Cultura

A normalidade institucional política convive hoje com as desigualdades econômicas e sociais de uma maneira que muitos de nós não poderíamos prever como viável, quando lutávamos pela democratização

Ler os jornais brasileiros durante a vigência da censura prévia nos tempos da ditadura militar brasileira era uma arte de interpretação dos sentidos ocultos. Chegava mesmo a ser, pelo menos para a pequena faixa de nosso povo que lê jornais, uma atividade que tinha um certo prazer lúdico. Às vezes, entretanto, não sei se por algum cochilo do censor - hipótese que considero muito improvável -, as notícias surgiam com toda sua força. Devia ser o ano de 1974. A entrega de uma carta a um visitante oficial norte-americano em Brasília - Ted Kennedy? - por uma senhora que, rompendo toda a segurança formada em torno da autoridade, conseguiu fazer-lhe chegar um documento denunciando as condições dos presos e exilados políticos brasileiros. A senhora que enfrentava todo aqueles indefectíveis pelotões, que cercavam todas autoridades nacionais ou estrangeiras à época, chamava-se Therezinha Zerbini. Mais importante, entretanto, do que o americano receber as denúncias foi a opinião pública brasileira tomar conhecimento da existência de perseguidos políticos em nosso país - a ditadura militar sistematicamente negava a existência de presos políticos e de tortura. Com esse ato heróico Therezinha Zerbini convocava as brasileiras, mulheres e mães como ela, a lutarem pela anistia aos presos e exilados políticos. Daí por diante foram sendo formados Comitês Femininos pela Anistia nas principais cidades do país.

O movimento pela anistia ganhou uma presença de muito destaque, entretanto, quando, em fevereiro de 1978, houve o lançamento do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) no Rio de Janeiro por um grupo de advogados de presos políticos que se associava em um manifesto por anistia ampla, geral e irrestrita com a Ordem dos Advogados do Brasil e a personalidade do general Peri Beviláqua que fora um membro do comando militar Redentora de 1964. A presença de um dos líderes militares golpistas em um movimento democrático contra a ditadura dava a todos nós brasileiros a dimensão das dificuldades que a ditadura tinha para manter o governo da Nação como um departamento do Estado Maior das Forças Armadas. Já havíamos testemunhado vários importantes civis que haviam abandonado o barco do golpe, mas um militar da importância do general Peri Beviláqua, com palavras de ordem tão eloqüentes quanto aquela da anistia era a primeira vez. Aquilo nos comprovava que os dias da ditadura estavam contados. A ditadura militar tentava ganhar tempo com a abertura lenta, gradual e segura da dupla Geisel & Golbery.

Poucos dias depois do lançamento do CBA no Rio de Janeiro, em São Paulo, representantes de várias entidades de profissionais de classe média e de estudantes, mais alguns deputados do então único partido oficial de oposição - o MDB - lotavam o Teatro Ruth Escobar para lançar o movimento pela anistia na cidade e, assim, fundar o Comitê Brasileiro pela Anistia/SP. Foi decidido que esse Comitê seria formado por um conselho constituído por representantes de cada entidade ou categoria presente. Isto deu-lhe um caráter de representação muito amplo. Essas entidades de representação de profissionais de classe média eram, naqueles anos, o grande e talvez único respiradouro democrático do país. A militância política de resistência à ditadura se fazia com muita vida entre jornalistas, médicos, advogados, professores, estudantes, arquitetos, artistas e intelectuais em geral. O movimento operário era representado pelas oposições sindicais, que apesar de muito combativas, tinham uma representatividade sempre restrita. Quando os trabalhadores, em especial do ABC, entraram em cena - foi um pouco mais tarde - a ditadura se vergou.

Um aspecto do movimento de anistia que para mim foi muito educativo foi o da convivência, pela primeira vez, com representantes dos mais variados matizes de pensamento democrático e de esquerda, possibilitando a elaboração de um programa e uma prática de unidade política. José Gregori, Ruth Escobar, Luís Eduardo Greenhalg, Vânia Santana, Marcelo Barbieri, Maria Augusta Capistrano, Raquel Pomar, Perseu Abramo, Judith Klotzel, Rubens Boffino, eram nomes que estavam entre os fundadores e membros da Comissão Executiva do CBA/SP. A convivência entre nós era de muito companheirismo e respeito político. A franqueza na crítica possibilitava uma unidade de ação que era admirável. Essa convivência produtiva na diversidade foi a ante-sala da frente de esquerda que fundou o PT em 1980.

Rapidamente anistia ampla, geral e irrestrita se tornou uma palavra de ordem de todo o movimento democrático. Formavam-se CBAs em cidades grandes e médias espontaneamente. Para unificar nacionalmente foi formada uma comissão executiva dos movimentos de anistia. Era uma constatação do grau de adesão da opinião pública uma propaganda que dizia "a loja tal promove uma liquidação ampla, geral e irrestrita". Avaliávamos que a anistia viria com a "queda" da ditadura militar. Não sabíamos ainda a capacidade de resistência e sobrevida que ela teria.

A anistia veio em 1979. Veio ampla demais. A ditadura submeteu ao Congresso um projeto de lei, que o aprovou, concedendo anistia tanto às suas vítimas quanto aos seus algozes. Foi a anistia recíproca. Estavam anistiados todos aqueles que tivessem cometido "crimes políticos" - os subversivos - como também aqueles sicários e torturadores que foram o instrumento criminoso de sustentação da ditadura militar pelo terror. A ditadura se auto-anistiava.

A ditadura militar era uma expressão política de uma hegemonia socio-econômica de uma elite que então, como hoje o faz, lida no seu cotidiano de uma maneira ditatorial com o restante da população. Sabemos que a sociedade brasileira é uma sociedade complexa; sabemos que a economia brasileira é uma economia complexa; mas a dominação de classe é muito simples: é no pau! A política de Estado é mais ou menos democrática ou ditatorial dependendo da conjuntura internacional ou da correlação política interna. As relações sociais se dão sempre através de uma dominação da mais pura feroz truculência primária.

Neste último ano comemoramos os 15 anos da promulgação de lei de anistia. A normalidade institucional política convive hoje, em nosso país, com as desigualdades econômicas e sociais de uma maneira que muitos de nós, atrevo-me a dizer que seria a maior parte, não poderíamos prever como viável quando lutávamos pela democratização naqueles tempos de ditadura. O agravamento da concentração de riquezas, a insensibilidade dos políticos - que por sinal são os mesmos de então em sua substância - têm levado a que grande parte daqueles que lutaram naquela época, (sejamos francos: uma parte importante foi cooptada para fazer a política dos de sempre) hoje tenha dúvidas acerca da importância das conquistas democráticas como caminho para um avanço democrático nas relações sociais e econômicas.

A luta por eleições diretas em 1984 foi o passo seguinte do movimento democrático. A adesão de milhões que lotaram as praças mostrou-se insuficiente para derrotar a ditadura. O processo político se deu de forma a que o governo quer eleito por Estado Maior, quer por via do Colégio Eleitoral ou mesmo pelo voto direto mantivesse o compromisso de manter as formas hediondas de controle popular. Festa na casa grande, porretada e terror na senzala.

A tortura e o terror como forma de controle social continuam sendo a grande arma do poder de polícia. Os sicários matam e ainda encontram importantes setores da sociedade que não economizam aplausos e manifestações de apoio. Em novembro de 1993, em plena era de normalidade democrática brasileira tropas da polícia militar invadiram o presídio do Carandiru, na capital de São Paulo, para enfrentar uma manifestação de presos que se encontravam encarcerados nas piores condições humanas, e mataram mais de cem prisioneiros da forma mais brutal, sem nenhuma condição de reação um verdadeiro massacre. Tudo foi muito bem documentado pela imprensa.

Artigos, fotos e filmagens foram feitas e publicadas - com poucos dias de atraso, é certo, pois havia o receio de atrapalhar a eleição de Paulo Maluf que disputava o segundo turno com o candidato do PT, Eduardo Suplicy -, depoimentos e testemunhas apontavam a covardia da carnificina que fora autorizada pelo próprio governador do estado ao seu secretário de Segurança. Houve protestos dos defensores dos direitos humanos, mas o que nos chamou a atenção foram as manifestações relativamente importantes de apoio à ação militar. Há uma parcela grande na sociedade que acha que se deve resolver as questões de justiça à bala, numa clara manifestação de descrença nas leis e justiça como forma mais civilizada de punir e reprimir o crime.

A participação das Forças Armadas nas ações policiais no Rio de Janeiro mostra-nos como há, até hoje, um pensamento de direita vigorando no enfrentamento à pobreza tanto no governo quanto na sociedade civil. Quem a conhece sabe como é complexamente organizada a população dos morros cariocas. As décadas de resistência possibilitaram que, apesar de pobres, aquelas pessoas, através de rede de solidariedade mútua, criassem um grau de cidadania social e cultural que não conheço em outras metrópoles brasileiras. Como a economia do Rio de Janeiro foi duramente atingida pela crise do Estado brasileiro - poderia arriscar a dizer que foi até mesmo mais atingida do que aquelas de outras regiões do país - o povo das favelas ficou à margem de tudo e teve que encontrar formas de sobrevivência que nem sempre estão sob o título da legalidade. O amor e ódio que a favela carioca desperta no resto do país é uma constante em nossa história. O mesmo Itamar Franco que dionisiacamente no mesmo ano de 94 se divertiu a valer no carnaval carioca dos bicheiros e traficantes deu a ordem ao Exército que faça as ações de intimidação popular como não víamos há muito tempo. O exercício de tropas foi abençoada pela Santa Madre e apoiada pelos políticos de bom tom. A classe média faz de conta que agora tem segurança para comprar a sua droga em paz.

As Forças Armadas continuam sem necessidade de disfarce: prestam-se a ser instrumento do terror contra os de baixo da forma mais brutal. A invasão dos morros é no Rio de Janeiro. O alvo é todo o Brasil. A economia brasileira produz muita riqueza e uma massa enorme de excluídos que é mantida calada sobre um terror cotidiano.

A direita está aí. Muito viva e dominante. Sua base ideológica, social e econômica é bem maior do que pensávamos na época da ditadura militar. Resultados eleitorais mais à esquerda podem nos levar a crer que a sociedade nas suas entranhas faz o mesmo movimento. Às vezes é verdade. A política é a expressão do social mas não de uma maneira imediata e mecânica. A descoberta de Lampedusa, no seu romanc Il Gattopardo - mudar para manter-, mostra-nos o quanto de manobra possível têm os de cima para submeter os de baixo.

O fôlego da oligarquia dirigente em encontrar formas de enfrentar o crescimento da força política dos trabalhadores tem mostrado uma capacidade de sobrevivência estupenda. Essa capacidade que os conservadores têm de se manter sempre no governo não vem apenas de sua grande capacidade de articulação e cooptação política - eles têm políticos capazes e força econômica que lhes dá o que o dinheiro pode comprar-, entretanto, sua maior força reside em uma base social relativamente grande que comunga ideologicamente com o pensamento reacionário: descrença na democracia e preconceito contra quem trabalha - a cidadania efetiva é de poucos. A persuasão continua sendo elemento mais forte do que a realidade como força política, essa é a verdade.

Hélio Bacha é militante petista, fundador do Comitê Brasileiro pela Anistia/São Paulo e membro de sua comissão executiva