Mundo do Trabalho

Câmaras setoriais podem orientar a apreensão social, superar a divisão social do trabalho e a limitação capitalista da ciência e da tecnologia como força produtiva

As câmaras setoriais representam um espaço social com potencial "ético" objetivo que permite ir além dos padrões da solidariedade ou da boa-vontade subjetiva.

A linha divisória das políticas contemporâneas é a que distingue o enfoque assistencial do enfoque social - a social-democracia e o socialismo democrático. De um lado, uma política sustentada numa dinâmica de exclusão, mas que busca corresponder aos interesses gerais por uma ação redistributiva, solidariamente motivada, uma ação "ética" do poder público (pelo Estado ou pelas instâncias da sociedade civil); e por outro lado, uma política social abrangente pela qual seria possível evitar a dinâmica de exclusão e inclusão, incorporando o todo social sem que haja a dependência da vocação ética ou assistencial.

A política assistencial procura acertar no nível macro os desvios provocados no nível micro; corrigir a virtude pública os vícios privados, no dizer dos porta-vozes ideológicos do liberalismo. Afinal, a lógica do capital, em sua acumulação no processo de criação de valor agregado, provoca exclusão social. É assim que funciona, ainda que não gostemos, ensinam incansavelmente os economistas. Se a lógica é assim inexoravelmente produtora de exclusão, caberia a correção da "lógica do capital" pelo recurso à "ética", a percepção humana da "maldade" desta lógica. Caberia ao Estado corrigir os desmandos, no plano da educação, saúde, assistência etc. Só que de um lado há a imposição dos juízos de realidade; do outro, os juízos de valor, obrigatórios apenas eticamente. Assim, ao mesmo tempo em que se propõe a força da ética para corrigir politicamente os desmandos da economia - superando a política como mera administração dos "negócios do Estado" - consolida-se também a debilidade da ética por ela não ser lógica, isto é, carecer de base objetiva, restringindo-se à resultante de motivações subjetivas, apelos de solidariedade, remendos de boa-vontade etc.

Mas o que fundamenta a posição "ética" não são estritamente as condições subjetivas dos indivíduos - honestidade pessoal, qualidades humanas, intelectuais etc - mas sobretudo as condições objetivas de sua inserção social. No mundo moderno a referência ética objetiva é dada pelas relações do trabalho social. As pessoas não são acidentalmente trabalhadores empregados ou desempregados, ou patrões. Estas suas determinações sociais a partir de sua inserção nas relações de trabalho definem a sua própria existência individual. Nestas relações sociais determinantes, será possível encontrar sucedâneos reais e objetivos para os vínculos meramente assistencialistas, só eticamente obrigatórios. No plano do trabalho social, a questão ética tem sua "lógica", operando no plano dos juízos de realidade.

A predominância do enfoque subjetivo, da virtude privada e a consideração do sujeito social objetivo polarizam-se como duas formulações da questão ética. Se partimos de um prisma subjetivo-individual, a relação de trabalho é fortuita e estaremos construindo uma abrangência social só pelo recurso à ética, à solidariedade contingente. Se partimos de uma focalização pautada na determinação social objetiva, optaremos por uma totalidade abrangente e necessária pela via das relações de trabalho, e a "ética" contingente passa a ser uma lógica necessária.

Por trás da crítica à falta de competência de Lula, por exemplo, há uma certa concepção de representatividade: ela é pautada em méritos estritamente pessoais, utilizando critérios técnicos de competência subjetiva, competência pela qual a pessoa seria dotada de representatividade. Trata-se de uma inserção individual no processo de trabalho, segundo a qual por acaso uma pessoa encontra-se numa ou em outra situação: desempregado, por exemplo. Seu referencial ético, contudo, não seria afetado por esta casualidade, e presume-se que nem o seja sua capacidade técnica: as convicções morais e as qualidades intelectuais formariam a "pessoa", méritos privados que podem se tornar "públicos", conferido à pessoa estatuto político de representatividade social. Entretanto os vínculos que unem as pessoas não têm a ver estritamente com as mesmas, mas precisam ser trazidos de fora, forçados pela obrigação moral, ou pela imposição de interesses coletivos.

Por trás da proposta de representatividade centrada no exemplo das câmaras setoriais utilizada pelo PT como geradora de uma política participativa e democrática, pode-se encontrar uma concepção de competência. Esta, contudo, já não estaria assentada nas virtudes subjetivas dos partícipes da negociação, mas estaria pautada necessariamente pelas condições objetivas de sua participação no processo social de trabalho: condições de trabalho, relações entre força de trabalho e meios de produção, circuito produção-consumo, formação da força de trabalho e educação, inovações tecnológicas, relação entre trabalho manual e intelectual, organização administrativa, cultura etc. Apenas em função da forma social assumida em determinadas situações pelas relações do trabalho social é que um conjunto assumirá a sua existência social enquanto desempregados, ou subempregados etc.

Feito tal registro é possível centrar-se na questão da exclusão social em termos que não demandam uma "solidariedade" entre pessoas, mas um nexo social fundamental no âmbito de determinadas relações de trabalho, em que cada parte vincula-se necessariamente às outras num todo que constitui o trabalho coletivo. Até mesmo a relação do empregado com o não empregado se dá no âmbito e por causa de um determinado modo de produzir, e não exteriormente ao mesmo. Deste modo, a representação sindical, por exemplo, enquanto representação no plano de uma determinada forma social da produção, deve desenvolver um mandato político amplo, que não se restrinja à representação dos empregados de um certo setor, e nem mesmo aos empregados em geral, mas deve incluir os excluídos, que só o são devido a este modo social de produzir vigente.

Foi Marx quem desenvolveu a categoria de trabalhador coletivo: "(...) cada vez mais um potencial social combinado de trabalho se torna o verdadeiro funcionário do processo conjunto de trabalho (...) e o conjunto da máquina produtiva, participando de modo muito diverso do processo imediato de produção de mercadorias, ou melhor, dos produtos, um trabalhando mais com a mão, outro mais com a cabeça, outro mais como gerente, técnico, engenheiro etc. um terceiro como operário manual, ou mesmo mero servente (...)". Mas esta concepção do trabalhador coletivo - ou da divisão social do trabalho - pode ocorrer de dois modos polares: conforme uma perspectiva vinculada à acumulação do capital; ou conforme um prisma em que se privilegie a auto-organização do processo de trabalho social pelos próprios partícipes do mesmo. Há uma polarização de classe entre duas concepções do trabalhador coletivo, distinguindo relações sociais objetivas orientadas aeticamente à valorização, e eticamente dirigidas ao bem-estar humano.

O "fordismo", por exemplo, representou uma forma de trabalhador coletivo sob o ponto de vista do capital: ao lado do custo da mão-de-obra, pensou-se nas possibilidades de consumo dos produtos criados a partir destes custos salariais, bem como na produtividade do trabalho baseada em sua organização, e no controle e na administração dos mesmos. Os maiores salários pagos na época nos Estado Unidos (o five dollars day) possibilitaram uma alta eficiência, controle da mão-de-obra, e um mercado consumidor (cada trabalhador pode comprar seu próprio Ford). Este seria o primeiro grande exemplo histórico de uma "política setorial" bem sucedida. De fato, não é a solidariedade com os pobres trabalhadores que impulsionou o modelo fordista em direção ao aumento de salários; no interior de um determinado processo produtivo - a indústria automobilística - havia relações objetivamente fundadas entre todos os partícipes. Estas relações, contudo, não se estendiam aos excluídos deste processo. Ao contrário: os sindicatos, por esta via, passariam a defender "corporativamente" os seus associados, como detentores de empregos cativos e de poder de consumo, em relação aos "excluídos" desta transação. O fordismo - e nisto consiste seu caráter aético - estimularia neste sentido a exteriorização dos focos problemáticos (e aqui estão não só os problemas da marginalidade econômica e social, mas também os relativos à deterioração ambiental em face da exploração de reservas materiais e energéticas). O desafio ético estaria em reproduzir em nível macroeconômico este tipo de formulação de um " trabalhador coletivo" e o New Deal americano de Roosevelt num certo sentido pretendeu justamente isto, fomentando um forte mercado interno como estimulador da própria acumulação produtiva.

O New Deal fundar-se-ia num papel redistributivo e social do Estado, buscando integrar por esta via os excluídos - em grande parte provenientes da expulsão do campo pela industrialização agrícola americana (relatado em As Vinhas da Ira, de John Steinbeck). Frente ao desafio macroeconômico, o modelo da política setorial fordista ou da política do mercado endógeno não permitia ultrapassar o nível do Estado assistencialista.

Num processo coletivo de trabalho tal como o do fordismo procurava-se resolver os problemas num plano microeconômico no caso a indústria automobilística, na qual estava em pauta a competitividade. Isto teria duas conseqüências importantes: aumenta-se a produtividade, mas em relação estrita a um determinado setor; em segundo lugar, a inovação tecnológica produzida em face da competitividade intercapitalista também se limita às finalidades que regem o setor. Exatamente por isto, tanto a maior produtividade do trabalho, como as inovações tecnológicas não servem - e não tinham este objetivo - para além da macroesfera econômica em questão. E por esta via - seja da produtividade do trabalho, seja da inovação tecnológica - restringe-se a abrangência do "trabalhador coletivo", e desta forma limita-se também o alcance de relações objetivas baseadas no trabalho social que pudessem servir à integração social dos excluídos. Estamos de volta à política de solidariedade pela vida do Estado.

Tornou-se corrente hoje em dia aprender ciência e tecnologia como forças produtivas; de fato, a época industrial do capitalismo trouxe consigo plenamente esta nova conceituação. Mas dizer que ciência e tecnologia tornaram-se forças produtivas não pode nos desviar da concepção fundamental - vinculada às nossas considerações anteriores - de que se trata de forças produtivas sociais; e que portanto há também aqui uma polarização entre duas posições contrapostas, pelas quais ciência é força produtiva: do ponto de vista do capital, ou dos trabalhadores (partícipes do trabalhador coletivo) socialmente organizados. Só deste modo é possível entender porque (como por exemplo assinala Jorge Mattoso no artigo "Desemprego, ponta do iceberg", T&D nº 25) não houve em associação com o enorme aumento da produtividade das últimas décadas a correspondente diminuição do tempo de trabalho. Ao contrário, a manutenção do tempo de trabalho em padrões mais ou menos constantes (com as exceções de Alemanha e França) destinou-se apenas ao aumento da competitividade graças aos avanços de produtividade, gerando um decréscimo da necessidade de mão-de-obra e um desemprego massivo. Do ponto de vista do capital, a inovação científico-tecnológica destina-se apenas ao aumento da competitividade. Mas do ponto de vista do trabalhador coletivo na perspectiva de sua auto-organização, a ciência-técnica destina-se à diminuição do tempo de trabalho, dirigindo a produção às necessidades da sociedade como um todo.

Assim a tão falada "terceira revolução industrial-tecnológica" também resolve seus, conflitos em negociações que preservam os mecanismos de exclusão como salvaguardas do capital, recebendo o apoio de sindicatos corporativos defensores de privilégios. Se pensarmos em ciência e tecnologia como força produtiva social a ser orientada, por exemplo, ao aumento da produtividade na produção de alimentos, certamente esta tecnologia não poderia depender dos estímulos da competição capitalista. Inclusive porque no Brasil, dado o atual nível de internacionalização do capital, o estímulo à geração de inovações científico-tecnológicas por esta via é insignificante. Mas ainda que não fosse, estaria atado às finalidades estritas deste plano de competição. Neste sentido, será necessário estimular um aumento de produtividade pela via de inovações científico-tecnológicas e pela via da formação educacional, passando ao largo dos planos de competição empresarial. Isto significa concretamente procurar ampliar os espaços de abrangência das negociações setoriais, para lhes conferir o macroalcance da política social, em que se integre os excluídos. Isto só poderá ocorrer por um aprofundamento da crítica a esta setorialização (dualismo entre ilhas de produtividade competitiva e bolsões de atraso; destruição ambiental; degradação do sistema formativo educacional; mercantilização da cultura e das comunicações etc ...), e pela impulsão de um novo modo de conceber o trabalho coletivo e sua divisão social (organização regional e social, e não por setores industriais, em que apenas se realça a própria setorialização capital etc ...). Uma divisão do trabalho social nestes termos deve procurar alcançar gradualmente os limites nacionais.

A concepção de uma determinada forma social de trabalhador coletivo continua balizando as concepções políticas, como se afirmava em relação ao assistencial e à política social: a questão dos excluídos e sua possibilidade de inclusão efetiva sem lançar mão de apelos à solidariedade constitui o fiel da balança que permite diferenciar um "trabalhador coletivo" efetivamente. O nosso desafio consiste precisamente em construir um trabalhador coletivo do ponto de vista dos trabalhadores e de sua organização autônoma.

Feitas estas ressalvas, a experiência das câmaras setoriais pode orientar a novos termos a apreensão do trabalho social, procurando superar a vertente fordista da divisão social do trabalho, bem como a limitação capitalista da ciência e da tecnologia como força produtiva. As câmaras setoriais podem estimular o surgimento de formas concretas de "trabalhador coletivo"' aptas a enfrentar a questão do desemprego e da marginalização, desde que não se destinem a administrar conflitos setoriais, exteriorizando os custos desta negociação aos demais planos da sociedade. Devem sim servir para politizar os conflitos, negociando sua relação a outros âmbitos, e visando soluções mais abrangentes e conjuntas que cubram a totalidade regional ou nacional: estimulando a produtividade por ciência e tecnologia socialmente orientadas, pela formação e educação apropriadas a uma outra divisão social do trabalho, por uma cultura de massas que não seja indústria cultural etc. Também nestes termos, estará criada uma base efetiva para que as relações objetivas do trabalho social permitam aposentar os apelos à solidariedade e à responsabilidade ética. Serão desnecessários.

Wolfgang Leo Maar é professor de ética e filosofia da Universidade Federal de São Carlos e foi vice-presidente da Andes.