Internacional

A ratificação plebiscitária do menemismo nas eleições argentinas coloca diversas questões para a esquerda

A Argentina de Menem se destaca por ser o único país que "fez todas as lições de casa" ordenadas pela ortodoxia do Consenso de Washington - privatizando quase tudo que se poderia privatizar; desregulando e liberalizando a economia até o ponto de constituir "mercados selvagens", favorecendo a concentração de renda etc. - e, mais ainda, fez tudo isto ganhando eleições. E é nisto que reside o principal motivo dos incessantes elogios que a experiência menemista recebe dos porta-vozes do FMI, do Banco Mundial, da imprensa e de grupos econômicos associados à "comunidade financeira internacional". Pinochet e o PRI mexicano também fizeram suas lições de casa, mas não podem ser apresentados como exemplos, graças ao seu indelével odor autoritário: o ajuste no Chile se fez nos marcos de uma das mais ferozes ditaduras da história latino-americana, enquanto no México, o elenco governante mostra, mais uma vez, como a adesão entusiástica ao liberalismo nada significa em termos de desenvolvimento democrático. No caso da Venezuela o "ajuste" não foi tão profundo e, além disto, teve um desfecho traumático. Até meados de 1994, as reformas neoliberais haviam sido aplicadas de modo muito superficial e vacilante no Brasil - a maior e mais bem-sucedida economia latino-americana e, não por acaso, o país com o maior e mais bem organizado movimento operário e o maior partido de massas da América Latina.

Informação da sociedade civil

Um dos fatores que alicerça o triunfo do menemismo é o conjunto de transformações estruturais registradas na Argentina depois de uma década de aplicação de políticas neoliberais, que transformaram profundamente a consciência pública, o sistema partidário e a capacidade representativa do movimento operário.

A este respeito cabe destacar a dimensão do processo de direitização e despolitização experimentado pela sociedade civil, especialmente por grupos sociais tradicionalmente mais propensos a votar em propostas de esquerda ou progressistas e que, hoje, tornaram-se presas de uma profunda resignação. Este deslocamento radical, rumo à direita, ou a posições neoconservadoras, está longe de ser um traço exclusivo da Argentina. Encontramo-lo também no Brasil, Chile e México, revelando as dimensões de um processo mundial de criação de um "novo senso comum" privatista, inimigo de tudo o que seja público, e com tendência a acreditar na "magia do mercado". No caso argentino, e acredito que haja ocorrido no Brasil algo bem semelhante, a experiência da hiperinflação reforçou essas características: o Plan de Convertibilidad (Plano Cavallo), assim como o Plano Real no Brasil, fez da estabilidade monetária um valioso fetiche capaz de produzir enormes benefícios eleitorais, em prejuízo das propostas de esquerda ou centro-esquerda que, de um modo ou de outro, no imaginário popular associavam-se à lembrança da inflação. Mais que a fragilidade dessa "estabilidade" - que no caso argentino é mais que evidente se consideramos que com salários praticamente congelados, o custo de vida cresceu mais que 60% desde a implantação da Convertibilidad, em abril de 1991, e que em rubricas como os aluguéis, os aumentos chegaram a quase 200% - o certo é que, mesmo que sustentada artificialmente, ela deverá se traduzir num importante apoio para as diversas experiências neoliberais atualmente em curso na região.

Por outro lado, há que se ter em conta o processo de "unificação burguesa" levado a cabo pelo menemismo, que pôs fim a um longo período durante o qual as diversas frações dessa classe foram incapazes de apresentar uma frente única de resistência às pressões populares e às reivindicações dos setores médios. Em virtude disto, Menem é hoje publicamente reconhecido como o chefe da direita. Tanto da "direita econômica" (constituída pelos maiores empresários, o grande capital transnacional, bancos e a própria Embaixada dos Estados Unidos), quanto pela "direita política", cujos candidatos competiram para partilhar sua cédula eleitoral - para os cargos de deputados e governadores - com a cédula presidencial encabeçada por Menem. A outra face desse processo de "unificação na cúpula" é a desagregação na base, com um movimento operário que, diferentemente do Brasil, encontra-se totalmente desmobilizado, desmoralizado e desprestigiado. Não é um detalhe menor o fato de que sejam exatamente os dirigentes sindicais, o grupo social que detém os mais baixos índices de aprovação junto à opinião pública, inferiores inclusive aos dos militares.

Assim, encontramos na Argentina, um sólido bloco no poder que enfrenta milhares de reivindicações parciais e pontuais, mas carentes de uma "unidade de direção" que possa vir a questionar o poder burguês. Parece-nos neste sentido pertinente a observação feita pelo Financial Times, poucos dias depois das eleições de 14 de maio: "Os argentinos se equivocaram. Foram chamados a mudar o governo, e decidiram mudar a oposição". De fato, depois de seis anos de ajustes selvagens o governo melhorou seu desempenho eleitoral, absorvendo os pequenos partidos da "direita política", enquanto a oposição diminuiu o seu, já que redistribuía internamente seus votos em detrimento da Unión Cívica Radical (partido do ex-presidente Alfonsín), favorecendo a Frepaso, uma heterogênea coalizão centrista basicamente constituída por antigos peronistas, independentes de esquerda e certos setores tradicionais do socialismo.

Democracias a meio do caminho

Existiram outros fatores que possibilitaram o inesperado - por sua margem de mais de 20% dos votos - de Menem. Entre estes, cabe mencionar:

- a perversidade do "pseudo-segundo turno" resultado do Pacto de Olivos, firmado entre Menem e Alfonsín, arquitetado para polarizar a eleição entre as duas forças majoritárias tradicionais (o peronismo e o radicalismo) e para triturar ou absorver todas as demais. Na ingênua avaliação do ex-presidente Alfonsín, isto serviria para institucionalizar uma alternância peronista-radical, ao estilo colombiano, mas o tiro saiu pela culatra e o voto de oposição preferiu jogar água no moinho da Frepaso, em vez de apoiar um radicalismo anarquizado. Ao contrário, Menem foi bastante favorecido pela polarização, e assim pode atingir um objetivo: a reeleição, impensável há dois anos;

- o papel dos meios de comunicação de massas e os "formadores de opinião", que se encarregaram desde o início da campanha eleitoral de circunscrever os parâmetros do discutível, do razoável e do possível dentro dos estreitos limites do modelo neoliberal e suas variantes menores, contribuindo, deste modo, para a débâcle da esquerda. Este é mais um problema que também se manifesta em outros países latino-americanos, especialmente Brasil e México, onde o peso de uma televisão privada completamente à margem de regulamentações como as que existem em países europeus, outorgam a este meio de comunicação - e a seus proprietários e representantes políticos - uma extraordinária capacidade de influenciar e moldar a opinião pública de acordo com o seu ponto de vista, convertendo-os em "o grande eleitor" de nossas democracias, e numa fonte permanente de distorções políticas;

- a fenomenal disparidade de recursos financeiros posta à disposição dos partidos, concebida segundo a mesma lógica do Pacto de Olivos para perpetuar o bipartidarismo e que golpeou fortemente as forças emergentes ao mesmo tempo em que favoreceu extraordinariamente o oficialismo. Nossas democracias continuarão sendo frágeis e imperfeitas na medida em que o dinheiro determine as possibilidades das diversas forças e propostas políticas fazerem ouvir suas vozes.

A reconstrução da esquerda

Para a esquerda, estas eleições significaram um duríssimo golpe. Em primeiro lugar, porque a hegemonia ideológica do "consenso neoliberal" atingiu também a emergente Frepaso, que no seu início ostentara um certo progressismo. Este, no entanto, foi logo convenientemente arquivado, pois se pensou que era desaconselhável questionar uma política econômica que permitia ao governo ganhar eleições, razão pela qual - e numa surpreendente cambalhota política - alguns de seus dirigentes máximos começaram a elogiar a Convertibilidad de Menem e Cavallo. Não há dúvida de que, na Argentina, o apoio popular às políticas neoliberais foi bastante forte. Mas não podemos também esquecer que estamos na presença de um fenômeno de época, e que mais cedo ou mais tarde esse gigantesco caudal eleitoral haverá de se dispersar. Enquanto isto, o refluxo da esquerda se fará sentir por alguns anos.

Em nível nacional, a esquerda obteve apenas 1,5 % dos votos, a pior performance eleitoral desde o começo do século. É evidente que depois dessa derrota se impõe uma autocrítica séria, e a necessidade de produzir uma inadiável renovação de propostas, organizações e diretivas. Na Alianza Sur conhecemos um conjunto de organizações conscientes de que a Argentina necessita de uma nova esquerda, com vocação de governo e livre do espírito de seita, que tantos danos já causou às forças de inspiração progressista. O drama é que, diferentemente do Brasil, não existe em nosso país uma dinâmica de massas que sirva de referencial para esse processo de construção. A esquerda, portanto, está caminhando como um sonâmbulo frente a um país que já não mais é o que era. O neoliberalismo, ao aguçar a injustiça e as contradições sociais, tornará mais que nunca necessário o surgimento de uma nova esquerda. Temos pela frente um imenso desafio, que demandará todos os nossos esforços e nossa imaginação.

Atílio A. Boron é sociólogo, autor do livro Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina.