Cultura

O que fica de interessante é como aquele trabalho funcionou na recuperação de uma identidade e na apropriação de um espaço espiritual numa época de trevas

Talvez o menos interessante naquele trabalho que eu fazia na cadeia seja a obra de arte em si. Não que a gente deva evitar tratá-la como tal. Seria indulgência demais, porque, como a maioria dos artistas presos, pelo menos a partir de um certo momento, tive a intenção de um fazer artístico moderno e culturalmente atuante; e nesse sentido, olhando bem, de todos os lados, acho, sinceramente, que as obras deixam muito a desejar.

Passados praticamente 25 anos, o que fica de interessante, para mim, é como aquele trabalho funcionou na recuperação de uma identidade e na elaboração de um senso de apropriação de um espaço espiritual numa época de trevas.

Depois de um mês de sufoco no Dops, já no Presídio Tiradentes, em fevereiro de 1970, eu não conseguia mais me identificar com qualquer daqueles papéis que desempenhava até então como jornalista, estudante de ciências sociais e, muito menos, como artista. Não cabia. Eu era apenas um preso, sem previsão ou expectativa de liberdade e sem mesmo muita certeza de preservação da integridade física. Foi assim até receber da Bela, minha namorada, uma caixa de crayon e um caderno de desenho.

Desenhei, então, todos os dias, como nunca havia feito antes. Era uma espécie de crônica para registrar o que se passava entre nós. Procurava criar símbolos gráficos e cores, com anotações sobre choques elétricos, a tranca, a porrada; que mostrassem os companheiros de cela, as histórias do Valdizar, o julgamento. Era uma coisa muito de dentro da cadeia, meio como deve ser num hospício, sem propriamente a pretensão de participar de algo culturalmente mais amplo, mais envolvente. Pelo menos até a chegada dos arquitetos. Antes de ser arte, queria ser um testemunho ilustrado, um documento. Aliás, submetido regularmente à censura. Os desenhos eram vistos pelas autoridades carcerárias exatamente como documento. Tanto que vez ou outra - como durante uma greve de fome do frei Giorgio Callegari - eram apreendidos pela direção do presídio a título de "prova", por retratarem a situação de indisciplina e subversão da ordem.

Com o tempo, passou a haver alguma troca de idéias com o Alipio Freire, o Carlos Takaoka, o José Wilson. Acho que mais com o Alipio porque eu tinha participado com ele de uma exposição no Museu de Arte Contemporânea em 1967, a "Jovem Arte Contemporânea". Os novos materiais que a Bela levava - canetinhas hidrográficas, vidrinhos com as cores psicodélicas de ecoline e bons papéis -, permitiram alguma diversificação da linguagem. Mas tudo isso tinha um caráter mais afetivo, de um fazer bonito, despreocupado, muito próprio da cadeia.
Com a chegada dos arquitetos - Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Júlio Barone, Carlos Henrique Heck e Sérgio Souza Lima - foi que o trabalho artístico passou a pretender uma ligação maior com o mundo da arte. O que Ferro, Lefèvre e Heck faziam recolocou para mim aquilo que empolgou verdadeiramente minha geração nos anos 60: a pop art. E foi ali, pela primeira vez, que ouvi falar de gestalt e de certa arte povera. E, é claro, da "tar" da crise do suporte.

Esse pessoal, primeiro, funcionou como um suposto saber, que reconhecia na gente o artista. Depois, como agentes do mundo maior das artes e da cultura. E, finalmente, como demonstradores - e muitas vezes provedores - de uma profusão de materiais, de tintas acrílicas, papel duplex, telas, pincéis e uma parafernália de coisas e coisinhas que o Ferro, em especial, juntava para compor seus trabalhos. Fitas, miçangas, papéis metalizados, colas, arames, bandeirinhas. É difícil imaginar o encanto com aquelas coisas todas.

Peguei uma big carona naquele super atelier que se montou ali. E não foi só o fazer: também, pela primeira vez, passei a dar importância às questões teóricas da arte, que a gente fazia mais por intuição, quando entrou no grande barco da pop a partir de 1965.

A gente colava, recortava, pintava em cima, pintava embaixo, pendurava coisas. Algo que se estendeu depois da libertação e que durou, de alguma forma, até a década de 80.

Mas eu insisto: o que menos interessa nessas produções talvez seja seu caráter artístico. Falo do meu trabalho, ainda que isso possa valer também para alguns outros.

Tínhamos um entendimento falso da pop. Mais ou menos como os chineses da bienal de 1994, que pegam o mesmo bonde, instrumentalizando-o para sua luta política. Entramos na pop porque parecia um meio moderno de arte, próprio para nosso combate revolucionário. Era agressiva, irônica, bem-humorada e carregava um arsenal de ícones suficiente para alimentar nosso discurso. Ao contrário dos americanos, que partiam da banalização da imagem para anulá-la como centro e como alvo do olhar, nós colocamos os ícones como a voz mais forte, a representação. O plano servia para trazer mais rápido nossas questões para a frente. Os temas foram mudando um pouco na cadeia, mas o resultado era o mesmo. Olhe bem detidamente para as nossas produções daquela época e você vai ver, de alguma maneira, a reiteração de uma composição bem tradicional, com figura e fundo, claro/escuro, perspectiva e até secção áurea. Valiam. Mas muito mais como um experimento, um estudo, uma descoberta. Reiterando e ensaiando uma ruptura. Como na política.

Sérgio Sister é jornalista e artista plástico