Cultura

Gibis, clássicos da literatura e poesia são algumas das leituras que fizeram a sintonia fina com as imagens formadas pelo cinema e pelo rádio

O porto de Santos, onde nasci, passei minha infância e boa parte de minha juventude, a meio caminho entre São Paulo e o mundo, era nas décadas de 40 e 50, um espaço privilegiado de circulação de riquezas, de idéias e sobretudo de gente. Passageiros embarcando e desembarcando de oníricos transatlânticos amarcordianos ao longo da baía, com suas luzes e chaminés pontuadas, transportando no seu bojo nossas fantasias, nossos projetos de vida, nossos sonhos.

Tendo chegado a este mundo em 39, absorvi desde cedo, através das ondas do rádio, da magia do cinema, das heróicas greves e lutas políticas dos portuários, da rica experiência da escola pública, a pulsação proveniente das profundas transformações que se sucederam ao final da Segunda Guerra.

Filho de mãe professora, mulher emancipada já naquela época, eu, meu pai e meu irmão costumávamos repartir com ela os afazeres domésticos, reservando o tempo livre que nos restava para sorver com apetite lúdico tudo aquilo que nossa pequena cidade podia oferecer.

O rádio ocupava o lugar que a televisão tem hoje. Os programas radiofônicos tinham o dom de estimular o nosso imaginário com opções bem mais criativas que os enlatados multinacionais e a diluviana torrente consumista desencadeada pela ação OMOgeneizante dos anúncios comerciais da televisão.

Meu pai era diretor social do Clube Internacional de Regatas, uma espécie de Ziegfield caboclo. Além disso, éramos sócios do Centro de Expansão Cultural que mensalmente nos brindava com concertos, balé, recitais de poesia. Villa Lobos é um dos troféus do meu álbum de autógrafos, que conta com a assinatura de celebridades como Glen Ford, Eleanor Powell, Janet Gaynor, Mary Martin, Nora Ney, Jorge Goulart, Doris Monteiro, Jardel Filho, recolhidas com fervor juvenil ao final desses saraus que povoam de devaneios meus primeiros anos.

Mas era no suave mistério do escurinho do cinema, que a família comungava com a cidade os seus sonhos, suas aspirações mais íntimas, suas emoções, sua libido. O glamour de Hollywood, as comédias da Atlântida, os picantes filmes franceses, a emoção autêntica do neo-realismo italiano, os suspenses dos seriados, as notícias do mundo, determinavam moda, comportamento e eram o assunto obrigatório na mesa de jantar, na escola e nas reuniões sociais.

No entanto, foi só através da leitura que pude estabelecer a sintonia fina com esse fabuloso universo de imagens, captado pela minha atenta parabólica. Primeiro foram as tiras nos jornais, os incríveis gibis, o Almanaque do Tico-Tico com Reco-Reco, Bolão e Azeitona, os contos de Andersen e dos Grimm, os mágicos serões do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Um pouco mais tarde, os épicos de aventura: Júlio Verne, Rafael Sabattini, Alexandre Dumas, José de Alencar, é claro.

Os clássicos vieram em seguida, como não poderia deixar de ser: Victor Hugo, Balzac, Tolstói, Dostoiewsky, Gorki, Charles Dickens. Os russos contudo pareciam os maiores romancistas do mundo. Que emoção, que profunda identificação com esses personagens. A paixão avassaladora de Ana Karenina, os irmãos Karamazov, Raskolnicov e seu crime terrível, a heróica mãe, invadiam as minhas noites com seu trágico destino.

No início do curso colegial mergulhei de cabeça na poesia: Drummond, Bandeira, Mário de Andrade, Cecília Meirelles, Rilke. A poesia sublimava a tragédia e me fazia flutuar sobre a vida que começava a descortinar-se diante de mim. Era sobretudo uma visão estritamente pessoal do mundo e das coisas, que encontrava no universo de Fernando Pessoa, um campo fértil para minhas explorações existencialistas.

Por outro lado, o contexto da realidade exigia cada vez mais de mim posicionamentos inadiáveis, estabelecendo uma dicotomia que somente Kafka conseguia produzir em termos absolutos.

Foi mais ou menos nessa época, por intermédio de um professor, que comecei a travar conhecimento com a obra de Jean-Paul Sartre. Quando chegou às minhas mãos seu romance A Idade da Razão, pude compreender claramente, acompanhando a trajetória de Mathieu, a opção fundamental de cada um na construção de seu destino, dando contorno social, político e filosófico a todas as minhas indagações.

Anos mais tarde em sua visita ao Brasil, Sartre confirmou definitivamente estas constatações. Em missão revolucionária, recém-chegado de Cuba, convocou a sociedade brasileira a assumir seu papel na mudança dos rumos de sua História, mas isto não foi possível. Trinta e tantos anos depois nos encontramos diante do mesmo desafio.

Sérgio Mamberti é ator.