Cultura

Roberto Schwarz fala de literatura, de política e de intelectuais e frisa: o Brasil produziu grandes escritores, mas ainda não produziu um intelectual com obra de perfeição equivalente

Quais seriam hoje as "idéias fora do lugar" representadas, não na letra explícita do programa do PSDB, mas no imaginário que cercou a candidatura de Fernando Henrique e também nos equívocos da candidatura do PT?
O tema geral das "idéias fora do lugar", isto é, a combinação amalucada de normas prestigiosas da modernidade com relações sociais de base que discrepam muito delas, continua existindo no Brasil (e em outras partes). Como se sabe, os nossos modernizantes nem sempre têm o necessário desconfiômetro, e podem ficar um pouco ridículos, quando se olha o fundamento social em que eles realmente se apóiam. Um caso extremo foi o Collor, que era uma personagem de Machado de Assis, pela desfaçatez incrível da fachada. Já no caso do Fernando Henrique isso não é assim, de jeito nenhum. Ele é uma pessoa que tem consciência clara dessa ordem de problemas. O tempo vai dizer se o clima de persuasão tranqüila e de otimismo, que em diferentes graus cercou, aliás, as duas candidaturas, corresponde aos efeitos reais da modernização.

Nós não estávamos pensando na pessoa de Fernando Henrique, mas no imaginário que cercou a candidatura dele.
O imaginário do salto para a social-democracia e o Primeiro Mundo, os dois em versão idealizada, comporta ilusões desse tipo. Não penso que o próprio Fernando Henrique seja vítima delas, mas o tema existe. Agora, para não ser unilateral, é evidente que o projeto socialista no Brasil, dependendo da maneira como ele é formulado, tem muito disso também. A chave está na adoção ou na aceitação ofuscada de um padrão absoluto de modernidade, descolado de seus problemas nos países-modelo e das relações sociais efetivas entre nós. A modernidade passa então a funcionar ao contrário, como um álibi de classe dominante, além de criar um conjunto de erros de perspectiva e também de falta de juízo generalizada.

Numa entrevista à Folha, o Fernando falou que o conceito de "idéia fora do lugar" estava implícito na Teoria da Dependência. Qual a dimensão real da sua dívida com ele?
O débito é essencial, mas já vem de antes da Teoria da Dependência. À certa altura, no começo dos anos 60, o Fernando escreveu um livro chamado Capitalismo e Escravidão, no qual mostra que no Brasil do século XIX o capitalismo realizava as suas finalidades através da reprodução da escravidão, e não contra ela. Em lugar do otimismo etapista, que postulava a sucessão inevitável de escravidão, feudalismo e capitalismo, com final feliz no socialismo, entrava uma versão diferente da História, que fazia ver o progresso de maneira mais complicada e real. Este não garante a superação do atraso e pode até se apoiar na reprodução dele, que vira parte de um movimento novo. É claro que Fernando Henrique não estava fazendo nenhum elogio à escravidão ao dizer que ela no caso era moderna. Assim, em suma, as idéias não são apenas o que indicam. Nem a escravidão é necessariamente arcaica, nem o capitalismo assegura o domínio do trabalho livre, e hoje aliás nem trabalho ele está assegurando. Então, esta análise mostrava como o capitalismo tomado como um movimento global engendra significações contraditórias, mesmo em relação às suas categorias centrais, que não se universalizam. Essa oscilação tão desconcertante no significado da escravidão, que é tanto moderna quanto incompatível com a modernidade, e do capitalismo que é incompatível com a escravidão mas promove a escravidão, esse tipo de oscilação, que o Fernando estudou, eu tentei sistematizar no plano da vida das idéias. O célebre sentimento de que as idéias modernas no Brasil são sempre postiças, inadequadas, estão fora de lugar, se prende a essas falsas universalizações, que são da natureza do capitalismo, um efeito estrutural de sua gravitação.

Uma espécie de versão estética de uma teoria sociológica?
Ou uma explicação sociológica de uma evidência estética. Penso, por exemplo, que o humorismo de Machado de Assis é ligado a essa ordem de problemas. De certo modo Machado se especializou em perceber e apontar os funcionamentos grotescos do padrão moderno no Brasil, as anomalias brasileiras que nós, por estarmos mal-acostumados, julgamos normais.

Quais são seus outros credores privilegiados? Você tem os mesmos professores, vamos dizer assim, que Fernando Henrique?
Ele é que foi meu professor. Havia um grupo de assistentes na faculdade que estudava O Capital no fim dos anos 50. Eu era aluno, mas peguei carona nesse seminário. Ali, todo mundo fez tese mais ou menos nessa linha, de marxismo heterodoxo, voltado para as especificidades do caso brasileiro. A tese do Fernando Henrique foi a primeira que armou bem essa problemática. O trabalho mais perfeito viria depois, com Fernando Novaes. E a relevância contemporânea desses pontos de vista, por fim, ficou clara quando o Fernando Henrique os estendeu à análise da América Latina, com a Teoria da Dependência. O pai de tudo evidentemente era Marx. Aliás, também Antonio Cândido, à sua maneira discreta, naqueles anos estava elaborando um marxismo não-dogmático na análise de literatura brasileira, análise na qual me inspirei muito. De modo que meu trabalho tinha Marx em versão brasileira dos dois lados, o estético e o sociológico, além dos frankfurtianos, Lukács e Brecht.

Você acha que há uma relação entre a decadência do pensamento crítico no Brasil e a decadência do pensamento crítico marxista? Essas duas coisas para você estão juntas ou pode surgir um pensamento crítico de uma linhagem diferente?
É claro que nem o marxismo nem ninguém tem o monopólio do espírito crítico. Mas também acho que a reflexão crítica sobre a sociedade brasileira e a sua estrutura de classes intolerável deve muito à assimilação do marxismo. De modo que a baixa internacional do prestígio acadêmico do marxismo, que fez com que muita gente boa trocasse de teoria sem ter dado o combate de idéias, afetou bastante o nosso pensamento crítico. Aliás, acho provisória essa baixa do marxismo. Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja crítica do fetichismo da mercadoria? O capitalismo hoje é mais universal do que nos tempos de Marx, mais universal do que nos anos 60, e entretanto foi o marxismo que saiu de campo. Ora, a teoria crítica da sociedade contemporânea só tem de ser uma teoria crítica do capital, que é o que está aí. E acho impensável uma crítica do capital que não se interesse por Marx.

O que fez então com que de repente o marxismo tenha ficado muito pobre sem conseguir abarcar o que está acontecendo de novo?
As estreitezas do marxismo apologético, atrelado à justificação da URSS ou à guerra entre seitas, dispensam comentário. Mas se os frankfurtianos forem considerados estreitos, gostaria de saber quem tem vistas largas. A idéia em voga de que a reflexão totalizante seja um prenúncio do stalinismo é um disparate que leva à paralisia do pensamento. Entretanto, ela intimidou a esquerda, que está cheia de dedos para arriscar hipóteses globais, logo agora, quando a globalização é muito mais acentuada do que antes e não se vai nem até a esquina sem totalizar. Enquanto isso, a direita totaliza sem inibições. Todas as pessoas que mexem com o capital totalizam, para fazer os seus investimentos. A totalização não é uma preferência intelectual de um ou outro; ela é um processo em curso na prática.

Você tem, por exemplo, uma iniciativa de alguém que vem da linhagem marxista, que é o Habermas, que tenta elaborar uma análise global, rejeitando o conceito de totalidade.
Há pouco tempo, quando ele esteve aqui no Brasil, perguntaram-lhe como nós ficávamos na teoria dele. Talvez por prudência, ele disse: "Olha, a minha teoria é válida para a Europa, que eu conheço, aqui eu não sei". Para um teórico da sociedade contemporânea não deixa de ser uma posição incrível pelo localismo. A grande novidade do livro de Robert Kurz nesse ponto é que ele retoma a tentativa de acompanhar o movimento mundial do capital. No Brasil, em relação a isso, aconteceu uma evolução, ou melhor, um retrocesso interessante. Antes dizia-se mais ou menos o seguinte: o capitalismo se realiza nos países atrasados através da incorporação de mão-de-obra barata, ele não melhora a condição de vida dos pobres e os explora até o osso, razão pela qual somos antiimperialistas. Pois bem, acontece agora que o capitalismo entra numa nova etapa e começa a rechaçar mão-de-obra não-qualificada.

Diante dessa ameaça nova, a perspectiva dos pobres e da esquerda muda. Como é natural, a aspiração dos pobres agora é garantir a continuidade de sua exploração pelo capital, pois, na circunstância, deixar de ser explorado será bem pior. Diante deste impasse a esquerda, ou ex-esquerda, engatou uma incrível marcha à ré intelectual. No próprio momento da globalização, voltou a encarar as nações de forma ilhada, como que explicáveis a partir delas mesmas. O imperialismo ou os dinamismos internacionais iníquos teriam deixado de existir, e os povos têm o destino que merecem, de acordo com uma espécie de "culpa sociológica" de cada qual, a qual temos que reformar, de modo que o capital volte e venha nos explorar como todos desejamos. Como se a situação dos rechaçados pelo capital, ou também dos preferidos, não fosse também expressão de um movimento de conjunto, em curso de unificação. Recaímos em explicações culturais, de psicologia nacional, apartadas do movimento contemporâneo, que são patéticas. Neste sentido, o abandono da Teoria da Dependência foi, na minha opinião, um grande tombo teórico, porque ela podia se autocriticar e atualizar com muito ganho de compreensão. O meu interesse pelo livro do Kurz vem daí. Senti que poderia ter sido escrito no Brasil, a partir de nossa experiência histórica, e que nós aqui, por falta de iniciativa intelectual, ou porque nos rendemos relativamente sem luta à moda internacional, desistimos de tentar.

Você falou que ficou um sentimento de que o capitalismo não se interessou por nós. É uma dívida permanente, essa com o Primeiro Mundo? Você vê alguma relação entre esse sentimento de que nós ainda não chegamos lá, e a produção literária?
Não tem dúvida. Conforme a boa observação de Antonio Candido, o intelectual latino-americano vive um engajamento peculiar, diferente do europeu: ele está sempre contribuindo para a construção da cultura nacional, ainda incompleta. O país novo, ainda em formação, é um pano de fundo especial, com regras próprias. Assim, estamos sempre explicando o Brasil, salvando o Brasil, procurando uma brecha para que "ele" saia do atraso etc. E isso num certo sentido é ótimo, porque é preciso arrumar o Brasil, evidentemente. Mas é também uma coisa muito limitada no plano intelectual. Veja a diferença com o livro do Kurz, que não escreveu para salvar a Alemanha, mas para entender o movimento da sociedade contemporânea. Acho que nunca tivemos isso aqui no Brasil, o que mostra como a atitude fundamentalmente engajada do intelectual brasileiro, além do mérito, tem também um preço. Imagine se o Marx estava querendo resolver o problema só da Alemanha quando escreveu O Capital. Em meados do século XIX uma teoria avançada já não podia mais ser nacional. Enquanto nós no Brasil nunca saímos dessa esfera. Um aspecto importante da Teoria da Dependência é que, nas suas formulações melhores, tentou articular a análise dos impasses do país com uma descrição, ainda que sumária, do horizonte do capital contemporâneo. Havia o impulso de descrever a sociedade contemporânea. Mas ainda aí a intenção era basicamente de salvar o país, ou os países, de encontrar uma saída. Isso é um ponto de vista indispensável politicamente, mas limitado no plano da teoria.

Mas deixa te perguntar. Na literatura os grandes escritores, os reconhecidos, por exemplo, Machado de Assis e Guimarães Rosa, em dois momentos diferentes, estavam livres dessa tarefa?
Aí você toca num ponto interessante. Ainda conforme Antonio Candido, a acumulação cultural, sem a qual não existem a liberdade de espírito e a obra significativa, entre nós aconteceu mais cedo e em maior escala na literatura. Sem espírito de Fla-Flu, talvez seja possível dizer que o Brasil produziu alguns grandes escritores, mas ainda não produziu um intelectual com obra de perfeição equivalente. A liberdade de espírito que tiveram Machado de Assis ou Guimarães Rosa na ficção, no campo teórico não aconteceu. Por outro lado, num patamar mais modesto, a situação hoje talvez tenha-se invertido.Devo estar mal-informado, mas tenho a impressão de que o momento artístico não é de aspirações máximas. Se for verdade, seria um fato ideológico e artístico a meditar, e uma novidade no Brasil, onde de muito tempo para cá sempre houve algum artista mirando alto. João Cabral, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Oswald e Mario de Andrade, Clarice Lispector, todos são escritores muito ambiciosos. O que terá acontecido para que hoje não haja ambições equivalentes? O avanço da mercantilização na área da cultura pode explicar alguma coisa. Também a mudança na relação dos intelectuais com o Brasil pobre deve estar pesando.

Numa conversa com Susan Sontag você falou que um ensaio do tipo do de Adorno tem mais potencial crítico do que a literatura. Você encara isso dentro da perspectiva de que não é um grande momento literário ou você vê uma relação diferente entre filosofia e literatura na tradição marxista?
Vai ver que é uma perversão do gosto, mas de fato o melhor ensaísmo de interpretação da cultura contemporânea - estou pensando em Walter
Benjamin, Adorno, Sartre - de certo modo acabou entrando em concorrência com a literatura de ficção, e acho que não se sai mal no confronto. A atenção ao pormenor das contradições, a compreensão estrutural, a descoberta e a reconstrução da tendência histórica e de seu significado social, o desmascaramento de interesses de classe e outros, enfim, esta combinação de pontos de vista que caracteriza a crítica de arte de tipo marxista me parece responder em profundidade às aspirações de qualquer espírito livre hoje. Aliás, deste ângulo a baixa do interesse marxista no Brasil foi uma pena, pois estava em curso uma acumulação em grande escala e em muitos planos - crítica política, social, ideológica, estética, histórica etc. - que justamente nos estava ensinando a ver a problemática brasileira na sua espessura e como parte integrada da atualidade. Repito que o marxismo no Brasil não foi batido intelectualmente; foi largado com muito prejuízo.

Há quem considere você o teórico da volubilidade nacional. Até que ponto o arrefecimento do potencial crítico no Brasil pode ser pensado a partir da inquietante hipótese de que o capitalismo pode se manter, até pela própria forma que ele se organizou, indefinidamente, com todos os problemas que ele tem, sem cair na barbárie e sem ter uma superação positiva, socialista, como quer que se imagine?
No debate atual as pessoas falam como se o capitalismo tivesse acabado de nascer, sem pai nem mãe, e sem atestado de maus antecedentes. Mas logo vai aparecer um historiador interessado em marcar a continuidade entre a nova etapa do capitalismo e a anterior. Na hora em que isso ocorrer, a etapa atual vai aparecer como um aprofundamento ou transformação de tendências anteriores: liquidou isso, liberou aquilo, há pontos de crise, pontos de fuga, e o movimento fica tangível outra vez. A questão das tendências históricas, com pontos de inflexão e limites, vai se colocar outra vez, não tenha dúvida.

Mas você não vê a possibilidade de uma estabilidade trágica? Não existe uma capacidade de adaptação infinita para o capitalismo?
Mas por quê? Ele nasceu outro dia, e só agora é universal. Em certo sentido, as coisas de que Marx falava estão existindo agora pela primeira vez na plenitude: a dinâmica do capital correndo solta no planeta, sem nada fora dela, revirando tudo - não vejo como pensar em estabilidade.

A crítica vai renascer?
Acho que sim.

E virá pela literatura ou pela filosofia?
Não tenho idéia, mas que a crítica da mercantilização e de sua lógica é uma coisa crucial, eu acho que é. Não consigo imaginar que ela não seja retomada.

A idéia do capitalismo que corre solto por todo o mundo às vezes dá a impressão de que a literatura e o romance se tornaram anêmicos. É tudo absolutamente igual, previsível, repetitivo...
Não tem dúvida, os recursos da grande arte deste século agora mordem menos e estão rotinizados. É preciso dar um passo, como está não pode ficar. Eu sinto uma insatisfação brutal com a cultura contemporânea. Você vai ao cinema e sai desolado, liga a TV, lê o jornal, é uma coisa pior que a outra.

Será que todas as pessoas também sentem isso? Ou será só o intelectual?
É uma questão interessante. Insatisfações fortes nunca são de uma pessoa só. O grau de empulhação na mídia, e aliás também na Universidade, é muito alto. Como é que este concentrado de mentiras e má-fé se deposita dentro das pessoas? Se estas questões fossem examinadas de perto, com um mínimo de acuidade e franqueza, muita gente ilustre de nosso mundo dito cultural ia ficar com cara de malfeitor.

Qual é a expectativa do cidadão Roberto Schwarz? O que ele espera?
Que um intelectual estude, dê conta do que foi escrito, do que foi produzido, produza uma teoria aceitável para explicar esta globalização e aponte para uma perspectiva de superação positiva, socialista?
Se hoje você me perguntar o que é o socialismo, é claro que não sei, e penso que a maioria das pessoas não dogmáticas, se forem sinceras, vão responder uma coisa parecida. Entretanto, ao mesmo tempo que não sei o que é socialismo, acho justa a crítica da esquerda ao capital. Ora, essa é uma situação histórica objetiva, um ponto na trajetória do movimento de esquerda, que não há por que descartar. É experiência acumulada, real, com sua parte de impasse, que tem que se tornar produtiva. As pessoas que não são de esquerda, que não têm sensibilidade de esquerda ou que a jogaram fora, podem perfeitamente dizer: "Bem, se para o capital há saída, e a grande maioria se frita, então que se frite". Mas quem não aceita isso tem de procurar saídas dentro de um certo parâmetro que lhe pareça aceitável, o que aliás não garante que a saída se encontre ou exista. Mas as saídas que não levarem em conta esse parâmetro não me interessam (a não ser como assunto). Então, de fato é uma posição precária.

Como você distingue a pessoa que mudou de idéia da pessoa que abriu mão das suas idéias?
A pessoa que mudou de idéia presta contas de sua evolução. Entre parênteses, um dos méritos grandes do Fernando Henrique é ter prestado contas de sua trajetória muitas vezes, falando e por escrito. Nesse ponto ele é muito superior, e quase único no campo dele, na minha opinião.

Você não vê ruptura dele no momento atual?
Não sou capaz de responder de maneira taxativa. Mas lembro que a mudança do capitalismo foi grande, e que, nestas circunstâncias, como diz o "Macaco Simão", quem fica parado é poste. Seja como for, é inegável que Fernando Henrique trata de explicar os passos que dá, e não renunciou a entender e valorizar o próprio percurso em termos históricos. As pessoas de esquerda que não gostaram das alianças que ele fez - como é o meu caso também - tendem a desconhecer isto, e passaram a vê-lo como um político imediatista, no que em minha opinião se enganam. Ele certamente se vê em termos de História, não tenho dúvida de que deseja ser um grande presidente, e a definição dele do que seja um grande presidente na certa se alimenta do que ele pensou antes e da tradição intelectual à qual ele se liga, brasileira e outras, inclusive o marxismo. Acho que as pessoas que lhe desconhecerem a ambição e a perspectiva histórica vão se enganar muito. Mas é claro que visão histórica é apenas um elemento entre muitos outros, e que a aliança com os donos da vida vai pesar.

E objetivamente, por que você não votou nele?
Até onde vão as minhas luzes, as pessoas de tradição socialista têm que buscar a saída do lado da viravolta social, do confronto com a injustiça de classe, na crítica à lógica do dinheiro e da propriedade privada, na oposição ao funcionamento indecente da mídia etc. Tudo dentro das novas condições, que não suprimiram estas taras, que eu saiba. Sei que este não é propriamente o programa do PT, mas na sua existência, que melhorou o Brasil, o partido representa alguma coisa disto. Num país de tanta desigualdade, acho também importante a candidatura de um operário à Presidência, no que não vai nenhum obreirismo. De modo que pus entre parêntesis a estima intelectual e a amizade, naturalmente sem diminuí-las, e votei como era natural.

Uma coisa que ouço muito dizer é que antigamente ser professor de uma universidade pública como a USP dava ao sujeito um bom salário... Tinha condições de viver dignamente. Como que era ser intelectual? Como é ser intelectual? Vive-se hoje de intelecto?
No tempo em que eu entrei na faculdade, em 57, os colegas mais velhos, que estavam terminando o curso, prestavam concurso para professor secundário, e não viam isto como desastre. Porque a situação era a seguinte: como professor concursado no interior você dava quatro aulas por dia, e tinha um salário que dava para viver corretamente. Então, para um intelectual, valorizar o tempo livre, era uma perspectiva interessante, não é? Davam um tanto de aula, que é uma atividade boa, se não forem muitas por dia, e o resto era para estudar e pensar na vida. Quer dizer, era possível ser intelectual também fora da Universidade, e, sobretudo, a situação do professor secundário não era incompatível com a produção intelectual, o que melhora muitíssimo a vida intelectual do país. Na Europa é assim, uma parte dos bons intelectuais franceses dá aulas no secundário, o que faz grande diferença. Isso no Brasil chegou a existir, e foi desmanchado totalmente pelo aviltamento dos salários. Não há exagero em dizer que bons salários no secundário são meio caminho andado para uma boa mudança cultural.

Qual o seu projeto atual de estudo?
Estou tentando retomar, no século XX, as questões que estudei em Machado de Assis. Acho que as soluções literárias que Machado inventou para dar uma visão apropriada e profunda da sociedade contemporânea, através da sociedade brasileira, foram reinventadas de maneira diferente por quase todos os nossos grandes escritores modernos. Quero assinalar a existência dessa estrutura comum, porque isso, se for verdade, mostra como o trabalho literário é consistente e dá continuidade, dentro do diverso, tanto a problemas sociais quanto a elaborações artísticas anteriores, até mesmo involuntariamente. Essa continuidade em alguns autores é deliberada, enquanto noutros é ditada pela vida, que pode ser tão organizada quanto a cabeça do artista mais organizado. E cabe ao crítico perceber a consistência e a força do que está em jogo.

E quem são esses autores?
Quero estudar Mario de Andrade, João Cabral, talvez Drummond... Enfim, vamos ver.

Não pode mostrar todo o ouro! (risos).

Fernando Haddad e Maria Rita Kehl são membros do Conselho de Redação de T&D.