Economia

O futuro do real não está definido e talvez voltemos a enfrentar as mazelas da inflação elevada. Mesmo que escapemos disto, permanecerá em aberto o desafio de articular estabilidade monetária com desenvolvimento e distribuição de renda

O artigo de Mineiro, Callado, Lecocq e Passarinho (T&D, nº28) amplia o debate sobre o temário de política econômica envolvido na campanha eleitoral de 1994 e estimula a reflexão sobre importantes questões que permanecem atuais. Os problemas ligados à estabilização da moeda continuam no centro da política econômica, com os correspondentes desafios às forças de esquerda. Rever as discussões do ano passado pode ajudar a enfrentá-los.

Os autores criticam algumas propostas apresentadas nos debates do programa de governo do PT. Argumentam eles: "Somente através de um novo tipo de crescimento, sustentado por medidas de ampliação da oferta interna de bens e serviços e eliminação dos mecanismos de lucro inflacionário, se poderia estabilizar de forma duradoura a economia brasileira". Assim, a estabilização monetária "passaria pela própria constituição de novo ciclo de desenvolvimento".

Porém, e este é o ponto a questionar, nada se avança sobre como levar à frente políticas para retomar o crescimento em novas bases na presença de uma inflação de 50%, nem sobre como reduzi-la, aos poucos ou de imediato. Em suma, não se discute a política monetária, cambial e fiscal que deveria ser feita para viabilizar a estratégia proposta.

Os autores reconhecem a relevância destas políticas em diversos pontos do texto, mas de forma implícita: "Seria importante a alteração por completo da política desenvolvida pelo Banco Central, estabelecendo-se de imediato o fim dos mecanismos que possibilitam a existência da ciranda financeira" e também "refundar" o sistema de crédito, em especial de longo prazo, com taxas de juros "compatíveis" com as metas de crescimento econômico.

Teses tão gerais precisam estar acompanhadas por indicações concretas de como se pretende viabilizá-las, nas condições específicas de cada momento. Como desmontar de imediato a ciranda financeira com inflação de 50% ao mês, sem provocar saques em massa das aplicações financeiras e fuga de recursos para o exterior? Com estes níveis de inflação, qual a taxa de juros, de longo prazo "compatível" com o investimento, se é que ela pode existir?

Problema semelhante aparecera em dois artigos sobre os primeiros cem dias do governo Lula (T&D, nº 25), de Odilon Guedes e Paul Singer. O primeiro discorre sobre as medidas iniciais a serem tomadas pelo governo, mas não se refere à inflação nem às restrições por ela impostas. O segundo defende o controle social da inflação por meio de negociações nas câmaras setoriais, mas sem qualquer referência ao que deveria ser proposto pelo governo para o câmbio e os juros.

Voltemos ao primeiro semestre de 1994, quando não se podia saber com segurança qual seria a trajetória do plano URV/real e duvidava-se até mesmo da possibilidade de que a inflação caísse para níveis muito baixos até as eleições. Que faria o possível governo Lula se assumisse com crescimento de preços da ordem de 50% ao mês, ou com a inflação voltando de forma virulenta no caso de malogro do plano FHC?

Num quadro assim, deveríamos apresentar de imediato uma política de estabilização, à qual os demais itens da ação do governo teriam que estar submetidos, ou pelo menos articulados. Ou seja, reconhecer as restrições macroeconômicas e não ceder à tentação de menosprezá-las ou de agir como se elas não existissem. Esta política deveria ser ativa e abrangente, incluindo definições para câmbio, juros e salários, as quais deveriam ser levadas para debate nos foros existentes, mas não poderiam ser delegadas à decisão destes foros.

A opção inicial a ser feita seria entre tratamento de choque ou gradualismo, entre uma política voltada para obter uma queda imediata da inflação ou uma política de redução progressiva. A segunda hipótese me parecia mais adequada em 1989 e em 1994, embora com muitas dúvidas e sem que tivesse conseguido desenvolver uma proposta detalhada o suficiente para dar conta das dificuldades facilmente antevistas.

O tratamento de choque seria em tese mais difícil para um governo como o nosso por alguns motivos básicos: implicaria a desindexação imediata e generalizada, inclusive dos salários, com riscos de choque desgastante com nossa base organizada; traria crescimento muito rápido da renda disponível e problemas de excesso de demanda, colocando o governo diante de desafios difíceis e restringindo a possibilidade de promover aumento imediato dos gastos sociais, pelo risco de aquecer ainda mais a economia; envolveria enorme esforço de elaboração e coordenação, algo muito arriscado tendo em vista nossa inexperiência e a previsível desconfiança que cercaria nossos primeiros passos; e exigiria o recurso a medidas provisórias, seguindo-se complicadas negociações no Congresso.

Além destas razões gerais, na conjuntura do final do ano passado haveria ainda o fracasso recente do Plano Real (se ele sobrevivesse à nossa vitória eleitoral, o problema estaria pelo menos adiado), o que colocaria restrições adicionais a um novo programa de choque.

No quadro de 1994, nosso programa gradualista deveria basear-se em metas declinantes para a inflação, as quais balisariam a correção de preços, salários e tarifas públicas; a correção do câmbio seria fixada em níveis inferiores, com mecanismos de restrição à entrada de capital externo de curto prazo; as importações seriam bastante liberalizadas, de forma a inibir a remarcação de preços domésticos; o Banco Central administraria a taxa básica de juros com uma margem anunciada de flutuação em torno da meta para os preços; seria criado um depósito de poupança especial, com prazo mínimo de resgate de seis meses, aos quais se garantiria o pagamento de correção monetária igual à taxa de juros básica do Banco Central ou à inflação (preços ao consumidor) de fato ocorrida no período, valendo a que fosse maior.

Vantagens de um programa deste tipo em relação ao tratamento de choque: maior flexibilidade para correções nas metas; menor propensão a saque de recursos das aplicações financeiras de menor valor; recomposição lenta dos salários reais e da renda dos trabalhadores em geral; menor crescimento da demanda agregada e das importações; margem mais ampla para realizar gastos sociais de impacto imediato (ponto corretamente enfatizado no artigo de Odilon Guedes); implementação sem necessidade de aprovação pelo Congresso; espaço para negociação prévia com setores do capital e com a sociedade civil, especialmente sindicatos e organizações populares.

Os riscos seriam consideráveis. Uma crítica forte e imediata é que nunca se derrotou desta forma uma inflação de magnitude igual à nossa. Exemplos bem-sucedidos envolveram inflações muito menores (Espanha, Chile), e alguns fracassaram em seguida (México). Pode-se, porém, opor o argumento de que a inflação brasileira é de fato muito singular e de que também os programas de choque falharam seguidamente em enfrentá-la.

O risco mais imediato seria de que um desvio muito grande da inflação efetiva (estimada continuamente por institutos de pesquisa) em relação à meta proposta pudesse gerar movimentos especulativos perigosos. Alterar a meta poderia ser aceitável num determinado mês, mas não em meses seguidos, pois se estimularia a desconfiança quanto aos níveis reais dos juros e a especulação com o câmbio, com risco de descontrole dos mercados e das expectativas.

A questão chave seria o quadro fiscal. Teríamos que realizar um programa drástico e imediato de combate à evasão e controle de gastos, de forma a permitir a geração de superávits suficientes para reforçar a credibilidade do governo, facilitar o controle sobre a expansão dos agregados monetários e da dívida pública e, principalmente, permitir o início de programas sociais de emergência, sem o que nossa base política poderia ser corroída com muita rapidez.

Algumas medidas tidas como imediatas por Mineiro, Callado, Lecocq e Passarinho ficariam em segundo plano. Não deveríamos desmontar logo os mecanismos da ciranda financeira, nem a ampla rede de indexação dos contratos e preços. Também não haveria como promover grandes inovações na política de juros e de financiamento do investimento: aqui se deveria operar com o já existente e procurar parcerias com o capital privado, interno e externo, para viabilizar projetos específicos, em especial aqueles que pudessem ter impacto imediato e sinalizar uma política de negociações e acordos.

Não eram desprezíveis os trunfos disponíveis em 1994 para atingir estas metas. A situação externa era favorável (o Brasil não perdera reservas em fevereiro, sob o impacto da primeira elevação dos juros nos Estados Unidos, mesmo com Lula liderando as pesquisas com folga) e havia disposição de negociar por parte de setores do capital. Para aproveitar tais espaços teríamos que avançar propostas de parcerias, concessões de serviços públicos e privatizações, tudo isto observando as diretrizes gerais que o programa de governo afirmava.

Esta discussão não é de interesse apenas histórico e acadêmico. O PT é alternativa de poder e precisa aprofundar estes temas se quiser de fato viabilizar suas propostas para o país. O futuro do real não está definido e talvez voltemos infelizmente a enfrentar as mazelas da inflação elevada. Mesmo que escapemos disto, permanecerá em aberto o desafio de articular estabilidade monetária com desenvolvimento e distribuição de renda.

Em 1994, um domínio mais amplo destas questões pela equipe econômica do PT, pelo comando da campanha e pelo candidato ajudaria a desarmar resistências e a firmar a imagem de capacidade administrativa que nos fez falta. E talvez tornasse menos difícil enfrentar o adversário e suas iniciativas.

Carlos Eduardo Carvalho é economista e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.