O que a tragédia mexicana mostra mais uma vez são os riscos de uma abertura veloz acompanhada de desregulamentação
O que a tragédia mexicana mostra mais uma vez são os riscos de uma abertura veloz acompanhada de desregulamentação
A crise aberta com o colapso cambial do México suscita extensa e estimulante pauta de discussões. Dentre elas, as políticas de abertura econômica e o papel dos estados nacionais e dos mercados nos países em desenvolvimento. A análise das experiências das últimas décadas mostra um quadro de muitas diferenças nestas questões, o que é pouco enfatizado tanto entre os arautos do liberalismo quanto entre parte dos seus críticos.
O que a tragédia mexicana está demonstrando mais uma vez são os riscos de uma abertura externa muito rápida e acompanhada por ampla desregulamentação financeira (facilitando a movimentação de capitais especulativos) e valorização cambial (induzindo o rápido crescimento das importações como instrumento básico de controle da inflação). Políticas deste tipo conduziram a grandes desastres no começo dos anos 80, em especial no Chile e na Argentina.
Daí não decorre, porém, que a crise mexicana tenha demonstrado a inviabilidade ou a inconveniência de todas as alternativas de abertura e integração externa. Basta ver como têm sido diferentes os impactos da crise mexicana em outros países.
O Chile tem sido bem menos afetado que a Argentina, e menos ainda os países de crescimento acelerado do Leste da Ásia (Coréia do Sul, Taiwan, Tailândia, Malásia, Indonésia, China). Embora tão diferentes entre si, há aspectos comuns à trajetória destes países que podem explicar esta situação mais favorável.
Neles a abertura externa concentrou-se no comércio, submetendo-se os fluxos financeiros a controles firmes, com rigor variado (o Chile manteve as restrições ao ingresso de recursos externos nos últimos anos, enquanto Argentina e México ancoraram sua política econômica justamente na absorção destes recursos). Apesar da cautela na abertura financeira, em geral todos foram e são muito agressivos no estímulo às exportações e na exposição do setor produtivo interno à concorrência nos mercados mundiais (ao contrário do amplo e prolongado fechamento comercial do antigo modelo latino-americano), embora com diferenças no controle e direcionamento das importações (aspecto em que o Chile é bem mais liberal que os asiáticos).
Esta estratégia facilitou sua adaptação às mudanças nos padrões tecnológicos, empresariais e financeiros das últimas décadas e o aproveitamento de suas potencialidades. Já os países que persistiram no modelo de fechamento comercial enfrentaram dificuldades cada vez maiores para recuperar o ritmo de crescimento elevado que caracterizava muitos deles até meados dos anos 60. Isto foi muito evidente nos países que passaram pelas fortes turbulências típicas da América Latina nos 80, mas também ocorreu naqueles que não passaram por crises graves no período, como a índia e a Colômbia.
Todos os casos de crescimento acelerado com estabilidade nos últimos anos enfatizaram a abertura externa, mas nem todos os casos de abertura conduziram a crescimento com estabilidade. Daí a conclusão de que o fator decisivo é como fazer a abertura e como articulá-la com o crescimento sustentado.
A natureza da ação estatal aparece como elemento crítico nesta diferenciação. Os casos exitosos dispuseram de um Estado forte e intervencionista, regulador e promotor de políticas (nem sempre com empresas estatais no setor produtivo), capaz de desempenhar papel importante na orientação do investimento, dispondo para isto de sólida base fiscal e financeira e de relativa autonomia frente a interesses privados específicos. Em todos estes casos, porém, o Estado agiu também como estimulador da concorrência interna e externa e ampliou os espaços para a ação dos mercados. Este desenho difere muito do Estado mínimo apregoado pelos liberais e também do antigo modelo de desenvolvimento latino-americano.
Há bons argumentos para questionar estas afirmações. Pode-se argüir que o determinante maior dos problemas latino-americanos nos 80 não teria sido o suposto esgotamento do modelo anterior, e sim o quadro internacional que levou à crise da dívida externa e aos programas de ajustamento regressivos. Esta é uma discussão de fato muito importante, mas que assume cada vez mais um caráter histórico.
É que a crise dos anos 80 e as políticas liberalizantes recentes alteraram em tal extensão as condições internas da maioria dos países latino-americanos, aprofundando a desarticulação do modelo anterior, que este deixou de ser uma alternativa real para estes países.
Enfraqueceram-se os grupos capitalistas que o sustentavam, alguns desapareceram, outros reorientaram seus interesses. As organizações partidárias e sindicais que a ele se referenciavam (como o peronismo e o trabalhismo) estão na defensiva ou imobilizadas, sem capacidade de articulação, assim como os intelectuais que o defendiam ou eram seus interlocutores. Por fim, em países como a Argentina e o México pode-se dizer que houve uma opção estratégica da maior parte das elites pela integração subordinada com os Estados Unidos, abandonando qualquer veleidade de autonomia nacional.
Junto com estas forças, foi se esgarçando também o quadro político típico do período anterior, deixando de haver polarizações e alianças razoavelmente previsíveis em torno dos grandes temas da política econômica.
A esquerda cresceu muito nas últimas eleições latino-americanas, é verdade; mas, embora condene com firmeza os efeitos das políticas em curso nos seus países, demonstra uma cautela próxima da insegurança ao criticar aspectos fundamentais destas políticas. Foi assim com o Nafta no México, é assim com a conversibilidade na Argentina. O debate sobre o que fazer com o câmbio valorizado no Brasil, neste começo de ano, mostrou dúvidas muito semelhantes entre os economistas ligados ao PT e entre aqueles ligados ao governo ou à antiga direita. Ocorre situação parecida em temas menos conjunturais, como a abertura comercial e o tratamento do capital estrangeiro, sempre que o debate passa das declarações retóricas para propostas concretas.
Diante deste quadro histórico e do desafio de agir sobre ele, há que refletir sobre os fatores que permitiram ou estimularam as alternativas citadas, tendo em conta inclusive os seus maus resultados em termos de distribuição de renda e de condições de vida.
Os acontecimentos recentes deixaram claro que o fator nacional continua sendo decisivo na economia e na política, ao contrário do apregoado por análises apressadas que tendem a absolutizar as tendências globalizantes das últimas décadas.
Assim, cabe indagar quais as razões que levaram a elite de alguns países asiáticos a buscar um desenvolvimento não exatamente autônomo, mas capaz de preservar espaços nacionais definidos, embora apostando decididamente na abertura aos mercados mundiais, caso típico da Coréia do Sul; ou por que o Chile de Pinochet foi capaz de enveredar por uma outra trilha depois de ter feito, no começo da década de 80, loucuras piores do que as do México na de 90.
Não são questões acadêmicas. Elas condicionam de forma ampla as opções existentes. Um processo de desenvolvimento sustentado e capaz de criar as condições necessárias para eliminar o apartheid social (síntese genérica do Programa de Governo do PT nas campanhas de 1989 e 1994) supõe um conjunto de projetos que abram perspectivas também para as elites nacionais e para os grandes grupos capitalistas brasileiros e estrangeiros.
Esta é condição necessária para poder convencer estes segmentos a aceitar as restrições que deverão fatalmente suportar no curto prazo para que este objetivo possa ser atingido. Acenar com tais perdas a seco, sem nada em troca, é apostar numa linha de confrontação e ruptura que conduz ao isolamento e à derrota.
Outra linha de reflexão diz respeito ao que deve ser proposto no Brasil, à luz do desastre mexicano, pelas forças de oposição à esquerda do governo Fernando Henrique.
Não é difícil formular um enunciado genérico: reforçar a base fiscal do setor público, de imediato pelo combate firme à sonegação, e, em seguida, por uma reforma tributária e administrativa articulada com a retomada dos investimentos e a melhoria na distribuição da renda; manter os controles cambiais, a capacidade de atuação do Banco Central e o sistema financeiro público, reforçando os mecanismos de controle sobre a atividade destas instituições; definir projetos de política industrial e agrícola que contemplem a inserção externa autônoma e o aumento da produtividade e da oferta de bens de consumo; implementar de imediato políticas sociais de emergência; e, como questão candente da conjuntura, defender a estabilidade monetária nas condições em que o Plano Real foi colocado pela reversão do quadro financeiro externo.
Enunciados gerais como este não são novidade. E não ajudam muito, pois não conduzem a propostas que permitam uma intervenção efetiva na luta política em curso no país. O problema é que não há discussão acumulada em nosso meio para que se possa avançar muito além deste nível inicial. Sobre cada um dos pontos citados há inúmeras polêmicas e poucas definições concretas. Enquanto for este o quadro, será muito difícil sair da posição em que nos encontramos.
A melhor alternativa é trabalhar sobre cada questão e apresentar propostas específicas, realistas e que apontem para os objetivos mais gerais, presentes no enunciado anterior, reconhecendo que falta uma visão de conjunto sobre o que fazer frente aos inúmeros desafios hoje colocados para o Brasil e para os países da América Latina.
Carlos Eduardo Carvalho é economista e membro do Conselho de Redação de T&D.