Mundo do Trabalho

O Programa Comunidade Solidária é, na verdade, uma cooptação dos movimentos sociais e uma política de corte de direitos

Comunidade. [Do lat.communitatei S.f. 1. Qualidade ou estado do que é comum; 2. O corpo social; a sociedade. Solidariedade. S.f. Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades de um grupo social, duma nação, ou da própria humanidade.

De acordo com a interpretação dada por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira para as duas palavras que dão nome ao conjunto de ações governamentais proposto por Fernando Henrique Cardoso, fica por conta de cada um a interpretação do que é sentido moral e, principalmente, que tipo de interesse tem um determinado grupo social. Sem pausa para pensar de que grupo social se trata, o conceito se encaixa na mais abstrata promessa de globalização, de moral universal. Com a união das duas, poderia ficar assim: comunidade solidária é o corpo social unido através de um sentido moral comum. Pode parecer bonito, mas continua tão vago quanto a explicação dada pelo governo federal ao que foi denominado de Programa Comunidade Solidária, qual seja: um conjunto de ações governamentais de combate à fome e à miséria, com a participação da comunidade organizada. Uma pergunta: a solidariedade fica por conta de quem? Para entender o verdadeiro objetivo desse empreendimento e a razão da oposição declarada dos movimentos populares, dos sindicatos, ligados à CUT, é fundamental que se conheça alguns dos pontos principais do Programa e os compromissos assumidos pelo governo com os "orientadores" da política mundial antes mesmo de FHC assumir a presidência da República.

Fernando Henrique Cardoso não entrou numa batalha desprevenido. As eleições de 94 demonstraram o grau de articulação dos detentores da máquina, dentro e fora do Brasil, e a capacidade de mudar completamente a direção das intenções. Isso também se faz com propaganda e, principalmente, com planejamento. Foi a imagem do intelectual de centro-esquerda aliada a medidas econômicas de cunho conservador - sabiamente trabalhadas junto à grande imprensa para não parecerem isso - que levaram o candidato vitorioso ao Palácio do Planalto. Foi a responsabilidade dada a FHC por uma estabilização econômica, unida à indecisão do Partido dos Trabalhadores se deveria ou não fazer o discurso do contra, que deixou o caminho mais fácil para o PSDB. Foi a "pequena ajuda" dada ao candidato da aliança PSDB-PFL por quadros vindos diretamente de Washington - aliada a uma crise interna petista que descaracterizou o discurso do candidato da Frente Brasil Popular, que criou o cenário maravilhoso e propício para Fernando Henrique Cardoso. As análises do que ocorreu no primeiro turno podem começar por qualquer uma das alternativas anteriores. Em todas está presente o discurso trabalhado, para que o movimento social se sinta representado de alguma forma. FHC estava sendo o limite da direita. Engana-se quem acredita que os responsáveis pela articulação da candidatura com o governo dos Estados Unidos eram seus aliados pefelistas. Era o próprio FHC quem fazia e faz este trabalho. Um papel consciente, desempenhado por um ator escolhido meticulosamente. Dentro desta encenação estavam as bases para um programa de cooptação e desmantelamento do movimento social, através de "políticas sociais compensatórias", chamado Comunidade Solidária.

A idéia piloto do projeto é o combate à miséria. Para isso, Fernando Henrique anuncia que seria impossível qualquer ação por parte do governo que não considerasse a participação da comunidade através das Organizações Não Governamentais. Um conselho foi formado e algumas lideranças do Partido dos Trabalhadores ajudaram a imprensa a alimentar a idéia de que o partido não tem uma posição formada sobre o assunto. A base partidária vive, novamente, a experiência quase costumeira de engolir um discurso que não define uma política de oposição declarada e nem aponta caminhos. Essa posição (que não é nada) contribui para que se tenha uma visão errada dos movimentos sociais, imputando-lhes um caráter "morno", que é usado pelo governo para quebrar a pressão popular e diluir o caráter de suas reivindicações. Com isso, 42 milhões de brasileiros continuam numa situação permanente de fome e ignorância.

Outro erro é acreditar que as tão propagandeadas Organizações Não-Governamentais são verdadeiramente não-governamentais. Elas surgiram, há um tempo, com uma intenção e idéias bem avançadas para a época. Isso não quer dizer que continuem com os mesmos objetivos ou que, pelo menos, conservem sua essência. A maioria das ONGs no Brasil tem um envolvimento doentio com governo federal e todas têm uma história a contar referente a fínanciamentos. Há dois anos, a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) esteve envolvida com uma denúncia que colocava o dinheiro do narcotráfico como única alternativa para salvar a instituição.

Hoje em dia, pode-se afirmar que essas organizações são um argumento fortíssimo para a idéia de que algumas questões de inteira responsabilidade do Estado, devem ser assumidas na comunidade. De preferência a comunidade pobre, atingida pela omissão do governo em áreas como, por exemplo, educação e saúde. Esse é o gancho perfeito para afirmar, também, que a parceria Estado/Sociedade pode dar "frutos" e, assim, justificar as privatizações que estão a caminho. A brincadeira de FHC é totalmente verdadeira quando faz a sua interpretação da sigla ONG - Organizações Neo-Governamentais. É óbvio que nem todas podem ser colocadas no mesmo balaio, junto com todos os gatos (ou ratos). Mas estas, com certeza, fazem parte daquelas que o governo não pensa em incluir no projeto. Sem contar que existe uma idéia errada a respeito do caráter representativo dessas organizações. Apesar do esforço do governo e das próprias ONGs para provar que possuem representatividade, elas não representam a sociedade organizada.

Inspirado numa idéia mexicana, o Comunidade Solidária promete acabar com a fome no Brasil, o que não foi dito é que, para isso, o governo precisará de recursos que virão das conseqüências imediatas do cumprimento de um acordo feito com o FMI e Banco Mundial, ou seja, a privatização de estatais e o corte no orçamento público. Vale lembrar que isso já vem sendo feito, pois o governo FHC nada mais é que a continuação das políticas assumidas pelo governo Itamar, que serviu de trampolim para a campanha de seu sucessor.

Desde 89, as verbas destinadas à educação e à saúde tiveram uma redução bárbara. A previsão do novo governo é de que essas verbas serão reduzidas ainda mais.

A lógica do Fundo Monetário Internacional fala em co-responsabilidade e globalização. Na verdade, o que acontece é uma tentativa de cooptação dos movimentos sociais como forma de garantir uma política não divulgada (obviamente) de corte de direitos, como educação e saúde. Felizmente, os movimentos sociais e revolucionários não obedecem a mesma lógica. O México provou, através dos guerrilheiros de Chiapas, que as idéias neoliberais de inclusão dos movimentos populares na política globalizadora e suja, de diluição e aniquilamento dos direitos sociais conquistados, não tem eco. A resposta veio através da radicalização e jogou na clandestinidade os verdadeiros sujeitos históricos mexicanos que assistiram, século após século, a destruição de suas aldeias e de seus heróis pela lógica do capital.

Com este quadro, o PT realizou um Seminário de Movimentos Sociais, nos dias 7, 8 e 9 de abril, e tomou uma posição radicalmente contrária a de algumas lideranças de partidos de esquerda, que assumiram uma postura de defesa das propostas governamentais com um simples aceno de cargos no Programa. O discurso da "sociedade morna", assumido anteriormente até mesmo por parlamentares petistas, foi destruído pela representatividade obtida e pela qualidade das análises feitas a um programa que já modificou três vezes suas metas. Com essa polêmica, ficou evidenciada uma distância de opiniões e táticas do movimento popular em relação aos parlamentares. É o movimento puxando os partidos de esquerda, principalmente o PT, a tomarem posição diante de uma tacada inteligente do FMI e do Banco Mundial. Apesar de ser um partido nascido no movimento popular, o PT não conseguiu equilibrar a relação entre a ação institucional e os movimentos sociais, perdendo um vínculo essencial e um canal de diálogo que pode determinar, daqui pra frente, sua trajetória política. É um caminho, sem dúvida, perigoso para um partido que convive com uma crise de idéias, nas quais os conceitos de liberdade e fraternidade sempre se confundiram com seu discurso.

Uma das idéias divulgadas pelo governo a respeito da gestão do Programa, que encontra bastante aceitação por parte de algumas lideranças petistas, é a de que deve existir uma fiscalização por ocasião da implementação do Comunidade Solidária, denotando o nível de influência dos acenos de cargo feitos pelo governo federal. É a tese defendida pelo "tucanos de bico vermelho", que acreditam na inevitabilidade do programa e que, por isso, a melhor maneira de diminuir o efeito destruidor do Programa é através da fiscalização dos recursos e da maneira como serão aplicados. Para isso, a militância terá que disputar espaço dentro dos Conselhos criados pelo governo, com regras definidas por técnicos do governo e administrados por gente de sua confiança.

Insistir nunca custou nada para o governo e é exatamente isso que FHC e sua entourage têm feito. Com a ajuda de alguns parlamentares petistas, a imprensa burguesa cumpre um papel de extrema importância nessa insistência, na medida em que noticia as manifestações de repúdio às medidas neoliberais como fruto de boicote irracional, feitas por elementos "derrotados nas eleições de 94". Para a grande imprensa e para FHC, obviamente, é mais interessante noticiar o desentendimento entre as propostas do PT e o projeto de emenda à Constituição feita por Eduardo Jorge, do que a verdadeira intenção da aliança PSDB-PFL ao propor a participação das ONGs num programa de combate à fome, onde os municípios possivelmente "beneficiados" com essa política não são outra coisa senão a única maneira de fabricar currais eleitorais para as próximas eleições.

O terreno é extremamente fértil e favorável para implantação das políticas neoliberais, pois enquanto o governo discute a melhor maneira de cooptar o movimento social, o único partido com força e expressão para barrar o avanço dessas idéias conservadoras está envolvido numa discussão pautada pela grande imprensa, que mostra a disciplina partidária como uma camisa de força com um molde à la Stalin e um gosto de charuto cubano na boca.

Com o seminário, o PT concluiu o óbvio: é preciso estreitar as relações entre os movimentos populares e a Direção Nacional do Partido. Ao admitir isso, os militantes dizem que existe uma distância e que ela não é pequena. Afirmam também que a participação popular não se dá através da criação de um espaço numa instituição, seja ela qual for. É exatamente o contrário. A partir do momento que é criado um espaço dedicado à participação popular, ela deixa de existir como tal e se transforma em outra coisa.

A reunião de militantes petistas de diversos movimentos sociais para discutir uma estratégia de oposição às medidas do governo, além de chamar os parlamentares para uma conversa de pé de ouvido, que pode ser entendida como um puxão de orelha para alguns, declara o início de uma radicalização já experimentada por outras sociedades. No mínimo, marca a entrada dos movimentos sociais brasileiros numa primeira etapa, que é a do confronto pacífico através das denúncias dos abusos que essa proposta política permite e representa. O sentido moral das propostas do governo, que vincula os indivíduos aos interesses de um determinado grupo, não deve ser assumido pelo PT. Pelo menos um motivo deixa claro, além da categórica negativa dada pelas lideranças populares, que os objetivos dos dois blocos de idéias correm em direções antagônicas: os interesses de um determinado grupo, ou seja, do FMI nunca foram benéficos para a população dos países do Terceiro Mundo.

Sonia Hypólito é Secretária Nacional de Movimentos Populares do PT.

Bia Abramides, Marcos Bandini e William Aguiar são membros do Coletivo Nacional da SNMP.