Sociedade

A ação do Exército nos morros do Rio obedece a uma teatralidade intencional. Os números dos resultados são pequenos: poucas prisões, pouca apreensão de drogas

"Que a nossa Vendéia se envolva num largo manto tenebroso de nuvens, avultando além em contraste com os deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta como sombra de uma emboscada; rompe-la-emos em breve com as fulgurações da metralha e o cintilar vivíssimos de espadas. E domá-la-emos - A República é imortal..."

Euclydes da Cunha,
Caderneta de Campo, 1897.

A intervenção do Exército nos morros do Rio de Janeiro deve cessar. Nem que seja, por atavismo: todas as intervenções das Forças Armadas brasileiras no campo social acabaram em massacre. Foi assim com a Pedra Bonita, Muckers, Canudos, Contestado. Até a Guerra do Paraguai, que era uma guerra, acabou em extermínio.

As descrições que se obtém das operações são impressionantes, em todos os sentidos. As pessoas acordam sob a ação de tanques, metralhadoras e urutus. No morro do Borel, em frente ao bairro da Tijuca, o visual impacta: segundo os números oficiais, mil ou 2 mil soldados entram em ação, não se sabe ao certo. (A incerteza faz parte da tática). Mas a estimativa da população ao redor varia muito: alguns falam em quinhentos, alguns falam em 5 mil. Registremos: 5 mil foram os efetivos empregados no assalto final à cidadela de Canudos. É um monte de gente...

Há uma ironia profunda em tudo isso. Favela quer dizer pequena fava. Designa um tipo de vegetação comum nos morros empedrados do Rio e do sertão. Segundo consta no populário nacional, foram os soldados que retornavam da campanha de Canudos que começaram a povoar os morros do Rio de Janeiro na forma que atualmente conhecemos. Em Canudos a sede da artilharia que esmagou a cidadela de beatos ficava no alto de um morro: o "alto da favela", conforme registram Euclydes da Cunha e demais cronistas do trágico evento. Daí viria o nome que se juntou aos demais do gênero: mocambo, maloca, segundo a região. Aquilo que o Exército semeou, agora ele mesmo ocupa.

As ações do Exército obedecem a uma teatralidade intencional: o aparato é maior do que a coisa em si. Os números dos resultados são pequenos: poucas prisões, pouca apreensão de drogas. A questão parece não ser esta. A questão é "ilhar o espaço". Fechar as entradas e saídas dos morros. Os depoimentos das pessoas que viram as operações lembram os tempos de 1964. Um jovem em 54 lembrou-se que ao ver as tropas nas ruas naquela época teve uma impressão de que "algo divertido" ocorria. Hoje, sabe que nada disso é diversão; mas a lembrança visual, segundo ele, é a mesma. Tropas, carros de combate, uniformes em correria, "medidas pirotécnicas", conforme disse. "Dar de cara com um urutu" não é uma experiência agradável. Tampouco o é ter que dar voltas e voltas para visitar um amigo ilhado num sopé ou alto do morro. Menos ainda para nosso amigo, veterano de 54, 61, 64, 68, 74, 78, 79, 80, 84, 89, 94, constatar que a população do morro e de fora do morro apóia maciçamente a coisa.

Os efetivos obedecem a uma tática de avanço e recuo. Ocupam as entradas. No caso do morro do Borel, na Tijuca, isto empregou muita gente. As entradas são muitas, o morro é "espalhado". No caso do Dendê, perto da Ilha do Governador, também. Já no caso do Dona Marta, onde duas ruas apenas dão entradas ao morro, o aparato foi menos ostensivo. As tropas avançam, entram batem às portas, ocupam os locais públicos, como escolas e paços, depois saem e voltam aos quartéis. São meninos", dizem os testemunhos: provavelmente são recrutas oriundos dos próprios morros. Tudo parece um balão de ensaio. Os mais escolados advertem: hoje são os morros do Rio; amanhã, o espaço dos sem-terra...

Há denúncias consistentes de maus-tratos impostos à população, sobretudo as de tortura e espancamentos na ocupação do morro do Borel. Parecem verdadeiras, como parece verdadeira a preocupação dos comandantes da operação em coibir tais práticas. Haverá saudosos da ditadura? Claro que sim, mas isso não interessa mais à lógica da coisa. O que interessa hoje é a reação favorável da população.

Esta reação é ampla, enorme, avassaladora, preocupante. Ela se dá dentro e fora dos morros. Fora dos morros, a classe média se alivia, pensando que a bandidagem será contida. Dentro dos morros, os excluídos também se aliviam: a presença do Exército atenua a presença das polícias civil e militar. A bandidagem pode ser contida.

O bom-senso comanda a observação de que o poder público no Rio de Janeiro é hoje refém da bandidagem instalada nos corações das polícias civil e militar do Rio. Foi complô? Foi tramado? Parece que sim. Mas mesmo a consciência mais à esquerda hoje pensa que as coisas "não poderiam ficar como estavam". "Algo deveria ser feito", todos dizem. "Forças Armadas"? Aí começam as discordâncias. Alguns dizem que sim, outros que não. Que nada se fez até a situação chegar a este ponto, o que é verdade. Isto envolve a pusilanimidade dos vários governos estaduais desde 1964, e a passividade criminosa dos vários governos federais, sobretudo os da época ditatorial. Uma coisa é quase unânime, e conta mesmo com a simpatia do autor destas mal-traçadas linhas: devia haver uma ação das Forças Armadas, ou de forças federais, nas polícias do Rio. Tudo ali deve necessariamente ser refeito. Quanto aos morros, a coisa é mais controversa.

O motivo alegado para a ação é o narcotráfico e a dissolução do poder público nos morros. Aí começam os problemas. O tráfico de drogas não diminuiu em decorrência das ações, nem nos morros, nem "no asfalto", como se diz hoje em relação ao "resto", que é, pasmem, zona sul e zona norte unificadas pela angústia. O preço médio continua o mesmo: 5 dólares o papelote de cocaína (dólares, note bem, não reais).

Houve quem quisesse cobrar 20, depois da intervenção, dependendo do local. Não vingou. Algo diminuiu: a presença das armas nos morros, o que faz a respiração mais aliviada para quem ali mora. Explique-se: o comércio ilegal de drogas "no asfalto" é mais regrado, as "áreas" são mais estáveis, a rentabilidade é maior, o produto vendido é melhor, tem mais controle de qualidade. Nos morros não: ali há disputa de áreas, de quarteirões, de mercados. Os tiroteios são diários. A presença do Exército afastou as armas. O primeiro e o segundo escalão do comércio ilegal retirou as armas dos morros, onde vive apenas o terceiro escalão, comprimido por exigências de produtividade, como qualquer gerente de agência bancária. O comércio não diminuiu. Mudou o estilo. Também porque nada desse comércio ilegal anda sem a conivência das polícias. É opinião unânime que elas andam metidas em tudo isso até os olhos. Senão o tráfico não seria possível, senão as armas não seriam possíveis. "No asfalto" o comércio ilegal também não diminuiu. Até porque, seguindo tendência econômica hoje mundial, ele aí é largamente terceirizado. Quer dizer: o segredo da coisa é a informação sobre pontos de fornecimento. Daí o usuário "esperto" é que busca o material: o que ele fornece aos outros paga o seu próprio consumo e a viagem, em geral a Miami, com efeitos financeiros secundários nada desprezíveis.

A presença das Forças Armadas trouxe uma certa pacificação a este cenário conturbado, onde o conturbado era o ruído noturno dos tiroteios nos morros, os massacres provocados pela conivência policial. Essa presença obedece a uma tática deliberada, parece, de redefinir a função dessas Forças no cenário nacional. Essa redefinição implicaria a sua preocupação com a questão social.

Esta, no entanto, não vem desacompanhada da questão política. A intervenção verde-oliva no Rio começou, na verdade, durante a realização do segundo turno das eleições de novembro de 94. Eleitores mais atilados do que a média perceberam a presença dos soldados nos locais de votação, muitos em "posição sentinela", ou seja, com as armas apontadas para a frente. Muitos destes dentro mesmo das salas de votação, o que é ilegal. Os mais atilados dentre os atilados notaram com preocupação as flores que populares entregavam aos soldados nesta hora. Nem mesmo durante os momentos mais memoráveis da ditadura isso acontecia. Em alguns lugares a autoridade armada claramente substituiu a autoridade civil: mesários e presidentes de seções eleitorais se viram na prática substituídos por cabos e sargentos. Houve proporções folclóricas no momento em que uma leitora reclamou do fato de o soldado estar com a arma de cano apontada para a frente: o sargento no comando do destacamento recomendou-lhe encaminhar a reclamação para o Departamento de Relações Públicas do Comando Militar do Sudeste. Quem sabe nas próximas eleições, disse ele, as regras mudariam... Folclóricas - mas preocupantes.

Uma coisa é certa: parece benévola a ação das Forças Armadas para uma população acostumada aos desmandos dos agentes do comércio ilegal de drogas. A relação que estes mantém com a população em geral é de índole fascista: exigem salvo-conduto, passaportes, comportam-se como se fossem autoridades aduaneiras em cada esquina. O bandido romântico dos anos 50 não existe mais. Hoje imperam jovens de aspecto neoliberal, yuppies sem gravata, que atiram antes de perguntar. "Quem fala morre" - esta é uma regra que instituíram nos morros. Seus hábitos advêm dos hábitos das polícias civis e militares desenvolvidos durante a ditadura. Estas, no Rio, ficaram com o trabalho dito "sujo". Ou seja, a inteligência da coisa era feita por SNIs, Cenimares e quejandos. O pau era coisa das polícias. O que o Rio vive hoje é herança dos bons tempos.

Isto deve parar.

Para tanto, algumas propostas:

1 - Cessar responsavelmente a ação das Forças Armadas nos morros do Rio. Isto quer dizer impedir que a cessação signifique o simples retomo do poder parapolicial e narcotraficante nestas áreas. Eles voltarão com sede de vingança. A guerra dos pontos recrudescerá.

2 - Continuar responsavelmente a intervenção federal nas polícias do do Rio. Ali, tudo está por refazer. A responsabilidade é da junção impune entre tarefas policiais e militares promovida pela ditadura durante os anos de chumbo e ferro. Quem embalou Mateus que nos ajude a pari-lo.

3 - Pôr de pé um programa de ação econômica no Rio de Janeiro de pelo menos 500 milhões de dólares (talvez seja pouco) para geração de empregos e de presença do poder público nas encostas dos morros. Isso significa, sobretudo, escola pública. Um sistema. Não coisa paliativa, tipo Mobral, Cieps, Ciacs, Plano Decenal. Será possível? Duvido.

Flávio Aguiar é jornalista e escritor.

Agradeço a contribuição de Vera, Lídia, Graciela, Luís, Neiza, André, Maria Teresa, Marlise, Petersen, Gilberto, Chico, Rogério, Sérgio, Ricardo. Sem eles este artigo não seria possível.