Cultura

Um tratado sobre as relações humanas numa grande cidade. No caso, Los Angeles, mas poderia ser qualquer outra

Short Cuts - Cenas da Vida 1993 Direção: Robert Altman Roteiro: Rober Altman e Frank Barhydt

Sem levantar nenhuma tese (mas levantando muitas lebres), Short Cuts - Cenas da Vida é um tratado sobre as relações humanas numa grande cidade. No caso, Los Angeles, mas poderia ser qualquer outra, e talvez nem tão grande. A deterioração das relações no convívio social e familiar e o crescente isolamento das pessoas são marcas constantes de qualquer meio urbano contemporâneo.

Dirigido por Robert Altman e baseado no livro homônimo de Raymond Carver, o filme mostra o cotidiano de vários personagens, cujas histórias se entrecruzam em algum momento, geralmente de modo casual.

Casualidade, aliás, é uma palavra-chave nessas histórias. O modo como os personagens levam a vida (e às vezes o modo como morrem) é fortuito, num mundo pautado pelo desencontro e a incompreensão. A casualidade é a tônica também das relações: e mesmo aquelas estabelecidas por laços mais permanentes, como a família, parecem um puzzle de peças que jamais se encaixam.

Robert Altman, com mão tranqüila e segura, conduz a ação em mosaico com tal precisão que o espectador nem sente os 180 minutos de duração. O diretor teve também uma sensível habilidade para costurar as diferentes histórias, que no livro original eram contos isolados.

O elenco também é de primeira, com destaque para Tim Robbins, Jennifer Jason-Leigh (numa atuação memorável), Jack Lemmon, Andie MacDowell, Peter Gallagher. Há figuras hilárias, como a dona de casa (Jason Leigh) que completa o orçamento doméstico com um serviço de sexo pelo telefone. Por si só já vale o filme.

Não existem mocinhos e bandidos nessas histórias. Como na vida real, são pessoas comuns, medianas, capazes de ações melhores ou piores, de pequenas maldades ou de ações terríveis, dependendo das circunstâncias. Altman explora bem as nuances das emoções, a fragilidade do ser humano numa sociedade decadente.

O traço comum entre os personagens é a necessidade de comunicação efetiva. Tentam dizer-nos coisas o tempo todo, por palavras, gestos e principalmente pela expressão do rosto. Mas se o interlocutor está surdo às palavras, mais ainda está cego à sutil leitura do semblante alheio.
O riso que essas cenas às vezes provocam pode disfarçar um incômodo maior; qualquer um de nós poderia ser protagonista delas. Quem já não passou (ou passa) por esse tipo de isolamento, pior que a solidão no sentido literal, de estar com o outro sem ser ouvido, compreendido, percebido por ele?

Na impossibilidade do diálogo, a comunicação toma as formas possíveis, de pequenas farpas à artilharia verbal ou vinganças mesquinhas - o marido abandonado destrói a casa de sua ex-mulher. São mensagens cifradas, patéticos gritos de socorro, como o surpreendente gesto de Bill durante um terremoto.

Parece que só mesmo um abalo sísmico poderia criar uma pausa na dormência coletiva. A perspectiva da morte iminente sacode as pessoas, como a lembrá-las, ainda que por um breve instante, de que estão vivas.

Contudo, Short Cuts não se torna amargo apesar do tema. Em nenhum momento o filme é apocalíptico ou nostálgico. Simplesmente recorta um trecho da realidade para uma observação quase isenta. Com um olhar zen sobre as coisas, mostra as mazelas de cada um sem cair num maniqueísmo fácil.

Em Quinteto, um filme de 1979, Altman já tratava do tema da deterioração das relações e da perda do valor da vida humana. Ali, num cenário de mundo cão, disputava-se no jogo de dados a oportunidade de continuar vivo.

Em Short Cuts, o jogo não é tão explicíto. As regras são aleatórias, e os participantes nem se dão conta de que estão apostando suas vidas num tabuleiro invísivel. Como também não se dão conta de possíveis saídas.

Há um tipo de brutalização que extrapola a questão de classes, muito diferente da violência como resposta às desigualdades sociais. É, antes, um amortecimento da percepção do outro (e de si mesmo) que arrefece o sentido de coletividade, de pertencer a um grupo. Esse é o primeiro e o principal ingrediente para a barbárie.

"Uma pessoa morreu", revela o noticiário da TV sobre o terremoto. "Uma pessoa não é muito", comenta um personagem que o assiste.
Essa frase é só uma das lebres que o filme levanta, especialmente pela circunstância dessa única morte. Uma sociedade que trata seus membros como números pode nunca perceber o que realmente se passa com eles.

Outra lebre é levantada pela moça do fone erótico. Numa conversa com a amiga, ela explica seu modo o que é a realidade virtual: "É praticamente real, mas não é." Mais ou menso como o sexo pelo telefone.

Mais ou menos como a vida dela, dos outros, de quase todos.

Magnólia Araujo é produtora de cinema e vídeo, formada em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP.