que a função poética da linguagem está em pleno funcionamento. Mas esta plenitude, o que quer dizer? Que "sutilezas sonoras e sintáticas" são capazes de renovar as fórmulas e clichês enumerados, dando acabamento refinado ao texto? É inegável a habilidade técnica do poeta no trato com estruturas lingüísticas elementares, trocadilhos de aparência visual, fórmulas previsíveis, buscando à antiga maneira concretista uma relação estreita (o chamado isomorfismo) entre forma e fundo, só que voltada agora para o popularesco. "Por um Brasil-Cidadão" desconcerta-nos ao eleger um dos ritmos poéticos mais tradicionais, a redondilha, em vez de qualquer outro gênero ou forma de expressão que o poeta tem freqüentado nas últimas décadas. Preferindo assim o que existe de mais sedimentado na tradição popular, por seu evidente rendimento comunicativo, não por suas virtualidades expressivas, sempre valorizadas na tradição tanto popular quanto culta. Enquanto, no passado, a posição de vanguarda idealizava o poema comunicativo de largo alcance, formalizando propostas de economia vocabular, redução sintática, síntese, para atingir o "mínimo múltiplo comum" da linguagem verbal, isto é, a máxima visualidade da poesia do futuro, agora tudo pode descambar para a simplificação do verso, destituído de maleabilidade rítmico-sintática e amplitude semântica. A redondilha, para o poeta, é uma espécie de automatismo, mais do que o verso fácil e musical de gosto romântico-popular. Desse modo, o concretista que banira o encadeamento temporal do verso, fica desobrigado de transformá-lo conforme as exigências de uma técnica mais avançada ou vanguardista. À primeira vista, tal procedimento denotaria uma idealização reverente da tradição popular, como se o povo fosse entidade fora do tempo e, por isso, insensível às formas poéticas menos tradicionais. O povo que não vota em vão em 1994 é aquele povo romântico que cultiva suas tradições à margem da modernização conservadora e que na sua ingenuidade e submissão não foi modificado pelas formas mais cruéis e perversas do capitalismo no Brasil. Mas atribuir a tal emprego da redondilha a boa intenção de quem glorifica a resistência popular talvez seja otimismo demais. Na ocasião desta eleição presidencial, a única coisa que o poeta sabe fazer, com sua exortação mágico encantatória, é celebrar o preconceito conservador que diz que "o povo é bom aluno" porque na labuta "aprendeu sua lição". Qualquer um reconhece aí a mistificação sentimental do paternalismo brasileiro que civicamente exalta as qualidades de submissão, obediência e sacrifício populares. A imagem do povo que salta de "Por um Brasil-Cidadão" é uma licença (poética e sociológica) que não corresponde à dureza da vida em nosso país, nem ao povo que consegue resistir a essa dureza. Mesmo embalada nas coitadas das redondilhas do "artista-pop dos anos 90", pode haver imagem mais inexata?
Ainda assim, o poema ilumina aspectos inesperados do debate sobre o engajamento do artista no contexto brasileiro. Ao contrário da versão corrente, "Por um Brasil-Cidadão" revela o parentesco profundo que o poeta concreto tinha com seus maiores antagonistas no debate cultural dos anos 60, os poetas reunidos no Violão de Rua, cuja orientação político-ideológica é reiterada, com trinta anos de distância. Podemos agora pensar que não foram a sofisticação e o cuidado extremo com o lay-out do poema o empecilho para que a poesia concreta participasse dos de bates sobre arte popular revolucionária, dos Centros Populares de Cultura. Como se vê, "Por um Brasil-Cidadão" é um poema nacional-desenvolvimentista, à maneira dos anos 50, ao acreditar que o latifúndio é que "estrangula" o país; é populista, pois decreta que o "povo é bom aluno" e aprende as lições; é moralista, ao constatar que o povo é bom porque trabalha, sua e sofre; é messiânico, por entender que alguém possa representar as forças redentoras do bem, sem contradições. Em resumo, as posições políticas e sociais do CPC e da poesia concreta não eram lá tão diferentes, o mesmo se diga do primarismo artístico que um poema como este faz questão de escancarar. Se não houve na época um maior entendimento entre eles, tal ausência de diálogo pode ter sido devida, especulemos, à falta de convicção ideológica e ao juvenilismo concretistas. Enquanto o Partido dos Trabalhadores começou criticando o populismo, o peleguismo sindical e a retórica nacionalista, o mais importante pensador da vanguarda no Brasil escreve em homenagem a Lula um hino nacionalista, populista e cultor da personalidade. Se ele não viu a novidade histórica que o PT representa na vida brasileira, muito menos se deu conta de que seus próprios esquemas estão marcados pela desinformação política, pela desatualização histórica, pela desqualificação literária e, salvo engano, pela imaturidade psicológica (só esta é que pode sustentar uma concepção de mundo na qual não exista qualquer bloqueio à realização de desejos, inclusive dos desejos populares) - o que impede o exercício da poesia política esteticamente conseqüente.
"Por um Brasil-Cidadão" foi um ato poético premeditado em todos os possíveis efeitos que poderia produzir. Ao ponto de ser imediatamente transformado, pelo próprio autor, em feito heróico de uma pobre epopéia destes tempos de mídia e mercado. Se havia alguma afinidade política, por que Haroldo de Campos não deu sua contribuição à campanha do PT, fundindo-se na tendência geral? Por que fez questão de assinar o poema hino? Não seria esta uma ocasião das mais propícias para levar a efeito aquele ideal de anonimato poético dos anos 50, que, por seu caráter juvenil, coletivizante e vagamente socialista, era o lado mais bonito da poesia concreta? O ex-concretista talvez tenha mais noção das fraquezas de seu poema do que possamos imaginar, tanto que, como vimos, sente necessidade de explicá-lo por fora, de modo a manter incólume a imagem do artista complexo, defensor incansável da alta qualidade da linguagem da poesia. Jamais admitiria, para consumo externo, a fragilidade de um texto escrito por encomenda, com intencionalidade político-panfletária. Em 1945, Drummond escreveu "a galope" - como ele próprio diz - o "Poema de Março de 45", em prol da campanha da anistia e das liberdades democráticas. Foi publicado simultaneamente em três jornais da época, por iniciativa da campanha. Certamente o nosso poeta maior não pretendia colher dividendos políticos ou poéticos com isso; tinha consciência clara de que o resultado não era dos melhores, o que em nada desmerecia suas convicções sobre a importância da luta pela redemocratização do país, nem levantava suspeita sobre o valor e a relevância de sua obra. De modo que não precisou sobrepor ao gesto político a defesa de qualidades que o poema não tinha, ou justificar os procedimentos enfáticos da dicção escolhida pelo grau de elaboração artística de sua produção anterior.
No caso de Haroldo de Campos, o problema é ele escrever um poema regressivo, infantilizado, popularesco, alheio à vida e à poesia atenta ao contemporâneo, pretendendo a despeito disso alçá-lo a contribuição decisiva para uma campanha eleitoral e, ao mesmo tempo, acompanhado por um coro de capachildos, dar-lhe o estatuto de obra genuína de experimentação estética. Sabemos que o PT, como os demais partidos, tem dificuldade de delinear um programa cultural adequado à complexidade vertiginosa da circunstância brasileira, com tantos desníveis e carências. Na falta desse programa, artistas e intelectuais têm sido requisitados sobretudo para exibir ao grosso da população (ainda desinformada sobre as idéias do partido) uma fachada mais simpática, popular e light. Nesse arrastão, recalca-se o fato de que muitas dessas figuras estão comprometidas até à raiz dos cabelos com o obscurantismo e a desqualificação promovidos pela mídia, pelo capital e pela cultura enlatada made in Brazil. Ao contrário de sua aparência popular, essa fachada talvez queira também dizer que a transformação política, mesmo a mais temida de todas, não seria tão radical a ponto de transformar a cultura de massa e seus meios de difusão, que, sob um bom socialismo, poderiam continuar como estão. Entretanto, o baixo nível e o comercialismo da indústria cultural que já tomaram conta da sociedade brasileira, de cima a baixo, inclusive da produção culta de poetas e intelectuais aparentemente críticos, devem ser atacados de frente por qualquer tendência que intencione elevar o nível da cultura política, da democracia e, por que não, a qualidade de vida no país.
lumna Maria Simon é professora de literatura da Unicamp, autora de Drummond: uma poética do risco (Editora Ática) e co-autora da antologia Poesia Concreta (Coleção "Literatura Comparada", Editora Abril)