Nacional

Antonio Carlos Magalhães elege com folga seu sucessor, mete o bedelho no governo federal de plantão e é quase uma unanimidade estadual

Nos duros tempos da ditadura militar que assolava a pátria idolatrada, salve salve, era fácil dividir ideologicamente o tabuleiro da baiana (e da brasileira, I presume!). Os esquerdistas, em geral, e os torturados e presos políticos, em particular, estavam, claro, do lado de Deus. O então governador Antonio Carlos Magalhães e toda a camarilha que comandava, com mão de ferro, habitavam, sem dúvida alguma, as entranhas malignas do Diabo. Era assim, - cristãmente - que militantes marxistas dos mais variados matizes mergulhados na clandestinidade pareciam ver o mundo. O gorducho político baiano - portando a capa e a espada do demônio - certamente povoou milhares de pesadelos de jovens baianos idealistas sempre dispostos a dar a vida - se preciso fosse (e quase sempre era) - pela libertação do país das mãos e botas do imperialismo ianque.

Embebedados por coquetéis ideológicos elaborados a partir de doses generosas de vodca Popov e pinga Saborosa, salpicados por gotas de Stalin, Lenin, Mao, Fidel, Guevara e fortes pitadas de São Francisco de Assis, Irmã Dulce, Geraldo Vandré e Bob Dylan, nossos heróis da resistência não titubearam em reconhecer naquele cavaleiro de gorda figura a mais completa tradução de Lúcifer, Belzebu e outros vilões das trevas. Claro, imaginavam que - tal e qual acontecia nos livrinhos de religião decorados nos bancos escolares - o "bem" venceria o "mal". E, enfim, a Bahia - num happy end cecilbedemiliano - se livraria para sempre das garras afiadas daquele representante da "camarilha militar" que queria tomar conta do Brasil.

Afinal, enfim sós, povo e comunistas em geral viveriam felizes para sempre e - unidos - jamais seriam vencidos.

Como a vida - e a morte - não era nada daquilo que nossos ingênuos e bravos heróis imaginavam, deu zebra!

Duas décadas depois desses tempos de guerra e paz ( ... e de traumas seguidos que nos fizeram engolir atos institucionais de grossos calibres, congressos dispostos a dizer um sonoro não às diretas já - apesar do povo nas ruas - , Tancredo Neves morrendo ao vivo e a cores em cadeia nacional de TV, sucedido por um presidente marimbondo de fogo, outro acusado de consumir cocaína por via anal e um terceiro que não conseguia sair da fase oral e vivia, gabola, expondo ao público as aventuras amorosas que parecia protagonizar ...) e após uma lufada de conservadorismo que varreu o planeta e transformou o socialismo num artigo não exatamente de primeira necessidade - pelo menos até o capitalismo tirar o último de seus truques da cartola -, o tabuleiro da baiana virou de ponta-cabeça.

Mexido (aquecido e temperado) por tais tormentas (e outras cositas más), o caldeirão baiano fundiu Deus e Diabo num vatapá só. Bastante apimentado ainda, claro, mas cujo rei - primeiro e único - é agora aquele vilão arquetípico de história infantil que assustava os ingênuos e bem-intencionados comunistas dos anos 70: Dom Antonio Carlos Magalhães.

Resumo da ópera: Aqui & agora, Deus é o Diabo na terra no sol (perdão Glauber!).

Intimidade com o poder

Dom Antonio Carlos Magalhães - apesar do olímpico desprezo que lhe reservam intelectuais, digamos, ainda não engajados nos novos tempos - é, há exatos 40 anos, uma figura carimbada da vida política nacional. Com a enorme pança que Deus e a gula por feijoadas, doces e chocolates em geral lhe deram, desfila, com garbo e esplendor, pelos salões atapetados dos quatro poderes pátrios - incluindo-se a imprensa, em que o jornalista que ingressou na profissão aos 16 anos (em 1943, no vespertino Estado da Bahia, dos Diários Associados, onde escreveu até 1960) priva da intimidade de Dom Roberto Marinho, dono da Rede Globo, e de Dom Roberto Civita, comandante-em-chefe do império Abril. A bordo de um savoir-vivre capaz de fazê-lo amigo influente de presidentes tão diferentes quanto Juscelino Kubitscheck e Ernesto Geisel, o líder baiano é uma prova inconteste de que a política é a arte de estar no lugar certo na hora certa, apoiando as pessoas certas, dizendo as coisas certas e, last but not least, fechando a boca na hora exata.

Não é à toa, portanto, que, quando Fernando Henrique Cardoso - o mais intelectual dos nossos presidentes (afinal de contas, FHC parece saber a diferença entre Juliette Grecco e Mireille Mathieu) - chega ao poder, Dom Antonio Carlos Magalhães continue se revelando um dos mais influentes políticos do país. Teve a mesma intimidade com Castelo Branco, Garrastazu Médici, João Batista Figueiredo, Tancredo Neves, José Sarney, Fernando Collor de Mello e Itamar Franco.

Foi bem antes do golpe militar de 1964 - quando ACM entrou definitivamente no hit parade político nacional -, no entanto, que a história de adesão ampla, geral e irrestrita aos presidentes de plantão começou. Já deputado federal e residindo no Rio de Janeiro, aproveitou a confiança nele depositada por Juscelino Kubitscheck - dando-lhe o número do telefone pessoal (45-6995) - e exagerou na dose. Passou a ligar, religiosamente, para o presidente todos os dias às sete da manhã. A atitude insistente lhe valeu algumas confidências presidenciais mas rendeu um apelido não exatamente abonador: "Despertador de JK".

Talvez num rasgo de sensibilidade política capaz de perceber que o governo de ambos não teria muito futuro, Dom Antonio Carlos Magalhães nunca morreu de amores por Jânio Quadros e João Goulart. No primeiro, apesar de colega de partido - ambos pertenciam aos quadros da União Democrática Nacional (UDN) -, atirou para matar. A gota d'água fora um ato impensado de Jânio. O presidente decidiu afastar da Reitoria da Universidade da Bahia o professor Edgard Santos - pai de um futuro inimigo político de ACM (Roberto Santos), que então realizava uma administração exemplar e, além disso, o nomeara professor-adjunto da Faculdade de Medicina.

ACM não perdoou, telegrafou. Em curto telegrama, recusado pelos Correios, disparou: "A mesquinharia de seu gesto dá a medida do seu caráter".

Golpista em 64

Com João Belchior Marques Goulart suas relações foram ainda mais bélicas. Da Câmara Federal, onde exercia o segundo mandato de deputado, disparava discursos-torpedos-mísseis diários contra o presidente de plantão. Foram tantos e tão caudalosos que justificaram a edição de um livro, o qual Dom Antonio Carlos Magalhães intitulou Não Era Fácil Ser Revolucionário. Foi a senha para se aliar com as articulações político-militares que deflagrariam o golpe militar de 1º de abril de 1964.

Consagrava-se neste momento o destino reservado pelos deuses (ou demônios - só para lembrar/homenagear os ingênuos heróis dos tempos da luta contra a ditadura militar) e que faria Dom Antonio Carlos Magalhães não se afastar do poder nos trinta anos seguintes - não importando quem ocupasse o cargo de presidente da República Federativa do Brasil.

A longeva relação de Dom Antonio Carlos Peixoto de Magalhães com o poder começou cedo. Filho de Francisco Peixoto de Magalhães Neto, um professor da Faculdade de Medicina que por duas vezes fora deputado federal, ACM iniciou-se na política ainda de calças curtas. Estudante do curso ginasial do Colégio Estadual da Bahia, estreou como orador exigindo "que o Brasil entrasse na guerra contra o nazi-fascismo". Pegou gosto pela causa e tornou-se um exaltado líder estudantil. Entre assembléias e aulas, arranjava tempo para jogar futebol. Sem nenhum brilho, foi flagrado diversas vezes atuando como lateral-direito do time juvenil do Esporte Clube lpiranga, de Salvador.

Ninguém precisou dizer ao jovem Antonio Carlos que era melhor orador do que jogador. Resultado: o futebol brasileiro perdeu um perna-de-pau e a política brasileira ganhou um médico - ACM se formaria em 1952, aos 25 anos, mas quase nunca exerceria a profissão. Recém-formado, trocou eventuais salas de cirurgia pelos salões da Assembléia Legislativa baiana, onde estreou como redator de debates. Sem papas na língua, o jovem polemista estava sempre disposto a não economizar adjetivos para enaltecer as virtudes de seu chefe político - o então senador e, posteriormente, governador, pela UDN, Juracy Magalhães.

Destempero verbal

No remoto ano de 1954, Dom Antonio Carlos Magalhães começava a exercitar um estilo que o consagraria pela vida afora: a arte de - para usar uma expressão bem baiana - não levar desaforo para casa. Ou - como preferem jornalistas com quem costuma eventualmente trocar impropérios - o estilo bateu-levou.

Não era incomum deputados desavisados - que se atreviam a falar mal em seus discursos de Juracy Magalhães - serem surpreendidos por apartes claramente anti-regimentais disparados pelo dublê de jornalista e médico:

- Corrupto é você, canalha! ....

O destempero verbal seria uma marca inconfundível do estilo ACM de fazer política nos 40 anos seguintes. A ponto de ganhar um apelido nada lisonjeiro: Toninho Malvadeza. A alcunha fora, na verdade, uma invenção do ex-prefeito de Salvador, Mário Kertész, (uma das muitas criaturas que se revoltariam contra o ser político que o criou). O General Golbery do Couto e Silva - uma das eminências mais pardas dos tempos da ditadura militar -, no entanto, se apropriou da expressão e se encarregou de divulgá-la nacionalmente.

Em síntese: com ACM era escreveu não leu, pau comeu.

O lado destemperado de Dom Antonio Carlos Magalhães tem especial ojeriza a jornalistas excessivamente curiosos ou absurdamente mal-informados. Na Bahia, já viraram lenda os acirrados tiroteios verbais - não exatamente de alto nível - entre o político e seus entrevistadores. No final dos anos 80, diante de uma pergunta que achou impertinente, feita pelo repórter de um canal de TV pertencente a um rival político da época - o deputado federal Pedro Irujo -, disparou, sem dó, nem piedade (Tirem as crianças da sala!):

- Diga a seu chefe que vá à puta que o pariu ....

Pano rápido.

O alvo da ira de Dom Antonio Carlos Magalhães pode também ocupar níveis hierárquicos do primeiro escalão da República. O ministro da Aeronáutica do governo Figueiredo, Délio Jardim de Matos, por exemplo, pisou nos calos de ACM ao fazer um discurso, em 1984, no aeroporto, de Salvador: acusou-o de traidor. Nada santa decisão! (O político baiano havia chocado setores mais conservadores do governo ao anunciar uma súbita, radical - e esperta - mudança de rota em relação à sucessão presidencial. Em vez de apoiar Paulo Maluf, ACM mudava-se com malas e bagagens para a campanha de Tancredo Neves e, em seguida, para os braços peludos de José Sarney, de quem, aliás, se tornaria um fiel colaborador).

Délio Jardim de Matos, irado com a guinada do político baiano, disparou publicamente (auge do desaforo, no dia do aniversário de ACM, a 4 de setembro!):

- Antonio Carlos Magalhães é um traidor...

Rápido no gatilho, ACM deu o troco:

- Traidor é quem apóia corruptos...

Políticos de oposição que eventualmente abocanham algum cargo público de importância na Bahia, ACM não perdoa: dispara a metralhadora giratória, sem pena. O ex-governador Waldir Pires - que teve a chance não aproveitada de provar que a oposição tinha capacidade de governar o estado - é um dos alvos preferidos do destempero verbal de Dom Antonio Carlos.

Vive às turras com a atual prefeita de Salvador, a tucana Lídice da Mata, que, em tempos idos, a bordo do Partido Comunista do Brasil (PC do B), foi um daqueles jovens idealistas dos anos 70 que achavam Dom Antonio Carlos Magalhães a mais completa tradução do demônio fascista que abria as asas sobre nós. Nos últimos festejos do 2 de Julho - data em que se comemora a Independência da Bahia - eles foram flagrados, em diversos momentos do desfile que tiveram de acompanhar juntos, em bate-bocas explícitos, trocando desaforos e xingamentos nada edificantes.

No final de novembro de 1994 mais tiroteios verbais em cena aberta. Aos jornalistas interessados em saber quem iria sugerir para o Ministério de Fernando Henrique - um esporte praticado com certo prazer por nove entre dez profissionais da imprensa brasileira naquelas semanas -, ACM distribuiu sonoros e límpidos palavrões (Tirem as crianças da sala outra vez!). De sua boca explodiram "porras" e vocábulos de idêntico quilate, logo que os microfones foram disparados em sua direção.

Jornais também costumam eventualmente se achar na linha de tiro de Dom Antonio Carlos Magalhães. O Jornal da Bahia, por exemplo, tinha como dono, no início dos anos 70, João Falcão, arquiinimigo do governador em primeiro mandato. Igualmente desaforado, o empresário não economizava manchetes garrafais pouco elogiosas à nova administração. A queda-de-braço entre ambos durou anos. A empresa de comunicação quase faliu. Para sobreviver, iniciou uma campanha de assinaturas e de venda em bancas utilizando um slogan que apelava para o espírito incendiário do povo baiano: "Não deixe esta chama se apagar".

Não apagou. Pelo menos, não naquela época.

A praga de Dom Antonio Carlos, no entanto, parece ter pegado. O Jornal da Bahia mudou de dono, de linha editorial, mas nada adiantou. Virou uma versão baiana do Notícias Populares, de São Paulo, e, depois, tentou investir num jornalismo cultural mais sofisticado. Nada deu certo.

Afinal, em 1993, o jornal feneceu. Ninguém compareceu ao féretro - muito menos, claro, Dom Antonio Carlos Magalhães, que, em 1979, estrearia como empresário de comunicação, criando O Correio da Bahia. E, nos anos seguintes, numa coincidência notável com sua passagem pelo Ministério das Comunicações, tornaria-se dono das seis afiliadas da Rede Globo na Bahia - da qual, aliás, dispara noticiários nada condescendentes com seus adversários políticos.

De novo no poder

Em 1994, Dom Antonio Carlos Magalhães, depois de ocupar por três vezes o governo do estado, elege com folgas o seu sucessor - o obscuro engenheiro Paulo Souto -, mete o bedelho, como sempre, no governo federal de plantão e é quase uma unanimidade estadual. Novos e velhos baianos - de Jorge Amado a Caetano Veloso, passando por Daniela Mercury, Carlinhos Brown e Mãe Cleusa do Gantois - parecem reverenciar seu jeito de ser e fazer política.

O povo em geral - aquele que lota os ônibus estropiados que circulam por Salvador e que cada vez tem mais mês no final do dinheiro - costuma, por incrível que possa parecer aos olhos dos intelectuais não engajados nos novos tempos, tratá-lo com certo carinho. É engraçado vê-lo cercado de fiéis seguidores numa festa popular como a do Senhor do Bonfim, realizada sempre na segunda quinta-feira de janeiro e que Dom Antonio Carlos Magalhães, como bom filho de Oxalá, nunca perde. Sempre, claro, vestido imaculadamente de branco, a cor do seu orixá.

Nessas ocasiões, baianos anônimos tocam em ACM, passam a mão nos seus cabelos brancos - como se o gesto pudesse atrair boa sorte.

Nada estranho, são coisas do mundo, minha nega! Coisas do Brasil! Afinal de contas, Dom Antonio Carlos Magalhães pode ser visto como uma espécie de papa de um populismo que poderíamos, cinicamente, chamar de populismo de resultados. Tem, óbvio, todas as facetas que qualquer manual de política consagraria como características fundamentais daqueles políticos populistas que se reproduziram em série nos mais variados rincões da América Latina nas últimas décadas.

Na linha choro não nego, paro de chorar quando puder, por exemplo, Dom Antonio Carlos Magalhães é um craque. Não se importa de verter caudalosas lágrimas em público. No enterro de Cleriston Atidrade - seu candidato ao Governo do Estado em 1982, morto num acidente aéreo com mais treze políticos - foi flagrado aos prantos, no Cemitério do Campo Santo, babando na gola do tailleut- preto da viúva Cecy. Em outro momento de dor - o suicídio da filha homossexual, a simpática Aninha, em 1986, que disparou um tiro na cabeça depois de uma discussão em família -, não escondeu a comoção de um pai devorado pela tristeza de perder tragicamente um ente querido.

Aliado a este perfil populista de gente como a gente e de pai que resolve - ou, pelo menos, demonstra tentar resolver - os problemas de seus governados, Dom Antonio Carlos Magalhães imprime uma marca pessoal muito forte nos governos que exerce. Numa Bahia ainda colonial em muitos aspectos e onde os políticos têm uma lerdeza monumental ao lidar com as mudanças que a sociedade exige, ACM prefere a contramão, age, toma decisões.

No buraco aberto pela vacilada histórica que a esquerda baiana deu ao não mostrar serviço quando ocupou o governo do Estado por dois anos, Dom Antonio Carlos Magalhães entrou de sola. Jogou duro e voltou ao poder.

Para citar apenas um exemplo: diante do desafio de transformar o histórico Pelourinho num lugar freqüentável ou deixá-lo continuar como estava - um antro de marginalidade cercada de lixo por todos os lados -, não pensou duas vezes. Expulsou travestis, prostitutas e miseráveis em geral e mudou a cara do lugar. Comitês politicamente corretos chiaram, alegaram que Dom Antonio Carlos Magalhães usou violência. Jornais denunciaram que os ex-moradores do Pelô viviam agora mal e porcamente em casebres - ou até mesmo ao relento na periferia de Salvador.

Enquanto isso... o novo Pelourinho reluzia ao sol do novo mundo, recheado de filiais do MacDonald's, da Forum, do batuque do Olodum e fervia de gente de segunda a segunda (visto assim do alto mais parecia um céu no chão!)

Responda rápido: Deus não é mesmo o Diabo na terra do sol?

Rogério Menezes é jornalista e escritor. Publicou o romance Meu Nome é Gal e o livro-reportagem Um Povo a Mais de Mil - Os Frenéticos Carnavais de Baianos e Caetanos.