Cultura

Por trás do sucesso do filme cubano, que trata do jogo de sedução de um homossexual com um estudante universitário, está a criação do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (Icaic)

No segundo semestre de 1994, foi lançado comercialmente o filme Fresa y chocolate (Morango e chocolate). Primeira surpresa: resultou razoável sucesso, pois foram feitas vinte cópias do filme para sua distribuição comercial (quando o normal para um filme latino-americano é de no máximo duas ou três cópias). Segunda surpresa: é um filme cubano ("E Cuba lá tem cinematografia de peso?", pergunta-se um espectador menos avisado e mais jovem). Terceira surpresa: o tema é um jogo de sedução de um homossexual culto para cima de um jovem comunista estudante universitário (e pode-se falar disso em Cuba?).

Mas a surpresa mais gratificante é o fato de Fresa y chocolate ser um grande filme, possivelmente um dos mais importantes filmes da cinematografia mundial atual e, certamente, um dos mais importantes filmes da cinematografia latino-americana dos últimos dez anos.

Como se explica isso?

Poucos sabem que o cinema cubano começa com o processo revolucionário, ou seja, nasce com ele. Uma das primeiras leis, após a toamda do poder pelos "barbudos", foi a que criou o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (Icaic). Entre os que começam a fazer cinema em Cuba está Tomás "Titon" Gutierrez Alea, diretor - em dupla com Juan Carlo Tabio - de Fresa y Chocolate.

Flash back

No início dos anos 50, alguns latino-americanos se encontram em Roma para fazer o Centro Experimental de Cinema: o argentino Fernando Birri, o colombiano Gabriel "Gabo" Garcia Marquez e os cubanos Julio Garcia Espinosa e Titon. Mal sabem eles que o futuro lhes reservava em Cuba uma cinematografia e uma escola de cinema...

Fast Forward (até 1959)

O início do Icaic é de urgências: criar uma cinematografia, formar quadros, reorganizar o sistema de exibição de filmes em salas comerciais (um jornal da tela, mais ágil, inteligente e politizado): hoje soma mais de 1.500 edições. Já nesse começo, Titon está em pleno processo de produção, culminando, em 1967, com uma das obras-primas do cinema latino-americano, Memorias del Subdesarollo.

Mas não é apenas de Titon que vive a cinematografia cubana dos primeiros tempos: Humberto Solas, Julio Garcia Espinosa, Manolito Perez, Massip, Pastor Vega, Octavio Cortazar, para mencionar alguns.

Apesar do impiedoso bloqueio econômico a que Cuba é submetida, foi sempre preocupação da direção do Icaic procurar mostrar ao público cubano o que havia de melhor na cinematografia mundial (os Estados Unidos não permitiam, por exemplo, que filmes europeus nos quais tivessem uma participação na produção fossem vendidos a Cuba). O Icaic também evitou que, apesar da falta de filmes americanos, se trocasse uma hegemonia de mercado por outra hegemonia de filmes dos países socialistas: se era para ter alguma hegemonia, que fosse a do cinema latino-americano.

E, mais, o Icaic criou um público para o seu cinema: os filmes cubanos sempre tiveram enorme êxito, chegando alguns deles a serem vistos por praticamente 25% da população do país (seria como se no Brasil algum filme nacional tivesse sido visto por mais de 37 milhões de espectadores, número nunca alcançado por qualquer filme brasileiro ou estrangeiro em nossas salas).

Certamente contribuiu para isso a decisão de fazer chegar o cinema a todos lugares da ilha, por mais difícil e longe que fosse, onde quer que houvesse pessoas a serem informadas e formadas pelo cinema. Foi o fantástico esforço do chamado cinemóvel, que podia levar filmes e projetores e gerador num jipe, no lombo de burro ou num barco a lugares em que nunca tinha havido uma projeção de cinema. Aliás, é retrato deste esforço um documentário de curta duração (que é uma pequena obra prima), Por Primeira Vez, de Octavio Cortazar, que conta a primeira projeção de cinema num lugarejo onde a população nunca tinha visto cinema.

O resto é história: Cuba produziu um cinema com diversas vertentes, organizou dentro do Icaic grupos de criação que representassem essas vertentes. Para os mais interessados numa mais exata e exaustiva cronologia do cinema cubano, sugiro, por exemplo, consultar a biblioteca do Museu Lasar Segall, a mais completa em matéria de cinema existente no Brasil.

Para ficarmos somente com a trajetória de Titon, lembraria que no final da década de 70 ele dirigiu outro grande filme: La Ultima Cena, que se passa na época colonial, contando a história de um senhor de engenho quando, a partir da cerimônia católica do lava-pés, cria-se o conflito entre escravos e seu dono. Nos últimos anos, após o desmanche do chamado bloco socialista, o cinema cubano passa por uma crise de grande proporções, na qual somente é possível pensar em filmes que sejam co-produção com outros países. E é no quadro dessa crise que se realiza Fresa y chocolate.

A respeito de Fresa y chocolate

É um clichê internacional que Cuba teria uma política de Estado contra os homossexuais. Na realidade, trata-se, antes de mais nada, de um aspecto machista da sociedade cubana. Cabe lembrar o exercício em vídeo da aluna Graciela Sanchez, da Escuela Internacional de Cinema e TV (EICTV), No Por Que lo Diga Fidel, feito em 1988, no qual ela desvenda e se dá conta do preconceito contra os homossexuais, a partir da cultura machista, que - obviamente - pode assumir caráter político, mas não por determinação de uma política de Estado e sim por uma utilização política desse preconceito.

Fresa y chocolate toca nesse tabu mas, principalmente, a partir dele traça um humaníssimo painel sobre a dignidade e a amizade entre dois homens. Claro que está outros problemas: o mercado negro, a "santeria" (equivalente à nossa macumba), a posse ilegal de dólares, a "vigilância" nas habitações coletivas, para mencionarmos apenas alguns. Mas atenção: ainda que o filme tenha ressonâncias precisas sobre o presente, a época em que se passa o filme é aproxidamente 1979 (ano da queda do ditador Somoza na Nicarágua - vista através de um filme que é projetado aos alunos da escola em que David - o jovem comunista - estuda), tempo em que era ilegal a posse de dólares por qualquer cidadão cubano.

E o que EICT tem a ver com isso?

Nada e tudo.

Nada, porque é uma escola que não pertence ao Estado cubano: é uma das inúmeras atividades da Fundacion del Nuevo Cine Latino-Americano (FNCL), de direito privado com sede em Havana e presidida por Gabriel Garcia Marquez.

Nada, porque tem total autonomia, não passando seu funcionamento e currículo pelo crivo do Ministério da Cultura ou da Educação de Cuba.

Tudo, porque só a generosidade político-cultural de Cuba permitiu sua concretização em Cuba (aliás, como foi dito por Fernando Birri - principal formulador da EICTV e seu primeiro diretor-geral - no discurso de inauguração da escola, em dezembro de 1986).

Tudo, porque Cuba acredita de tal forma no projeto da EICTV - ou Escola de Três Mundos: América Latina, Caribe, Ásia e África -, que entre a primeira menção pública de sua possível criação e sua inauguração transcorreu tão-somente um ano.

Tudo, porque recebeu dos cineastas e do Icaic o mais total e irrestrito apoio. Tudo, porque tendo Cuba, desde 1959, uma permanente preocupação com o cinema latino-americano (procurando sempre manter com ele os mais estreitos laços, apesar do bloqueio que lhe fora imposto) conseguiu sempre manter em sua cinemateca todas as obras desse cinema. Sem contar que a partir do início dos anos 70 deu condições para que o Comitê de Cineastas Latino-Americanos (organismo informal que foi importantíssimo em sua época para divulgação do cinema latino-americano) pudesse cumprir a contento seus objetivos.

Tudo, porque o Comitê possibilitou a criação, a partir de 1985, da FNCL, com apoio sempre decisivo de Cuba. Tudo, porque certamente a própria existência da EICTV abre novos horizontes não só para os jovens dos Três Mundos, que querem trabalhar com imagem, mas particularmente para os cubanos, que querem ter uma formação no mundo audiovisual.

O que é a EICTV?

É uma escola, no dizer de Fernando Birri, antiescolástica. Talvez para melhor entendê-la seja preciso conhecê-la. Mas vejamos até que ponto sou capaz de explicá-la.

A EICTV não tem nível universitário. Para nela ingressar, o que é realizado com exames, basta ter curso secundário e idade entre 18 e 24 anos (isso para seu curso regular de formação). É uma escola que mescla tão intensamente teoria e prática que muitos apenas vêem sua parte de produção, portanto prática, deixando de ver que é essa intensa produção que possibilita um confronto diário com a teoria. Prática essa que é possível desde as primeiras semanas de curso, pois é facilitado aos alunos fazerem não um livro de anotações, mas um permanente rascunho eletrônico. Prática que obriga os alunos a polivalência (todos devem saber de tudo) num permanente rodízio de funções (roteirista, produtor, diretor, montador, técnico de som, diretor de fotografia). Prática que permite ao aluno errar, não por uma apologia ao erro, mas para que ele não tenha medo do erro. Prática que permite e obriga o aluno a realizar um exercício individual no final do primeiro ano (sem contar as inúmeras experimentações de sala de aula por la libre entre os alunos). Prática que é totalmente gratuita para os alunos do curso regular, que só pagam a passagem de avião para chegar à EICTV: alojamento, comida, curso e a produção dos exercícios são cobertos pelos fundos arrecadados internacionalmente pela FNCL e pela EICTV. Prática que é realmente internacional, pois não se trata de uma escola cubana em que podem entrar alguns estrangeiros: Cuba tem uma cota de alunos igual a qualquer outro país latino-americano. Prática que significa que o plano de estudos se confunde irremediavelmente com o plano de vida, pois alunos e professores estão alojados na antiga Finca San Tranquilino, onde está instalada a escola, o que faz com que três meses de convivência nesse espaço equivalha certamente a um ano curricular de qualquer outra escola do mundo.

A EICTV também procura atender os profissionais de cinema e televisão que já vivem de suas profissões, mas que ainda acreditam que têm muito a aprender ou desenvolver. Para isso existem as oficinas, com duração variável de uma a três semana, às quais tem-se acesso por currículo e que são pagas. Existem também os Diálogos de Altos Estudos, que são dirigidos a profissionais com carreira já consagrada e que se agrupam na EICTV para discutir os mais variados temas relacionados ao mundo audiovisual e dos quais se pode participar por avaliação de currículo e que também são pagos.

Tanto as oficinas quanto os Diálogos sempre se misturam, em algum momento, com o curso regular, apesar de tumultuar o plano de estudos do curso regular. Certamente seria um absurdo não permitir que os alunos do curso regular tivessem a oportunidade de conhecer e dialogar com personalidades que já passaram pela EICTV, tais como Francis Ford Coppola, Istvam Zabo, Ruy Guerra, Harry Belafonte, George Lucas, Fernando Sotanas, Willian Kennedy , Jean Claude Carrière, Francisco Rabal, Antonio Pozucco, Walter Murch, Robert Redford, Yuri Lottman, Costa-Gravas, Gian Maria Volonté, Tisuka Yamasaki, Mrinal Sen, Wole Soyinka, os irmãos Mattelari, para mencionar apenas alguns que lembro de memória. OU seja, é o entrelaçamento das três figuras geométricas que formam o logotipo da EICTV: o triângulo amarelo (curso regular), o quadrado azul (oficinas) e o círculo vermelho (os Diálogos).

Sérgio Muniz é documentarista brasileiro, participou da elaboração do projeto EICTV e de sua instalação, sendo seu primeiro diretor docente (1986-1988).