Política

Três livros, lançados após as eleições de 1994, mostram a visão da mídia sobre o desempenho dos dois principais candidatos à Presidência. Os "xiitas do PT" são tidos como os responsáveis pela derrota de Lula

As eleições presidenciais de 1994 deram origem a mais três livros do gênero "história imediata" (instant books), na esteira do já resenhado (T&D, nº27) A História Real, de Gilberto Dimenstein e Josias de Souza. São eles Crônica de uma Vitória, de Expedito Filho, que conta a campanha de Lula; Crônica de um Sonho, de Alexandre Medeiros; e Como Fernando Henrique Foi Eleito Presidente, de Luciano Suassuna e Luiz Antônio Novaes.

Os autores são excelentes repórteres e cobriram a campanha para algumas das maiores publicações brasileiras (Veja, Jornal do Brasil e IstoÉ, respectivamente). Porém, apesar desta ou daquela revelação, ou detalhe saboroso, nenhum dos livros vai muito além dos clichês utilizados pela mídia brasileira em sua cobertura da disputa eleitoral de 94 e, particularmente, do PT. Não restará dúvida, após a leitura, de que os jornalões e revistões brasileiros fizeram a cabeça de seus melhores profissionais, pelo menos no tocante ao tratamento concedido à esquerda. Os "xiitas do PT", por exemplo - coletivo de largo espectro e ampla utilização -, não lhes servem nem como fonte, ainda que sejam acusados de praticamente todos os pecados da campanha.

Não merecem nem mesmo o benefício da dúvida, embora seja usual nas redações a fórmula "ouvir os dois lados", ainda que como um imperativo formal, espécie de recibo de neutralidade. Mas não é esse o único clichê. Itamar Franco, que sai das páginas de Crônica de uma Vitória e Como Fernando Henrique Foi Eleito Presidente como dono de um papel central na eleição do tucano, ainda assim é retratado com a ligeireza habitual, uma espécie de "trouxa do pedaço". E FHC? Bem, "esse é o homem que vai mudar o Brasil..."

Mitologia

Talvez o autor de Crônica de uma Vitória não tivesse a intenção de perpetrar uma mitologia FHC. Mas, fosse esse o objetivo, ele teria chegado lá. Expedito Filho traça um perfil tão condescendente do novo presidente, que os contrapontos oferecidos no próprio texto, na forma de pequenas ironias sobre as ambições do tucano ou seu pragmatismo, servem apenas para que o doce não passe do ponto, por excesso de açúcar.

Logo no início, Expedito comunica que, graças à vitória de FHC, "a geração ferida e humilhada pelo Ato Institucional nº 5 finalmente chegou ao poder" (p. 16), o que somente pode ser entendido como tentativa indébita de emprestar um glamour esquerdizante a um empreendimento dirigido e financiado pela plutocracia. Pois, como registra o autor umas poucas linhas antes, FHC "amparou-se no sucesso do real e em forças conservadoras, que antes combatera". Põe conservadoras nisto.

Quando reconstitui a trajetória política do tucano, e comenta seu ingresso no Senado pelo PMDB, em 1986, menciona tão-somente que ele se elegeu "no embalo do Cruzado", sem que essa condição de favorecido por um embuste político-eleitoral mereça qualquer consideração. Ao compará-lo com Collor, por serem ambos homens "de elite", assinala que a diferença entre os dois está na biografia: "Collor fez fama de aventureiro cego pelo poder. Fernando Henrique construiu reputação democrática de sociólogo com um olho na história e outro no poder". E arremata com uma piadinha simpática: "Nem sempre nessa ordem" (p. 23).

Embora o livro tenha muitas informações relevantes, que ajudam a compreender as ligações perigosas de FHC no mundo empresarial e seus métodos na política (que nada têm de progressistas), tudo fica na superfície. A promiscuidade do figurão tucano com os mandarins da República é vista como algo, digamos, elogiável.

Sua adesão ao conservadorismo tancredista, já em 1984, seus atos concretos à frente do Ministério da Fazenda (como o submisso acordo com o FMI e o criminoso seqüestro das verbas da Saúde, para criação do Fundo Social de Emergência), tudo é deslembrado ou mal lembrado. A propósito, "esqueçam tudo o que escrevi",- a mãe de todas as frases de FHC, não é referida no livro.

Também os seus vínculos com as Organizações Globo passam incólumes. Que impulso de solidariedade humana terá levado o generoso octogenário Roberto Marinho ao enterro do irmão do então candidato tucano, braços dados com este? O livro sequer cita este episódio. Uma pista: ao preparar terreno para Itamar Franco assumir, às vésperas da derrubada de Collor, FHC "acerta com os herdeiros da Globo um voto de confiança ao senador juiz-forano" (p. 25). Mais do que isso não saberemos, pois no capítulo "O apoio de Roberto Marinho" escassas doze linhas tratam do assunto, para concluir, em outra meia-dúzia, que a Globo "restringiu seu apoio apenas à promoção do Real" (p. 89). Apenas.

Em Crônica de uma Vitória está escrito, com todas as letras, que FHC aconselhou Itamar, já empossado presidente, a aproximar-se dos industriais paulistas. Em meio ao esforço para quebrar a resistência do ex-vice de Collor frente a esse empresariado, o tucano abre o jogo: "Itamar, isso é bobagem! O Carlos Eduardo Ferreira (presidente da Fiesp) vota em mim e no Mário (Covas)" (p. 26).

Outra informação do livro reveladora da edificante praxis política de FHC é sua estranha vinculação com Quércia e Fleury, que aparece de viva voz por ocasião do convite que lhe fez Itamar, para que assumisse o Itamaraty. "O que ele queria mesmo era ser chanceler, mas com uma condição: 'Meu nome tem que ter a aprovação do Quércia e do Fleury'. O presidente do PMDB, Orestes Quércia, e o governador de São Paulo, Luiz Antonio Fleury, não colocaram dificuldades" (p. 26). O garboso tucano, desse modo, colocou seu destino de chanceler nas mãos dos dois principais caciques peemedebistas, a quem acusava de fisiologismo.

Um bom momento do livro é a narrativa do namoro entre Collor e os tucanos, em abril de 1992. Expedito Filho conta que, antes do convite formal a FHC e Tasso Jereissatti para que assumissem ministérios, Collor e o homem da Sorbonne "já tinham se encontrado várias vezes em Brasília". Diz que FHC não confiava no presidente, mas justificava para seus botões a cobiça tucana por postos no governo com o argumento de que "quanto mais perto de Collor estivessem políticos experimentados e comprometidos com a democracia, menor o risco de uma grave crise institucional" (p. 20).

Tasso resolve rejeitar o convite para o Ministério da Infra-Estrutura, segundo o autor por falta de garantias contra o "lamaçal de corrupção" patrocinado pela República de Alagoas. A contragosto, FHC é obrigado a resignar-se, desistindo das pompas do Itamaraty, que lhe fora reservado por Collor. "No dia 13 de maio de 1992, um mês depois do convite, a saraivada de denúncias de Pedro Collor choca os meios políticos. Fernando Henrique e os caciques do PSDB estão naquela situação de pessoas que perderam o vôo e depois são informadas de que o avião caiu e não escapou ninguém" (p. 24).

Nas páginas de Crônica de uma Vitória não teremos um perfil equilibrado do figurão da modernidade tucana, nem um relato imparcial da campanha. É como se FHC estivesse acima do bem e do mal, qual Deus ex-machina capaz de decidir sozinho - depois de alguns tropeços e vacilações - sua própria eleição e os destinos do país, sem vínculos de classe. Sem essa de burguesia. Sem essa de neoliberalismo.

Expedito Filho chega a sustentar, contraditoriamente, que FHC "não fabricou o Real como ardilosa conspiração a favor de sua candidatura" (p. 44). Mas não é isso que se depreende da leitura de diversas passagens:

- "Ali, no 5º andar do Ministério da Fazenda, cercado de prognósticos, começava o governo Fernando Henrique Cardoso" (p. 41).

- "Um mês depois (...) elaborou-se o Plano PAI (Plano de Ação Imediata), visando conter o déficit público. Não era ainda uma paulada na inflação, mas apenas uma solução para efervescentes cobranças da opinião pública que já começavam a se manifestar" (p. 42). Cobranças, diga-se, que não encontravam respaldo na mídia, tolerante e silenciosa como nunca estivera.

- "Quando André Lara Resende integrou-se à equipe em agosto de 1993, a eleição presidencial confunde-se com a história do Real" (p. 47).

- "(...) Esse cronograma (da segunda versão do Real, prevendo a vigência da nova moeda somente em janeiro de 1995) não atendia ao calendário eleitoral do candidato Fernando Henrique Cardoso" (p. 48).

- "Nos dois meses seguintes, Fernando Henrique compatibilizou seu projeto político e a situação nacional com as condições impostas pela equipe. A questão central, o calendário, com as datas de implantação da URV e do Real, ficou para ser definido após a renegociação da dívida externa" (p. 49).

- "(...) Chegou-se à conclusão de que o melhor seria lançar o plano no ano de 1994" (p. 55).

- "Levado por FHC para uma conversa com o ex-ministro Mário Henrique Simonsen, um dos pais da ortodoxia, (Pérsio) Arida convenceu-se das vantagens de uma vida curta para a URV. Com a manobra, FHC garantiu para o primeiro semestre do ano (1994) a edição do Real. Faltava acertar ainda o mês. Em maio, já candidato, tendo Rubens Ricúpero no Ministério da Fazenda, reuniu a equipe econômica para definir a data de entrada em vigor do Real. 'Vocês não podem perder o ponto da goiabada', advertiu" (p. 57).

Expedito Filho conta, sem indignação, que o plano de estabilização concebido pelos fhc boys "foi apresentado a Stanley Fisher, ex-diretor do Banco Mundial, indicado pelo governo americano para acompanhar a negociação da dívida externa", e que "convocaram Fisher para mais três conversas sobre o assunto" (p. 49 e 51). A constatação de James Carville, guru de Bill Clinton, como consultor da campanha tucana (p. 92), é café pequeno perto do patriotismo extremado da equipe econômica.

Ele acerta quando afirma que a operação desmonte da candidatura Lula, patrocinada pelo real, "seria facilitada em todo o país pela ausência de uma estrutura partidária petista que pudesse conter a debandada dos eleitores para o ninho tucano" (p. 94), mas não se estende sobre o tema.

No capítulo "Namoro com o PT, casamento com o PFL", apresenta uma versão controversa sobre um encontro Lula FHC, em fevereiro de 1994, no apartamento do tucano. "FHC argumentou que, sem a emenda constitucional que criava o Fundo (Social de Emergência), o combate à inflação estava comprometido. 'O descontrole da economia é uma grave ameaça à eleição', advertiu. Lula não garantiu o apoio, mas concordou em atenuar a oposição petista em torno do programa de estabilização. (...) 'Nós vamos ter candidato próprio', disse FHC (p. 62). 'O importante é que a gente não fique se agredindo no primeiro turno para não inviabilizar uma coligação no segundo turno', observou. No final das contas, FHC obteve o apoio para consolidar um dos pilares do plano econômico, amarrou uma política de boa vizinhança e desvencilhou-se de um compromisso com o PT" (p. 63).

O "casamento com o PFL" é narrado com candura, como convém quando os noivos são de boa família, e explicado como uma decorrência da estratégia tucana de aprovação do FSE no Congresso, já se contando com o risco de o PMDB quercista votar contra. "Era preciso ampliar a base parlamentar para que o programa fosse aprovado com tranqüilidade. Restou ao PSDB bater no apartamento do senador Marco Maciel, líder do PFL. Era a última opção", relata Expedito Filho, acrescentando que nos entendimentos entre Jorge Bornhausen, presidente do PFL, e o então ministro da Fazenda, em torno das medidas econômicas, "ele e FHC falaram, pela primeira vez, sobre uma aliança entre os liberais. (...) Depois de dois cafés da manhã no apartamento do senador Marco Maciel, o acordo foi selado. Ao PFL caberia a indicação do candidato a vice-presidente. E o Fundo Social de Emergência acabou aprovado com sobras" (p. 63 e 64). Assim, com toda essa simplicidade, selou-se a mais poderosa aliança conservadora já vista nessas bandas do hemisfério. Dá pra acreditar?

A máquina em ação

O forte de Como Fernando Henrique Foi Eleito Presidente é a demonstração irrefutável de que a máquina federal garantiu a candidatura da aliança PSDB-PFL (e PTB), antes mesmo que os mega-empresários se convencessem de sua viabilidade - e, para eles, utilidade - e se decidissem a financiá-la. "Custear uma campanha exclusivamente com doações privadas tornou-se um risco do qual Fernando Henrique soube fugir. O engajamento da máquina federal transformou-se num achado" (p. 29), dizem os autores, repetindo expressão que o boquirroto ministro Rubens Ricúpero tornou famosa. Para os empresários, "era um alívio saber que o candidato contaria, num primeiro momento, mais com a força da administração pública federal do que com os recurso dos seus cofres. Sem a obrigação de contribuir no início da campanha, a iniciativa privada se engajou na cruzada tucana quando o real comprovou ser seu melhor cabo eleitoral" (p. 29 e 30).

O livro demonstra sua tese com muitos dados. "As impressões digitais da máquina do governo na campanha de Fernando Henrique apareceram junto com os primeiros sinais de que sua candidatura seria para valer. Em janeiro de 1994, quando o Fundo Social de Emergência começava a tramitar no Congresso e os preços disparavam nos supermercados, o ministro foi a Águas Belas, a 314 Km do Recife, no sertão pernambucano. Fez declarações como candidato e distribuiu cestas de alimentos aos flagelados da seca" (p. 31).

Era apenas o início. Crime eleitoral, mesmo, eles descrevem em seguida: a Caravana dos Reais, a "mais vistosa atividade" de FHC "em associação com a máquina do governo Itamar", iniciada em julho de 94. "Como uma sombra, a recém-nascida moeda seguia os passos da Caravana da Cidadania do PT. Aonde Lula ia, o real ia atrás. Sob a rubrica orçamentária de 'transferências voluntárias' do governo federal para estados e municípios, a campanha de Fernando Henrique atingiu, sem a ajuda do PFL, municípios jamais alcançados pelo PSDB. Entre 4 e 12 de julho, o governo federal irrigava, como nunca se vira antes, os cofres de prefeituras de cidades visitadas por Lula em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. A pequena Piunhim, por exemplo, tinha recebido R$ 5,43 mil nos primeiros meses do ano. No dia seguinte ao comício de Lula, foi presenteada com um depósito de R$ 1,63 mil para uma creche. Até meados de agosto, o município ganhou mais R$ 86 mil. O mesmo se repetiu em quase todas as outras cidades visitadas por Lula" (p. 32).

Os autores mencionam a existência de uma pesquisa de opinião segundo a qual "o governo poderia influenciar o voto de 32 milhões de eleitores, caso jogasse todo o peso da máquina federal na disputa". A distribuição de cestas básicas para 2 milhões de famílias carentes do Nordeste reverteria a opção de voto de "uma faixa do eleitorado em que Lula tinha a preferência sobre Fernando Henrique na proporção de 3 por 1" (p. 32).

Os ministros Alexis Stepanenko (Minas e Energia), Aluizio Alves (Integração Regional) e Beni Veras (Planejamento) "mergulharam na campanha", mas "nenhum teve papel tão importante, apesar de discreto, quanto (Henrique) Hargreaves". O chefe da Cada Civil de Itamar definia com o ex-deputado Pimenta da Veiga o roteiro da Caravana dos Reais. A liberação das verbas dependia, então, do isento ministro Ricúpero e de seu auxiliar Murilo Portugal, secretário do Tesouro (p. 33).

Itamar, sem o qual FHC jamais seria presidente, também tinha participação direta no esquema. "Na primeira semana de vida do real, o candidato dissera que levaria energia elétrica a uma região iluminada por motores a diesel. Exatos 45 dias depois, o ministro do Planejamento encaminhou ao presidente uma exposição de motivos pedindo prioridade absoluta à obra. Imediatamente, Itamar assinou uma medida provisória, a 584, liberando R$ 15,4 milhões para a construção de uma linha de transmissão que levasse energia elétrica à região" (p. 34).

O livro de Luciano Suassuna e Luiz Antônio Novaes erra, porém, quando passa a analisar o PT e abusa dos chavões prediletos da grande imprensa. Exemplo: "Refém dos xiitas, Lula acreditou que o plano econômico iria 'congelar a miséria' e continuou na oposição ao real mesmo depois da constatação de que a moeda mudara o tom da eleição" (p. 40). E mais adiante: "Ganharia a eleição no primeiro turno caso não tivesse sido vítima de seus próprios tropeços e defeitos" (p. 41), "O clima de 'salvador da pátria' vivido por Lula ajudou a abrir espaço para que sua campanha fosse tomada pelos grupos mais radicais do partido" (p. 42).

Ao descrever a disputa que se travava no comando da campanha acerca de como combater o uso eleitoreiro do Real por FHC & companhia, os autores cometem erros factuais, que têm como base a dicotomia simplista "radicais vs. moderados" (p. 43) e Paulo Nogueira Batista entre os "moderados". Na verdade, os grupos de economistas do PT que divergiram na avaliação dos efeitos do Real não se balizavam por rótulos.

Mercadante, por exemplo, está entre os defensores da participação nas câmaras setoriais, mecanismo abominado por boa parte da ala esquerda do PT. No debate sobre o Real, ele opinou que a nova moeda não teria impacto positivo sobre a população e, ao lado de Maria da Conceição Tavares, sustentou que o Plano seria recessivo. No grupo com posição contrária, e que defendia a adoção de um plano alternativo e uma estratégia de campanha que não fugisse ao debate sobre o Real, mas procurasse desmistificá-lo, figuravam economistas como João Machado (destacado militante de uma corrente tida como "radical" pelos padrões da mídia) e Odilon Guedes (outro "xiita"), ao lado de Eduardo Suplicy, Paulo Nogueira Batista e outros. O divisor de águas não era propriamente ideológico, e o professor Paul Singer, também respeitado economista que não costuma ser acusado de radicalismos, figurou no primeiro grupo e em posições intermediárias.

O livro derrapa mais uma vez quando passa a teorizar sobre a vitória tucana e o resultado das eleições gerais. "O centro de gravidade pendeu para a esquerda, tornando minoritárias forças que tradicionalmente se opuseram a um reequilíbrio na distribuição de renda no Brasil. Criado na academia, Fernando Henrique já defendeu teses marxistas" (p. 77). E depois: "Na guinada para a social- democracia, o país escolheu entre dois candidatos com ampla experiência política. Juntos, Fernando Henrique e Lula fecharam a eleição de 1994 com cerca de 65 milhões de votos. (...) A esquerda terá, enfim, a oportunidade de resgatar parte da dívida social" (p. 78).

Esse mesmo enfoque levou os autores a afirmar que FHC "sustentara alianças que levaram para o centro suas idéias de esquerda" (p. 67). Como não explicam que idéias de esquerda são essas, o leitor deve presumir que são as seguintes: "Você precisa criar um mito e contar a mesma história repetindo quem é bom e quem é ruim. Vira e mexe eu ataco de volta o mito principal. O real é bom, a inflação é ruim. Quem está com a inflação é mau, quem está com o real é bom. Foi só isso" (p. 64). Ou, quem sabe: "Já que não deu a aliança com o PT, queríamos com o PMDB. Não deu com o PMDB, porque o Quércia barrou, fizemos com o PFL" (p. 21).

Não bastasse, os autores defendem ainda a tese de que, "entre os oito candidatos que disputaram a Presidência, Fernando Henrique foi o único a fazer uma campanha científica", isso porque baseou-se em pesquisas o tempo todo e soube incorporar ao seu discurso "parte dos slogans do PT" (p. 71 e 72). As pesquisas mandaram, por exemplo, esconder o vice Marco Maciel e a aliança com o PFL. Parece que, afinal, a ciência dessa campanha consistiu em mentir para o cidadão brasileiro.


Multidões e fogo amigo

Dos três livros, o de Alexandre Medeiros é o que puxa pela emoção, procurando traçar um painel a la John Reed de alguns momentos de impacto da campanha de Lula, como os vividos na Caravana das Águas, no Rio São Francisco. Ao retratar o ânimo das multidões e os desabafos do candidato do PT, Crônica de um Sonho, estruturado na forma de diário, faz descrições coloridas que contrastam com a seqüência de narrativas de conchavos de gabinete tão presentes no outros livros.

É o caso do comício em Palmeira das Missões (RS), em 24 de julho, em que o povão presente dá um banho de solidariedade a José Paulo Bisol, ainda vice de Lula: "É o terceiro encasacado do grupo a estrela principal. Ele vem logo atrás, também de sobretudo e, quando se posiciona ao lado direito do palco, a multidão parece ter acordado naquele momento, tal a euforia: 'Falou e disse, Bisol é o nosso vice', diz o refrão. E outro: 'O povo acredita, por isso Bisol fica'. O vice (...) encontra ali um momento de apoio. (...) Ofegante, suando nas têmporas e na testa, o senador gaúcho encerra sua fala: 'Me sinto bem aqui, mas se for preciso eu desço do palanque e vou para o lado de vocês. Basta abrir o peito'. Uma catarse toma conta da praça, muitos se abraçam." Depois, "Lula dá um longo abraço em seu amigo e a cena parece mais ainda um pedaço de despedida.(...) No canto direito do palco, o senador acende outro cigarro e observa a praça com um olhar perdido, quase opaco. Já sabe que, para ele, a guerra acabou" (p. 56).

Se encontra o ponto alto em tais descrições, a obra afunda no brejo do preconceito quando trata da luta interna no PT. O autor decidiu tomar partido, deixando-se informar exclusivamente pelo chamado "grupo de assessores" de Lula. Não respeitou nem mesmo a formalidade técnica de ouvir os ofendidos. O resultado é semelhante à ladainha produzida pelos editorialistas dos jornalões: ataques gratuitos ao partido.

"O PT e seus entraves internos eram uma pedra no sapato de Lula", "a balbúrdia do partido tinha dado apenas uma palhinha do que era capaz de fazer" (p. 33). "Saídas de emergência não são o forte do PT. As inumeráveis e extensas reuniões do partido para decidir qualquer coisa parecem empurrar os problemas com a barriga. Nessa campanha, em particular, o partido se esmerou em outra tarefa, a de criar problemas" (p. 37), e por aí segue. O autor, diga-se, escolheu Rui Falcão como saco de pancadas: "Seu poder, no entanto, não se mede pelas aparições na imprensa que ele costuma chamar de 'burguesa'. Todos os caminhos de Lula na campanha passam por ele. Até o programa de TV tem sua assinatura". Por isso, acrescenta, "a cara da campanha é um pouco a cara de seu mentor, seja nas ruas ou na TV: circunspecta, sombria, nada amigável. Alegria, nem pensar". Após conceder que Falcão não é considerado de extrema-esquerda ou ultra-radical, mas "radical", Alexandre Medeiros informa que os "desafetos" o chamam de "anão sinistro" (p. 74). Como se vê, o fogo amigo - aquela síndrome que costuma acometer as forças militares dos Estados Unidos, levando-as a abater por engano suas próprias tropas - continua em plena vigência no PT. O autor também chama Falcão de "sem-voto", talvez porque tenha concluído seu livro antes de apuradas as eleições proporcionais, nas quais o então presidente do partido obteve cerca de 25 mil votos.

O fogo amigo aparece em outras ocasiões: "(...) alguns já dão como certa a 'aposentadoria' de Rui Falcão. Ao que tudo indica, o presidente do PT vai perder a hegemonia nas decisões. 'Já pode ser chamado de Rainha da Inglaterra', garante um dos assessores de Lula, enquanto rola a coletiva" (p. 89). E mais adiante: "A mudança no comando, por força de uma pressão do grupo 'light' e do bloco parlamentar do PT, com apoio dos partidos aliados na Frente, acaba saindo na marra. Rui Falcão virou de fato a 'Rainha da Inglaterra'. Greenhalgh perdeu sua força. Os novos 'astros' são Gilberto Carvalho, secretário-geral do PT, Aloízio Mercadante e os sempre discretos Kotscho e Graziano" (p. 103).

O livro ensina como a mídia fabrica uma "crise" dentro do PT, no momento em que FHC abre sete pontos de vantagem sobre Lula (36% a 29%). "Alinhavava as informações da conversa com Frei Betto e da coletiva com o Lula enquanto ouvia os discursos. Do hotel, liguei para José Fortunatti, o líder do PT na Câmara dos Deputados, e tentei aprofundar um pouco mais a história da crise. Bastou perguntar para ele responder: 'Nossa militância está sonolenta e a direção não faz nada para mudar isso. O programa de TV não tem criatividade'. (...) Em São Paulo, o Milton Abrucio Jr., da sucursal do JB, ouviu o José Genoíno e fez render ainda mais a matéria. No dia seguinte (...) o jornal saiu com a manchete "Candidatura de Lula entra em crise'. A ferida externa virou nervo exposto" (P. 90).

Ao falar da controvérsia interna sobre o Plano Real, Alexandre Medeiros incorre novamente em erro, desta vez traçando uma explicação incongruente para o debate: "Mercadante tenta iniciar em BH o conserto de uma grave falha da campanha: os ataques ao real. Não é tarefa fácil. (...) Mercadante foi (...) um dos que orientaram Lula a bater no plano antes mesmo de conhecer seus efeitos. Paulo Nogueira Batista Júnior foi voz discordante: preferia que Lula considerasse o fato de que a nova moeda traria a queda da inflação e isso, de forma inevitável, seria de agrado popular. (...) No final de julho, as pesquisas demonstraram que Lula errou na mão dos discursos. (...) A chegada de Mercadante torna o discurso econômico do PT mais claro: o partido quer moeda forte, mas quer também salário forte" (p. 59). A impressão causada por este trecho de Crônica de um Sonho é de que o autor pratica contorcionismo com as palavras, em defesa de Mercadante. Mesmo porque o mote "moeda forte, salário forte" não tornou mais claro o discurso de Lula.

Está certo que o autor admite, no prólogo, que o livro não pretende ser uma análise de campanha. Mas é evidente que certos tópicos precisariam ser trabalhados com maior seriedade. O reconhecimento de Lula de que não se pode ser candidato por quatro anos, sua declaração a favor de "um grande chamado de base para colocar em funcionamento o movimento social que neutralize o poder econômico" (ambos na p. 212), seu modo de ver o inimigo (considerando que o PSDB tem "posições antagônica" ao PFL, p. 209), essas são questões fundamentais que o livro não desatou. Faltou, ainda, um balanço político efetivo das caravanas. Mais: o papel desempenhado pela mídia não é questionado, nem sequer explicado.

O mais curioso nos três livros é que, ao concluir a leitura, corremos o risco de achar que a "culpa" pela derrota de Lula cabe mesmo aos tais "xiitas" do PT, contra todas as evidências fornecidas nos próprios textos. Os três consideram que a campanha foi cordial, contida, um verdadeiro duelo de cavalheiros, absolvendo FHC de todas as patifarias praticadas contra Lula: o uso da máquina federal, a manipulação do real com o apoio ostensivo dos meios eletrônicos de comunicação, a impressão de milhões de cédulas falsas, a proibição de contribuições de sindicatos concomitantemente com a liberação total dos financiamentos de empresas, as restrições ao horário eleitoral gratuito de TV, a avalanche de denúncias contra Bisol, a vinda do principal assessor eleitoral do presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, e muitas outras. Pouco importa se o jogo foi pesado, pensam; o bom mesmo é que os candidatos trocaram apenas amenidades e pequenas farpas na TV. Daí a campanha "mais elegante e menos empolgante", o "tom equilibrado da sucessão". Salvou-se tudo!

No tocante ao PT, prevaleceu a versão predileta da mídia, aquela que é alimentada pelo fogo amigo. Quando muito, os autores passam de raspão sobre o processo de eleitoralização do partido, que levou a que esperássemos 94 sentados sobre os louros de 89, encantados com o bom-mocismo do PSDB e de parte do empresariado, magnetizados pelo papel civilizador da democracia como valor universal e esquecidos de criar e sedimentar laços com a legião dos sem-nada, além de fortalecer o partido dentro de amplos setores das classes trabalhadoras. Tudo bem: é mais cômodo jogar tudo nas costas largas dos xiitas".

Marco Soares é jornalista.