Cultura

Seu trabalho, embora esquecido, foi fundamental para a formação de um novo humor no Brasil

Itararé não é um ramo; não é um broto, que rebentou no caule; não é um parasita que se enrosca e que suga a seiva de uma venerável planta. Itararé é tronco e raiz de uma nova e benemérita árvore genealógica, que dará sombra e frutos a muitas gerações." Assim, Armando Embrulhos, professor honoris-causa pela Universidade de Boogie Woogie, um dos inúmeros heterônimos de Apparício Torelly, aliás Apporelly, aliás Barão de Itararé, iniciava um vasto panegírico com ares de biografia deste último logo nas páginas iniciais do Almanhaque para 1949.

O centenário de nascimento deste homem de múltiplos talentos, humorista, comunista, político e intelectual, o ilustre fidalgo que gozou dos poderes de plantão por mais de trinta anos, passou em (quase) branquíssimas nuvens pela nossa imprensa. Pois saiba o leitor amigo que a 29 de janeiro de 1895, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, veio ao mundo "esse grande herói que a Pátria chora em vida e há de sorrir incrédula quando o souber morto", conforme suas próprias palavras.

O Barão - autogozação concedida por Apparício em homenagem a uma batalha da Revolução de 30, que deveria acontecer em Itararé e que no fim não ocorreu - nasceu, na verdade, somente em 1930. Isso depois do rapaz ter abandonado na metade seus estudos de medicina e se mudar para a então capital federal. Pois foi ao chegar ao Rio, em 1925, que Apparício procurou seu primeiro emprego em O Globo. "E o que você sabe fazer?", perguntou-lhe Irineu Marinho, na ocasião. "Tudo", respondeu, "desde ser contínuo, até dirigir o jornal", respondeu, sendo contratado em seguida.

Depois de passar por A Manhã, de Mário Rodrigues, Apparício resolveu lançar seu próprio jornal, A Manha, óbvia gozação com o diário do pai de Nelson Rodrigues. Sob o dístico de "quem não chora não mama", o Barão operou uma verdadeira revolução no jornalismo e no humor brasileiro, superando as já gastas fórmulas de Careta, Fon-fon e o Malho. Demolindo falsos mitos e tripudiando sobre o ridículo das figuras públicas de então, Itararé praticou um tipo de humor que sempre se voltou contra o conservador e o estabelecido, criando laços de solidariedade com os que estavam na banda sofrida da sociedade. Repelindo a concepção do humor como "metralhadora giratória", o Barão encamou a fundo a máxima de Millôr Fernandes: "Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados."

Essa identidade com os fracos criou uma situação curiosa, como lembrou o cartunista Fortuna. "Ele transpôs o seu personagem literário para o plano da realidade. De fato, o Barão de Itararé que ele incorpora sempre foi a síntese de tudo o que ele criticava. Daí sua imensa e eterna popularidade", completa Fortuna, "porque o povo não é composto de Barões de Itararé".

O trabalho do ilustre Fidalgo ficaria totalmente esquecido, hoje em dia, se não existissem alguns abnegados divulgadores de sua vida e obra que se dissipou nas páginas inacessíveis de jornais e Almanhaques. Entre estes poucos abnegados, destacamos Leandro Konder (que escreveu uma deliciosa biografia num livrinho da coleção Encanto Radical, da Editora Brasiliense), Zezinho Mendes André e Sérgio Pappi (que reeditaram os três Almanhaques) e Afonso Félix de Souza (autor de uma antologia dos trabalhos do Barão para a editora Record).

A irreverência do Barão levou-o inúmeras vezes à cadeia durante o Estado Novo, classificado por ele como "o estado a que chegamos". O Boateiro, editado pelo Fidalgo, noticiou a primeira dessas prisões, ocorrida em setembro de 1932. Mas o jornal de maior repercussão produzido pelo Barão foi o semanário A Manha, tablóide de circulação nacional, publicado entre 1926 e 1935, com algumas interrupções.

Na edição de 5 de julho de 1930, ao comentar o lançamento do manifesto de Luís Carlos Prestes aderindo ao comunismo, A Manha assegurava que "as teorias explanadas pelo chefe revolucionário estão muito aquém das idéias vigorosas e radicais predicadas e praticadas pelo talentoso homem de letras que está à frente desta empresa". O jornal classificava de "ridícula, simplesmente ridícula" a parte do manifesto que reivindicava a redução da jornada de trabalho para 8 horas, perguntando "por que não pleiteia, como nosso chefe, a abolição completa do trabalho?"

Em outubro de 1934, quando ocorreu a famosa batalha da Praça da Sé entre integralistas e comunistas, o Barão publica (por apenas dez dias) o diário Jornal do Povo, juntamente com Aníbal Machado, Pedro Morta Lima e Osvaldo Costa. Devido à publicação da história de João Cândido, líder da revolta da Marinha, em 1910, o Barão foi seqüestrado e espancado por seis oficiais daquela arma. Sem desanimar, o bravo homem de letras reabre A Manha e coloca na porta uma tabuleta na qual se lê: "Entre sem bater".

Em dezembro de 1935, o Barão é preso por ser militante e fundador da Aliança Nacional Libertadora, que havia realizado um frustrado levante batizado pela direita de "intentona comunista". Desta vez, ele permanece um ano e meio em cana, na companhia de centenas de militantes e simpatizantes do PCB, entre eles, Hermes Lima, Eneida de Morais, Nise da Silveira e Graciliano Ramos. Este último, em Memórias do Cárcere, retrata alguns episódios desta época, quando o Barão chegou a criar a "Rádio Libertadora" dentro do presídio, de onde "irradiava" notícias e gozações para elevar o ânimo de seus companheiros.

O Barão relança A Manha, em abril de 1945, conhecendo um sucesso talvez até maior do que o das décadas anteriores. Nessa época, o jornal contava com colaboradores de peso, como José Lins do Rego, Marques Rebelo, Rubem Braga, Raimundo Magalhães Júnior, dentre outros. Mas quem editava e produzia a maior parte das matérias era mesmo o Barão, que chegou a ser comparado ao dramaturgo inglês Bernard Shaw, coisa logo repelida pelo ilustre fidalgo. "Seria mais justo chamar Shaw de o Itararé da Inglaterra", emendou ele.

Com o final do primeiro governo Vargas, alguns partidários seus lançaram o movimento "Queremista", pedindo a volta do ditador. Aproveitando a onda, Millôr Fernandes - que assinava uma coluna semanal em 0 Cruzeiro, sob o pseudônimo de Vão Gogo - lança o movimento "Queremos o Barão". O engraçado é que anos depois da morte de Itararé, Millôr chegou a comparará-lo a trocadilhistas infames e piadistas popularescos. Zezinho Mendes André e Sérgio Papi, editores das novas versões dos Almanhaques, respondem a esse ataque com uma frase do Barão: "A ingratidão é apenas a falta de memória. "

Depois de participar ativamente da campanha de Yedo Fiúza, candidato do PCB à Presidência da República, em 1945, o Barão candidata-se a vereador do Distrito Federal. O slogan da campanha era: "Mais água, mais leite, mas menos água no leite". O Barão foi um parlamentar combativo e engraçado, tendo sido cassado no final do ano, juntamente com o registro legal de seu partido.

A Manha deixa de circular em 1948. No ano seguinte, o Barão, auxiliado por Guevara, resolve lançar o primeiro de seus Almanhaques (outros dois sairiam em 1955). Os Almanhaques aproveitavam o sucesso que faziam na ocasião os almanaques populares, com dicas, conselhos e curiosidades. Além de gozações sobre fatos do momento, o Barão aproveitava inúmeras piadas já testadas em A Manha. No Almanhaque de 1949, por exemplo, era lançado "um novo jogo de xadrez", em que as peças seriam feitas de material comestível e, "comido o rei, proclama-se a república e a batalha continua com mais vigor". Depois do último Almanhaque, o Barão, já velho e cansado, colabora por algum tempo em Última Hora, pouco saindo de seu apartamento no Rio. Já eram os tempos em que um novo e poderoso veículo se impunha, a televisão. O golpe de 64 desanimou ainda mais o velho humorista. "Este mundo é redondo", dizia ele, "mas está ficando chato".

Depois do golpe, o Barão pouco saía de casa. Dedicava-se ao estudo da matemática e das relações entre a biologia e a eletrônica, ciência que ele chamava de "biônica". Seu apartamento na Praça São Salvador vivia infestado de baratas, que eram tratadas por ele como "companheiras", por terem exercido um papel importante na cadeia, levando amarrados às costas papeizinhos com mensagens para seus colegas de cárcere. Com a saúde abalada e só - sua quarta mulher se suicidara anos antes e seus filhos não moravam com ele Apparício Torelly morreu em casa aos 76 anos num sábado, 27 de novembro de 1971. O "herói de dois séculos", como ele se autodenominava, parodiando Garibaldi, "o herói de dois mundos", chegava assim ao fim, juntamente com uma era. Seu trabalho, embora esquecido para vastas parcelas do público, foi fundamental para a formação de um novo humor no Brasil, que rompeu com a dissipação intelectual parnasiana e adquiriu características mais mundanas, vinculando-se à luta pelas liberdades e por um mundo menos cínico.

Gilberto Maringoni é cartunista.