Cultura

Não consigo deixar de imaginar que triste seria viver num país em que a aproximação dos corpos, a cantada fossem tratados como caso de polícia

O normal seria iniciar este artigo advertindo que o assunto é delicado. De fato é delicado, em função das fúrias que a idéia de assédio sexual faz desencadear. O que não me impede de continuar imaginando como deve ser chato viver num país em que homens capitularam definitivamente de correr riscos por seu desejo. Como se já não fosse arriscado o bastante desejar alguém. Como se fosse fácil demonstrar o desejo ou, o que dá resultados melhores, esconder o desejo e jogar o jogo da conquista. Como se nós, mulheres, não tivéssemos lutado por várias gerações contra o tabu da virgindade, contra a sacralização cristã e repressiva de nossos corpos, contra a dupla moral sexual, contra os obstáculos institucionais, biológicos (há quantas décadas o acesso aos métodos anticoncepcionais se democratizou?), familiares, ao livre uso de nossos corpos.

Não consigo deixar de imaginar que triste seria viver num país em que a conquista, a aproximação dos corpos, a cantada fossem tratados como caso de polícia. Onde a noção de liberdade individual se confundisse com o máximo valor capitalista da propriedade privada. Explico: uma coisa é o direito de cada ser humano dispor livremente de seu corpo, e em nome deste direito condenamos o uso da força, o estupro, o abuso do poder como meio de se obter os chamados "favores sexuais". Outra coisa é tomar os corpos como fortalezas narcíseas intocáveis, propriedades preciosas para as quais uma aproximação não autorizada, um olhar "mal-intencionado" (huummm ... !), um toque erotizado (huummm ... !) equivalem a roubos, ultrajes, violações. Não posso imaginar, como modelo ético, nenhuma combinação pior entre a moral cristã mais puritana e o filisteísmo capitalista mais estreito do que esta que resultou na histeria antiassédio sexual. Mas é claro que a defesa tão apaixonada do direito ao assédio necessita de esclarecimentos e ressalvas, dúzias de ressalvas.

Primeiro: assédio não é estupro. Em hipótese alguma aceitaria confundir a liberdade que estou tentando pleitear com a defesa dos direitos do estuprador. Estou falando de tentativa de conquista sexual (ainda que nem sempre de sucesso garantido). Em que ponto começa o uso da força física, termina o princípio da sedução e começam os famosos casos de polícia? Antes deste ponto, há uma série de outras formas de aproximação que parecem ofensivas às mulheres, e penso que seria bom interrogar as leitoras sobre o que, afinal, pode ser tomado como ofensa.

O normal seria iniciar este artigo advertindo que o assunto é delicado. De fato é delicado, em função das fúrias que a idéia de assédio sexual faz desencadear. O que não me impede de continuar imaginando como deve ser chato viver num país em que homens capitularam definitivamente de correr riscos por seu desejo. Como se já não fosse arriscado o bastante desejar alguém. Como se fosse fácil demonstrar o desejo ou, o que dá resultados melhores, esconder o desejo e jogar o jogo da conquista. Como se nós, mulheres, não tivéssemos lutado por várias gerações contra o tabu da virgindade, contra a sacralização cristã e repressiva de nossos corpos, contra a dupla moral sexual, contra os obstáculos institucionais, biológicos (há quantas décadas o acesso aos métodos anticoncepcionais se democratizou?), familiares, ao livre uso de nossos corpos.

Não consigo deixar de imaginar que triste seria viver num país em que a conquista, a aproximação dos corpos, a cantada fossem tratados como caso de polícia. Onde a noção de liberdade individual se confundisse com o máximo valor capitalista da propriedade privada. Explico: uma coisa é o direito de cada ser humano dispor livremente de seu corpo, e em nome deste direito condenamos o uso da força, o estupro, o abuso do poder como meio de se obter os chamados "favores sexuais". Outra coisa é tomar os corpos como fortalezas narcíseas intocáveis, propriedades preciosas para as quais uma aproximação não autorizada, um olhar "mal-intencionado" (huummm ... !), um toque erotizado (huummm ... !) equivalem a roubos, ultrajes, violações. Não posso imaginar, como modelo ético, nenhuma combinação pior entre a moral cristã mais puritana e o filisteísmo capitalista mais estreito do que esta que resultou na histeria antiassédio sexual. Mas é claro que a defesa tão apaixonada do direito ao assédio necessita de esclarecimentos e ressalvas, dúzias de ressalvas.

Primeiro: assédio não é estupro. Em hipótese alguma aceitaria confundir a liberdade que estou tentando pleitear com a defesa dos direitos do estuprador. Estou falando de tentativa de conquista sexual (ainda que nem sempre de sucesso garantido). Em que ponto começa o uso da força física, termina o princípio da sedução e começam os famosos casos de polícia? Antes deste ponto, há uma série de outras formas de aproximação que parecem ofensivas às mulheres, e penso que seria bom interrogar as leitoras sobre o que, afinal, pode ser tomado como ofensa.

Segunda ressalva: há uma versão hardcore do assédio, o abuso do poder, que também é indefensável. O chefe que insinua à secretária a possibilidade de uma demissão se ela não se entregar a ele incorre em crime de abuso do poder - tanto quanto o chefe que exige horas extras e não paga, ou o militar que utiliza sua patente para intimidar uma vítima de sua barbeiragem no trânsito etc. Abuso de poder, sexual ou não, é crime.

Outra coisa é o efeito sedutor do poder. Aqui encerro minhas principais ressalvas e passo a interpelar a leitora. Sabemos que o poder seduz. Sabemos que as mulheres são particularmente sensíveis a esta sedução, já que durante séculos de dependência econômica fomos educadas para, com o perdão da franqueza, entregar nossos corpos (em matrimônio) ao "melhor partido". Assim, fica muito difícil separar o caso do professor sacana que usou seu prestígio para impressionar e conquistar a aluninha inocente (aliás: e daí?), da aluninha sacana que usou sua beleza e juventude para seduzir um professor bobão. Difícil diferenciar o chefe libidinoso que aproveita sua posição para levar as subordinadas para a cama (outra vez: e daí? Se foi bom, valeu; se não foi, não tira pedaço), da secretária carreirista que alimenta o sonho de cinderela de casar com o chefe - e só depois que percebe ter sido apenas uma aventura é que se magoa e resolve denunciar o "assédio".

Outra pergunta à leitora: e os preconceitos de classe, raça e idade, hein? Se você vai ao cine Belas Artes e um gatinho vem puxar conversa sobre Godard e depois tenta um beijo ou um convite, é romance. Se vai a um encontro do partido cheio de sindicalistas do ABC e um operário aproveita uma pausa da reunião e faz uma proposta a você, então é assédio, não é? Se um rapaz de terno com jeito de anúncio de Vinólia lhe oferecer flores, é aventura. Se a peãozada assobiar e chamar você de gostosa, passando de caminhão ao lado do seu Corsa, é ofensa?

Penso com certo desgosto que as mulheres não estão psicologicamente preparadas para a era de democracia sexual que elas próprias lutaram para inaugurar. Que não suportamos a ferida nascísica de ver nossos corpos, sagrados até a geração de nossas mães, tratados sem a menor cerimônia, e nosso desejo ser interpelado sem romantismo, do mesmo modo que os homens tratam a si mesmos - "gostei de você, quero ter você, você quer?" Nós ainda queremos as rosas, os tapetes vermelhos, as promessas e as garantias - dos tempos em que a virgindade era um bem a ser vendido a preço alto.

Admito que algumas formas de assédio possam consistir em ofensas graves. Mas avaliando perdas e danos, acho a histeria antiassédio, como fenômeno de massa, um retrocesso infinitamente mais grave.

Maria Rita Kehl é psicanalista e membro do Conselho de Redação de T&D