Nacional

Para se qualificar como alternativa de poder, as oposições democráticas e populares devem se opor de maneira firme, corajosa e programática ao governo FHC

"Negar quando a regra é vender"
Impossible Dream, versão de Chico Buarque de Holanda

Dias antes da posse do novo presidente da República, o colunista do Jornal do Brasil, Marcelo Pontes, observou que "o clima está tão favorável para Fernando Henrique Cardoso, que ele assumirá o governo sem ao menos existir oposição organizada contra ele". Mais de uma semana após a posse, a imprensa continuava registrando a falta de críticas ao novo governo. "Oposição 'em férias' dá folga a FHC - Lula e Brizola descansam enquanto presidente dá início ao governo; só aliados trouxeram problemas a tucanos", manchetou a Folha de S. Paulo, em 8 de janeiro. No dia seguinte era a vez de O Estado de São Paulo: "PT mantém-se em ritmo de férias desde a campanha - No Congresso, o partido ausente das primeiras discussões que envolvem o novo governo".

É claro que todo mundo, inclusive os líderes dos partidos de oposição, tem o sagrado direito às férias e ao descanso. Mas por que logo agora, quando o príncipe se prepara para tomar as primeiras medidas de seu governo - justamente aquelas medidas mais impopulares, aproveitando-se do respaldo ainda quente das urnas e de seus índices de popularidade quase albaneses? E que, por mal dos pecados, serão decretados através da "ditadura benigna das Medidas Provisórias", para usar uma expressão do próprio FHC.

Desconfiado da fragilidade de sua base congressual, o novo presidente afirmou que pretende governar o país com base nas Medidas Provisórias, pelo menos nos primeiros 30 dias, antes, portanto, da posse do novo Congresso. Esta estratégia, segundo a Folha de S. Paulo, pode-se estender por mais 90 dias, o prazo que ele disse precisar para consolidar sua base parlamentar.

É incrível, mas nenhum líder da oposição se insurgiu contra esta pretensão abusiva do presidente. Ao contrário, ele é que reagiu contra a proposta do senador Pedro Simon (PMDB-RS), de extinguir as Medidas Provisórias durante a Reforma Constitucional, justamente para acabar com a passividade do Poder Legislativo. Segundo levantamento publicado pela Gazeta Mercantil, de 19 de dezembro, o governo Itamar Franco abusou tanto do instituto que, somente em dezembro, estavam expirando 54 Medidas Provisórias por não terem sido votadas - o que comprova o fato de que é o Poder Executivo e não o Legislativo que faz as leis no Brasil.

Os líderes da oposição também não deram as caras para dizer o que acham da proposta do ministro da Justiça, Nelson Jobim, de os deputados e senadores aprovarem em três meses a Reforma Constitucional que o governo deve submeter ao Congresso em 15 de fevereiro. As propostas da Reforma incluem a mudança do conceito de empresa brasileira, a "flexibilização" da Petrobrás, a abertura ao capital estrangeiro para exploração do subsolo, o fim do monopólio estatal das telecomunicações, a reforma do sistema tributário e do sistema financeiro, a privatização de uma parcela da Previdência Social etc, etc. Tudo isso - uma nova Constituição - e os partidos da oposição ficaram calados. Bem, a exceção ficou por conta do deputado José Genoino (PT - SP) que, após visitar o ministro Nelson Jobim, seu amigo, afirmou que "o PT terá que ter uma postura diferente da que teve na Revisão Constitucional". Isto é, o partido deve, segundo Genoino, participar das reformas e não boicotá-las (Correio Brasiliense, 05/01/95).

Segundo o presidente do PPS, o senador eleito Roberto Freire (PE), a oposição somente se definirá depois que o governo enviar as propostas da reforma constitucional ao Congresso. Freire acha que a oposição poderá ser "pendular", dependendo da discussão. "Se o presidente propuser uma reforma tributária progressiva, por exemplo, a oposição poderá ser à direita" (Folha de S. Paulo, 01/01/95).

Já o deputado Paulo Bernardo (PR), de plantão na liderança do PT, afirmou que o partido "está dando um tempo para o governo se instalar". O PT, reiterou que não pretende "chutar o balde de cara". Não tem cabimento, o governo está se instalando de forma democrática e constitucional" (O Estado de S. Paulo, 09/01/95).

Dito assim, fica parecendo que fazer oposição é antidemocrático e inconstitucional. Ou até mesmo antipatriótico, como deu a entender a professora e deputada petista Ester Grossi (RS). Durante a posse do ministro da Cultura, o ex-petista Francisco Weffort, ela disse torcer para que o novo governo dê certo. "Afinal, eu sou patriota", emendou. Se o argumento tem lógica, tinha lógica também o slogan do ex-ditador Emílio Garrastazu Médici: "Brasil, ame-o ou deixe-o".

Algumas lideranças da oposição, como o deputado Paulo Bernardo, tentam justificar sua omissão diante do novo governo com a suposta necessidade de lhe "dar um tempo". Outros, nem tentam qualquer justificativa, deixando-se seduzir pelo charme do novo presidente. Na solenidade de posse estavam lá alguns petistas deslumbrados, que não economizaram adjetivos para elogiar FHC: "inteligente", "competente"... "Temos um estadista", carimbou a deputada eleita Marta Suplicy, garantindo que "assinava, feliz, embaixo" o discurso que o presidente acabava de ler, jurando que a justiça social será "o objetivo número um" de seu governo (Folha de S. Paulo, 02/01/95).

O mais lamentável é que este tom de sujeição ao novo governo foi dado pelo próprio candidato da Frente Brasil Popular, logo após as eleições de 3 de outubro. Numa longa entrevista coletiva Lula afirmou então:

- Eu não vou fazer oposição ao Fernando Henrique Cardoso com o meu programa de partido. Eu não vou querer que o Fernando Henrique cumpra o programa do PT, até porque não foi o programa do PT que foi vitorioso.

- Eu vou, primeiro, torcer para que ele consiga cumprir o que prometeu. Segundo: eu vou ser uma espécie de fiscal da cidadania neste país, exigindo que ele cumpra aquilo que foi prometido ao eleitorado brasileiro.

- Que ele gere os milhões de empregos que prometeu. Que ele coloque as crianças na escola. Que ele assente as 400 mil famílias, como prometeu. Que faça as reformas estruturais que ele prometeu, coisa que eu acho difícil ele fazer, se não houver pressão da sociedade (Folha de S. Paulo, 08/10/94).

Lula disse que não vai fazer oposição com base no programa do PT. Não explicou, porém, em que base fará tal oposição. Aliás, disse que primeiro vai torcer para que FHC consiga cumprir o que prometeu, incluindo "as reformas estruturais que ele prometeu".

Como se vê, estamos diante de um samba do petista doido, já que as tais "reformas estruturais" do novo governo destinam-se a pavimentar a estrada para uma maior internacionalização da economia brasileira, para a diminuição do tamanho do Estado, para desonerar o capital de encargos sociais, enfim, as reformas prescritas na cartilha do neoliberalismo.

É isso mesmo que Lula defendeu? Ou será que essas posições saíram da boca de um líder político ainda afetado emocionalmente pela derrota nas urnas? O fato é que, duas semanas depois, Lula concedeu outra entrevista em Brasília, em que afirmou:

- O PT não será mais o partido do contra, aquele que aparenta a opinião pública que prefere o pior para o país. Com a colaboração do PT, o povo precisa acreditar no futuro e no Plano Real.

- Vamos para dentro do Congresso não para combater o Real, mas para aperfeiçoá-lo. Existem pontos que podem ser danosos ao país, como por exemplo, a defasagem cambial - que já está desarticulando setores produtivos.

- Ninguém assume a Presidência da República mal-intencionado ou para errar. Mas o sucesso do governo vai depender dos acordos políticos que o PSDB fará. É uma composição difícil porque o leque de apoios a FHC é muito amplo" (Correio Brasiliense, 22/10/94).

Em resumo: o PT não será mais o partido do contra; o PT vai apoiar o Real; o leque de apoio a FHC é tão amplo, de composição difícil, mas não a ponto de impedir que no seu governo caiba um petista (Francisco Weffort) na condição de ministro.

Ao contrário do que parece, não se está fazendo gozação com esta última afirmação. Na verdade, há militantes do PT que ainda gastam tutano para justificar a aproximação da esquerda com o governo FHC, para evitar (pasmem!) que ele seja engolido pela direita. A nova deputada Marta Suplicy, por exemplo, defende a idéia de uma aliança do PT com o PSDB para isolar o governador Antonio Carlos Magalhães. "Nossa função é formar alianças com o PSDB para impedir que o PFL seja dono do governo", disse ela (Correio Brasiliense, 05/01/95).

Já Augusto de Franco, um teórico petista da corrente do deputado José Genoino, acha que patrocinar "um novo consenso nacional" seria a única maneira de FHC evitar os grilhões da direita. "Para FHC - diz Franco - a única chance de escapar do cerco destes aliados que pretendem domesticá-lo, eliminando de vez as (já não muitas) pretensões reformadoras do seu programa, é ampliar as relações com a sociedade civil, possibilitando a formação de um novo consenso nacional, materializável num projeto alternativo de desenvolvimento para o país".

Tal consenso implicaria a "democratização do fazer político que desconstitua a velha lógica que preside as relações entre o público e o privado" etc. O próprio Augusto de Franco reconhece, no entanto, que isto é um sonho. "Sonhar - diz ele - não faz mal a ninguém. Porque nada disso poderá ser feito sem um gesto político, radical demais tanto para o PSDB quanto para o próprio FHC: romper com o fisiologismo e com o conservadorismo, aproximando-se do PT, dos partidos que compuseram a Frente Brasil Popular em 94, do PDT e de parte do PMDB para formar uma expressiva base parlamentar com o centro e a esquerda no Congresso Nacional" (Informativo do Inesc, outubro de 1994, pág. 3).

Sonhar, de fato, não faz mal a ninguém. Ao contrário, como dizem os freudianos, faz é muito bem, por revelar os desejos e o estado de espírito das pessoas que sonham. O sonho de Augusto de Franco, por exemplo, revela que uma parcela das oposições, no momento, talvez a sua maior parte, encontra-se diante de dilemas que mais parecem pesadelos.

Olhando um pouco mais para trás, parece que as oposições ficaram desnorteadas desde o final da ditadura militar, em 1985. Tem lhe faltado consistência, desde então, para apresentar uma alternativa ao modelo político-econômico ainda vigente, implementado pela ditadura militar.

Esta falta de consistência é que explica porquê o presidente José Sarney se equilibrou tão bem no governo, ganhando inclusive um ano extra de mandato.

É também o que explica a ascensão e a queda de Fernando Collor. Com o perfil de salvador da pátria, Collor se elegeu, confiscou a poupança e iniciou a implementação do programa neoliberal. Tendo ido com muita sede ao pote das verbas públicas, perdeu a confiança das classes dominantes, sendo jogado às feras das oposições, que levaram para as ruas a campanha do impeachment. O que, no entanto, parecia ser uma grande vitória popular, na verdade, foi também uma derrota, já que a agenda neoliberal collorida continuou sendo implementada, agora pelo vice-presidente Itamar Franco, muito mais respaldado politicamente, inclusive pelas esquerdas, em nome da chamada "governabilidade".

Ao contrário do que pensam, o fracasso da revisão constitucional também não foi, principalmente, uma obra das oposições, já então reduzidas aos "contras". Um papel muito maior coube aos próprios revisionistas, que não conseguiram costurar um programa mínimo por causa de seu oportunismo às vésperas das eleições.

Em suma, as oposições falharam nos últimos dez anos em não formular um projeto nacional, um projeto que garantisse a conquista do poder político com base nos interesses das grandes massas populares do país. A frente oposicionista não teve competência sequer para apresentar uma alternativa ao Plano Real, o trampolim da vitória de Fernando Henrique Cardoso, um projeto formulado para atender aos interesses do grande capital financeiro.

A Frente Brasil Popular não conseguiu formular uma proposta concreta para o combate à inflação do ponto de vista das classes populares. Foi como se os membros da Frente estivessem iludidos com a tese da "inflação como desvalor universal", isto é, como se a inflação prejudicasse todos os segmentos sociais de maneira igual e não, especial e principalmente, as camadas mais pobres da população.

Mais lamentável ainda é constatar que, se por um lado, as oposições não foram capazes de apresentar alternativas ao Palácio do Planalto, por outro, ficaram prisioneiras de algumas ilusões. Deixaram-se engabelar pelas discussões do formalismo liberal (voto distrital, restrições a organização partidária, parlamentarismo versus presidencialismo), conforme já explicitou nesta revista o politicólogo Roberto Mangabeira Unger. Caíram na esparrela da prática do denuncismo com altas doses de moralismo, como se a corrupção fosse o principal problema enfrentado pelo país.

Neutralizados pelos ventos neoliberais, em dado momento os oposicionistas já não questionavam o programa das privatizações, mas sim, a lisura dos leilões das estatais. "Privatizar, sim, mas com preço justo", passou a ser quase uma palavra de ordem. Esbravejavam contra a máfia do orçamento, mas se esqueciam de questionar o pagamento (absolutamente legal, previsto em contratos) dos juros da dívida externa.

Neste terreno, em que a direita se move com desenvoltura - o "udenismo", um certo tipo de caça aos ladrões inventado pela antiga UDN, é um termo histórico que também inspirou os generais golpistas em 1964 -, as oposições têm comemorado pequenos avanços como se fossem vitórias memoráveis. Conquistaram o impeachment, sim, mas tiveram que engolir a absolvição de Collor pelo Supremo Tribunal Federal - um tribunal que serve menos à Justiça que aos interesses da classe de seus membros. Lograram a cassação de alguns anões da máfia do orçamento, mas tiveram que engolir o fim da CPI quando esbarraram nas empreiteiras. Por vingança (ou por ironia da História?), as empreiteiras fizeram doações em dinheiro, desmoralizando alguns candidatos do PT. A opinião pública, sempre suscetível à opinião dos meios de comunicação, chegou à conclusão de que os políticos, afinal, são tudo farinha do mesmo saco...

Por tudo isso, está passando da hora de as oposições comprometidas com os interesses populares perceberem a necessidade de propor um programa nacional alternativo ao projeto internacional que o presidente Fernando Henrique Cardoso pretende impor ao país através da medidas de sua administração. É claro que as linhas mestras desse programa precisam ser amplamente debatidas, levando-se em conta o fato de que os modelos do nacional-desenvolvimentismo e do Estado do bem-estar social faliram, e, por outro lado, que o Estado mínimo neoliberal não é uma fatalidade que precisa ser experimentada por povos do mundo. Tal debate não pode ser feito, contudo, por militantes conformistas que se omitem diante do novo governo ou, pior, que a ele estão aderindo. Fazer uma oposição firme, programática, classista, ao governo FHC é a única maneira de travar este debate.

Louve-se a coragem de pessoas como o jurista Fábio Konder Comparato, entre outros poucos, que, fugindo à unanimidade burra das oposições, já abriram as baterias contra o governo FHC. Em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, de 6 de janeiro, Comparato constatou que a "revolução social" prometida pelo "príncipe dos sociólogos" começou bem. "Tivemos, com a posse do Ministério, o 'esquecimento' do programa de reforma agrária, o pedido de desculpas a ACM pela crítica ao uso político do poder de concessão de rádios e televisões e a substituição de toda a ênfase do Plano Decenal de Educação no ensino fundamental pela proposta americanizada de supressão do vestibular. Para completar o quadro, o ministro da Justiça, Nelson Jobim, anuncia a criação de uma assessoria especial de assuntos internacionais, encarregada de 'abastecer as embaixadas brasileiras com informações positivas sobre o Brasil'. Leia-se: convencer as instituições financeiras internacionais, a começar pelo Banco Mundial, de que o nosso querido país aplica uma rigorosa política de proteção aos direitos humanos."

Antonio Carlos Queiroz é jornalista.