Nacional

Depois que a luta de classes foi rebaixada, resta saber se há ética na política financiada pelos maiores inimigos da ética, na política

"Não sei entre que astutos dedos
Deixei a rosa da minha inocência.
Antes da minha pubescência
Sabia todos os segredos... "

Vulgívaga, Manuel Bandeira

O PT completa 15 anos. Fala-se no partido até em baile de debutantes. Mas para muita gente está em discussão sua virgindade. A publicação da lista de empresas (empreiteiras, bancos etc.) que contribuíram com dinheiro para a campanha de alguns candidatos do PT em 1994 provocou um choque em vários setores do petismo - militantes ou não. Em Brasília, o diretório local decidiu devolver o dinheiro. Em São Paulo, a direção considerou o episódio um erro político. A Executiva Nacional julgou necessário abrir um debate sobre o caso e, mais amplamente, sobre a política de finanças do partido. Do país inteiro chegaram resoluções e cartas de protesto.

Saudável rebuliço. Afinal, o episódio das doações é apenas mais um entre outros, de conteúdo igualmente constrangedor, a envolver o nosso partido nos últimos anos. Logo após a eleição presidencial de 1989, o Conselho de Redação de T&D tentou abrir um debate sobre essas questões éticas e políticas, a partir do chamado caso Lubeca. Dada a dificuldade de encontrar quem pudesse tratar o assunto, a iniciativa frustrou-se.

Anos depois, o assassinato do dirigente sindical Osvaldo Cruz, no ABC paulista, revelou a que ponto chegara a deterioração das relações no meio sindical, já evidente nas cadeiradas do 4º Concut. Dessa vez, ainda que com alguma sutileza, T&D tratou de abordar o assunto, na expectativa de forçar uma reflexão sobre o tema. Se houve, foi de pequena valia: as urnas das recentes eleições do Sindicato dos Condutores de São Paulo terminaram sendo apuradas numa cela da Rota. Ressalte-se: a pedido dos próprios sindicalistas, após um acordo mediado pelo senador Suplicy.

Num e noutro episódio, a mídia deitou e rolou, aproveitando a deixa para atacar o PT. Em parte por isso, nunca se conseguiu abrir um debate organizado sobre estas questões. Afinal, como chegou a dizer um dirigente acerca do caso Odebrecht: "Certo ou errado, temos que defender o partido".

Mas como ninguém é de ferro, o silêncio oficial (ou as versões oficiais) só faz estimular a proliferação das versões mais desencontradas, deixando no ar absolutamente todo tipo de suspeita. Afinal, o lamentável costume que a quantidade tem de transformar-se em qualidade, faz com que as pessoas ponham-se a somar as denúncias de corrupção, nepotismo, desmandos e tantos outros casos envolvendo prefeitos, vice-prefeitos, deputados, sindicalistas e quetais em todo o país, que não citamos pelo nome para não cometer injustiças com os eventuais preteridos.

A favor da tolerância, havia dois fatos insofismáveis. O primeiro era a comparação entre os nossos defeitos e o dos outros. Mas como resumiu um filósofo popular, o problema é que eles são eles e nós, nós. O segundo fato nos aliviava como num exorcismo: geralmente estes episódios terminavam com o afastamento (moto próprio) da "ovelha negra" do "rebanho vermelho". Assim, a omissão com que o assunto constrangedor havia sido tratado até então fantasiava-se de sabedoria política. Mas a leniência com que tais episódios eram tratados fazia com que, para cada "desgarrado", outros tantos permanecessem no rebanho.

O que muda desta vez

Desta vez, entretanto, parece que será diferente. Não porque falte tolerância a alguns dirigentes, que prefeririam encerrar a discussão, vista como um misto de ingenuidade, falta de responsabilidade e luta interna, num comportamento que tem sua história. Nos anos 50, o Comitê Central do PCB, capitaneado por Luís Carlos Prestes, declarou encerrada a discussão sobre o "relatório Kruschev", que começava a subverter a ordem interna do futuro "partidão". Deu no que deu. Uma caricatura dessa prepotência, menos conhecida, aconteceu no começo dos anos 70, quando o Movimento Revolucionário Tiradentes, ao expulsar um dos seus militantes divergentes da organização, "radicalizou" e aproveitou o ensejo para expulsá-lo também da Revolução! Ilusão do poder. Dos pequenos poderes.

Se desta vez parece que será diferente, tampouco será por intolerância da imprensa. Afinal, o episódio Odebrecht rendeu muito menos do que parecia à primeira vista. Talvez porque não faça bem falar de corda em casa de enforcado. Talvez porque haja o que comemorar, quando o PT "abandona a inocência". Talvez porque o estrago já esteja feito. Talvez porque se prefira guardar o assunto para outro momento. Quiçá porque a análise do tema macule petistas a quem certa imprensa prefere conferir tratamento VIP. Em todo caso, as direções dos veículos de comunicação têm tanto interesse em colocar a discussão de forma correta, quanto as empreiteiras e o capital financeiro, ao contribuírem com nossas campanhas, estavam interessados em garantir nosso fortalecimento político ou nossa vitória eleitoral.

Se desta vez parece que o constrangedor assunto será debatido até suas derradeiras conseqüências, é porque a alternativa é desmilinguir o partido. Afinal, desde que se decretou o fim da luta de classes (lembram-se da entrevista de Weffort à Folha de S.Paulo há um par de anos?), a "ética na política" foi promovida à condição de Deus ex-machina da atividade partidária. No entanto, como a luta de classes foi rebaixada de posto, que mal haveria em financiar as campanhas do PT com contribuições vindas do grande capital? Daí para pegar dinheiro das empreiteiras, foi um passo. Mas haverá ética na política financiada pelos maiores inimigos da ética na política?

Se para alguns graduados dirigentes é possível praticar e justificar o vale tudo, até mesmo transitar livremente e sem maiores explicações públicas da Coordenação da Frente Brasil Popular, para um Ministério da aliança PSDB- PFL-PTB, para a maioria dos petistas há neste episódio um nó a ser desatado.

Faz diferença, sim, ser petista ou marionete do Consenso de Washington. Há diferença, sim, entre "Sartre" e o "encanador". E esta diferença leva muitos petistas do ceticismo à pura e simples desfiliação.

Corrupção e repressão

Como todo episódio real, o caso Odebrecht tem muitas facetas. O primeiro nós já tratamos, indiretamente. A excessiva luz sobre a contribuição das empreiteiras (e não do Banco Itaú, por exemplo, que também "optou") está relacionada ao condicionamento a que fomos submetidos nos últimos anos, quando as empreiteiras ocuparam, aos olhos da opinião pública, o lugar antes reservado aos bancos, o de grandes vilões, maus entre os maus, personificação do ogro capitalista.

No início dos anos 80, os bancos eram considerados os principais responsáveis pela inflação. Após muito investimento (publicitário e em parcerias culturais) para reverter esta imagem, apresentando-os como "modernos", "preocupados com o social", "inseridos na comunidade", os bancos colhem como resultado a atual crença popular, de que a inflação tem no déficit público, no gigantismo estatal, sua causa primária. Naturalmente, as iniciativas de rever são de imagem patrocinadas pelos bancos foram em sua maioria dedutíveis do Imposto de Renda. Business is business.

Problema semelhante foi enfrentado pelas empreiteiras. Mesmo que as corruptoras tenham se preservado mais do que os corruptos, é evidente que as empreiteiras eram (e ainda continuam sendo) identificadas como as principais protagonistas da corrupção. Nada mais justo, e talvez não precisássemos dar grandes explicações a respeito. Mas estamos convencidos de que é melhor recapitular do que capitular.

A História do Brasil nos últimos 50 anos (pelo menos) está marcada pelas falcatruas e desmandos desse setor, seja no que diz respeito à corrupção, lobbies e superfaturamento de obras públicas, seja no que diz respeito à repressão pura e simples. Destacam-se os fatos revelados pela CPI do PC/Collor e os que não foram investigados a fundo pela CPI do Orçamento - quando a Odebrecht tornou-se emblemática: Canal da Maternidade; assassinato do governador de Rondônia; conexão Eliseu Rezende/Peru; a lista de agraciados pela empresa, revelada por Bisol etc.

No passado recente, há a parceria de empreiteiras com o Estado na repressão e massacre de centenas de "candangos" (peões da construção civil) que protestavam contra os salários, os atrasos de pagamento e as condições de trabalho durante a construção de Brasília.

É verdade que das empreiteiras de então, não despontou nenhum prócer da envergadura de Magalhães Pinto, com o qual nos brindaram os banqueiros no golpe de 64. Mas, durante o regime militar, as empreiteiras serão uma fonte inestimável de recursos para a montagem de todo o aparato paramilitar (Oban, DOIs-Codis etc.) responsável pelas perseguições, torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres dos opositores. É nesse período, por exemplo, que começará a florescer a OAS, ligada a ACM.

Por tudo isto, é natural que vários setores do PT e de seu eleitorado fiquem estarrecidos com a revelação de que essas empresas estiveram entre as maiores contribuintes de campanhas do PT. Bancos, empreiteiras e a grande mídia compõem parte importante da base de sustentação do projeto neoliberal, articularam-se para viabilizar e eleger o atual governo. O que pretendiam estas empresas ao contribuir com campanhas petistas? O que pretendiam aqueles que se decidiram a aceitar tais contribuições?

O circo da democracia

A primeira questão é fácil de responder. Numa entrevista concedida ao jornalista Elio Gaspari, o senhor Odebrecht esclareceu: sua empreiteira é brasileira, tudo que ajuda o Brasil é bom para sua empresa, assim eles contribuíram com diversos partidos para ajudar o exercício do jogo democrático. Diríamos nós: o senhor Odebrecht trata a "democracia" como um circo que ele, filantropicamente, ajuda a sustentar... Para a explicação ficar completa, faltou dizer que ao contribuir para o PT, naturalmente em quantias muito inferiores àquelas repassadas para a campanha de FHC, as grandes empresas ajudaram a neutralizar as críticas ao poder econômico e ao caráter de classe da campanha vitoriosa. E, do ponto de vista do marketing institucional, o dinheiro dado ao PT tem o mesmo papel dos projetos culturais que as grandes empresas financiam: melhorar a imagem institucional da empresa concedente.

A segunda questão é mais complexa. Do ponto de vista jurídico-formal não se cometeu qualquer delito. Ao contrário, utilizou-se plenamente a legislação que regulou as contribuições eleitorais, criticada por nós exatamente por legalizar o abuso do poder econômico, tornar facultativa a divulgação dos contribuintes (estabelecendo a transparência obrigatória apenas 5 anos depois do desfecho eleitoral) e discriminar as entidades não-empresariais (impedindo, por exemplo, que os sindicatos contribuíssem para as campanhas). Naturalmente, para um partido que faz questão de distinguir o legal e o legítimo; que recusa certos benefícios legais (a aposentadoria parlamentar, por exemplo), por julgá-la indecente, nada mais insatisfatório do que a mera legalidade de um ato.

Do ponto de vista da administração da campanha, o recebimento de vultosas contribuições empresariais possui sua lógica. Ao contrário de 1989, em 1994 a militância estava desmobilizada e as máquinas sindicais, amedrontadas. Além do mais, as arrecadações baseadas em campanhas de massa são mais demoradas e de resultados mais inseguros do que as poucas mas vultosas contribuições obtidas num único contato com um grande empresário. É verdade que isso gerava um círculo vicioso entre essa exótica política de finanças e a desmobilização/desresponsabilização da base para com a campanha. Mas esses recursos permitiriam viabilizar, no curto prazo, as atividades, material de campanha, os programas eleitorais gratuitos.

Há quem argumente, fazendo coro com o coronel Jarbas Passarinho, que o alto custo das campanhas torna imprescindíveis as "doações" do grande capital. Mas será que uma campanha mais pobre financeiramente não seria mais rica de autenticidade, mais precisa política e ideologicamente? Será que não haveria maior corresponsabilização entre os simpatizantes e a candidatura, mais empolgação e envolvimento? Será que a pobreza não funcionaria como estímulo à mobilização militante - da mesma forma como os showmícios com artistas pagos funcionavam em sentido contrário?

Vista de uma ótica política, entretanto, o episódio ganha outras conotações. Pode a esquerda vencer com os recursos financeiros fornecidos pelo grande capital? Por quanto tempo nossos candidatos poderiam atacar publicamente as elites, enquanto seus emissários buscavam recursos entre as mesmas elites? Por quanto tempo o PT poderia criticar os outros como "candidatos das empreiteiras", mantendo o nosso rabo debaixo do tapete? Por quanto tempo os recursos nos custariam apenas moderação, e a partir de quando começariam as contrapartidas? Ou, de uma maneira mais geral: por quanto tempo é possível um partido continuar fiel a seus compromissos populares, se quem paga a conta são os grandes empresários?

Nesse sentido, o PT esqueceu de uma lição respeitada por qualquer empresa capitalista "moderna": a imagem faz parte do patrimônio da instituição. Ter feito carreira combatendo a corrupção alheia não confere imunidade nem impunidade. À mulher de César não basta ser honesta. Quem defendeu que as empresas corruptoras fossem consideradas inidôneas e, portanto, impedidas de prestar serviços ao poder público, não poderia jamais considerar corriqueiras as contribuições dessas mesmas empresas ao partido.

Como foi feito

Por enquanto detivemo-nos fundamentalmente na análise do que foi feito. Mas há outro aspecto, tão grave quanto aquele: o como foi feito. Não concordamos com a teoria segundo a qual os fins justificam os meios, uma vez que é sempre da natureza dos meios que derivam os contornos reais que vai assumindo o resultado final das ações. Como partes, os meios segregam em si a memória dos fins (do todo). O que qualifica um resultado é o caminho percorrido em sua busca. Por outro lado, os fins podem sempre ser alterados enquanto objetivos ideais, enquanto os meios são o concreto, o presente, o que se faz de fato.

Além disto, ressaltamos que se os erros estritamente políticos são relativamente simples de serem corrigidos (mesmo quando nos custam caro), o mesmo não ocorre com aqueles de fundo ético. No caso das contribuições, importantíssimos dirigentes partidários desconsideraram um princípio basilar da política (pelo menos para aquela que pretendemos levar a cabo), segundo o qual não se negocia com o inimigo senão publicamente. Não há cumplicidade possível com o inimigo. Princípio de ordem prática, com origem em experiências históricas e/ou comezinhas, cotidianas, da humanidade e que entre socialistas, revolucionários e homens de bem ganha a conotação de um valor ético.

É evidente que a responsabilidade pelo recebimento das contribuições não é deste ou daquele eventualmente responsável pela arrecadação de fundos. Desconhecemos ao certo como se tomou a polêmica decisão - e, portanto, não sabemos medir o peso das tremendas pressões da campanha sobre quem decidiu -, mas é evidente que a aceitação daquele dinheiro, sem que as instâncias partidárias fossem consultadas, põe em questão certos métodos de decisão no partido. É preciso esclarecer ao partido e aos seus aliados, simpatizantes e eleitores, as condições em que se decidiu, os argumentos e contra-argumentos. Acharam que o assunto não geraria mossa? Pensaram que o fato não viria a público? Julgaram que os fins justificam os meios? Entenderam que o dinheiro não tem cheiro, que "todo capital é igual"? Mesmo que qualquer das alternativas seja correta, ou nenhuma delas, há um fato incontestável: a decisão de receber aquelas contribuições foi tomada de maneira reservada, por quem se achava legitimado para tal. Mas como sempre acontece quando nos acumpliciamos com o inimigo, mais cedo ou mais tarde será ele a nos denunciar publicamente, desde que considere o momento adequado.

Felizmente, a iniciativa de tornar público este affaire coube ao PT do Distrito Federal. Naturalmente, não faltou quem culpasse os companheiros de Brasília, por não aceitar pacificamente aquilo que o discurso oficial do partido sempre condenou. Alguns dirigentes foram além, lamentando que "o dinheiro não tenha sido o suficiente para pagar todas as dívidas de campanha". Embora não seja certamente o que esses dirigentes pretenderam dizer, na frase fica implícito - por tudo que explicitamos antes - um "que pena que não nos comprometemos ainda mais com o inimigo".

É uma questão política, e também ética para o PT, que este assunto seja discutido, e assumidos os erros e responsabilidades. Que não seja um bate-boca ou troca de acusações e insultos mútuos. Mas que também não se transforme num mis-en-scène desses que fazem da política este teatro de maus-costumes. Afinal, por detrás (ou por debaixo) de todo esse episódio, repousa uma questão decisiva: o PT conseguirá participar da institucionalidade sem se corromper (no amplo sentido do conceito)? Não admira que seja difícil tratar do assunto. Mas como já se disse, por mais desagradável que possa ser, é a verdade que se deve buscar.

Alípio Freire é editor de T&D.