Internacional

O preço e a procedência das blusas de cashemere indicam a onda avassaladora do neoliberalismo

A avenida 18 de Julho é o corredor comercial de Montevidéu. Nela existem lojas, restaurantes, galerias, cinemas e ambulantes. O intenso movimento de pessoas, que se estende até altas horas da noite, pode dar a impressão de uma cidade viva, cheia de energia, com uma forte veia de metrópole.

Este panorama não é muito diferente do que aquele local sempre foi. A diferença está no preço de uma blusa de cashmere, cujo preço médio passou de 60 para não menos de 100 dólares em menos de quatro anos. E com um detalhe: o produto agora é fabricado na Itália, e não mais no Uruguai.

O fenômeno cashmere ilustra bem o estado da arte ao qual chegamos depois da avassaladora onda neoliberal que varreu o continente. Forte programa de privatizações, abertura indiscriminada do comércio e do mercado de capitais, desregulamentação das relações de trabalho, destruição dos recursos naturais e expansão da pobreza, do desemprego e da exclusão social são alguns dos resultados da globalização da economia.

Talvez por isso mesmo, os partidos de esquerda reunidos em maio último, na capital uruguaia, se viram às voltas com um dilema muito mais complexo do que nas quatro edições anteriores do Foro de São Paulo, especialmente no último encontro, em Havana, que apontou possibilidades de vitórias eleitorais que enfiariam o sapo na garganta do monstro, Entre julho de 1993 e maio deste ano, aconteceram eleições em quatorze países. Apesar do incontestável avanço (a esquerda obteve globalmente o seu melhor resultado ao conquistar 30% do eleitorado), as urnas ratificaram o projeto neoliberal, com exceção da Venezuela e do Panamá.

O desafio revelou-se maior que a capacidade de enfrentá-lo, embora organizações representativas como o PT, o PRD (México) e a Frente Ampla (Uruguai) tenham obtido votações expressivas. Por outro lado, parte da esquerda latino-americana, exatamente aquela que viu os eleitores passarem longe de seus candidatos, preferiu, uma vez mais, a lengalenga dos discursos e a incorrigível vocação à autofagia (leia texto abaixo).

O eixo central da reunião, portanto, era claro: como construir uma alternativa ao neoliberalismo e recuperar o terreno ideológico entre as massas populares, atualmente eleitoras majoritárias dos planos de estabilização. Três dias e três noites, contando um emocionante ato de abertura, não foram suficientes. Como, quem sabe, não serão suficientes três meses, três anos ou três gerações para que a esquerda possa combinar seus postulados democráticos, libertários e de justiça com a formulação de um projeto de longo prazo para a humanidade, tal o espanto diante da hegemonia conservadora atual.

Houve, no entanto, uma análise bem consolidada das conseqüências sociais do projeto neoliberal e suas implicações na soberania dos países periféricos. No documento que analisa a evolução econômica, social e política do continente desde o 4º Foro, em julho de 1993, o PT ressalta a redescoberta da América Latina pelos Estados Unidos, que necessitam reequilibrar seu comércio exterior com o mundo via "mercados emergentes", num processo de expansão de seus produtos industriais, agrícolas e de serviços. Portanto, qualquer formulação de política alternativa passa necessariamente pela construção de um projeto nacional de desenvolvimento, com metas bem definidas quanto a políticas industriais, agrícolas, educacionais e de ciência e tecnologia. Em uma palavra: recoloca-se para a esquerda latino-americana e caribenha a questão da soberania como elemento de resistência ao avanço neoliberal, ligada a uma perspectiva de integração regional já em andamento.

Outro problema colocado no plano simbólico e orgânico é o da representatividade das instituições políticas, seriamente abaladas por escândalos de corrupção e casos de incompetência. No momento em que a maioria dos partidos incorpora a ação institucional como extensão das lutas sociais, assumindo uma "agenda positiva", faz-se urgente a consolidação dos processos democráticos. "O fato de os avanços na democracia política não haverem se traduzido em melhorias da condição social das maiorias lança um descrédito geral sobre a política e os políticos que pode atingir, inclusive, as organizações de esquerda", alerta o PT.

Vê-se, no entanto, que a esquerda ainda não está muito confortável com desafios que fogem às suas respostas tradicionais, o que dificulta a renovação programática e a capacidade de inserção na sociedade. A questão dos novos atores sociais é um exemplo. Quem são eles? De onde vêm? O que têm a oferecer à causa dos trabalhadores? Nesse momento, o debate oscila entre a generalidade e as definições abstratas, que agradam mais aos ouvidos do que à razão. Daí a necessidade, levantada por lideranças como Shafick Handall, de El Salvador, Cuauhtémoc Cárdenas, do México, e Marco Aurélio Garcia, do PT, de a esquerda assumir o debate sobre cidadania, autonomia, participação popular e controle social do Estado.

Acuada politicamente pelo projeto neoliberal, que tem o apoio conjuntural dos excluídos, a maioria dos partidos de esquerda mostrou o desejo de superar anos e anos de conformismo teórico. "A magnitude da responsabilidade que temos com os nossos povos nesse difícil momento histórico exige, certamente, o rechaço ao pragmatismo puro e também à perigosa tentação de viver num limbo teórico paralisante", enfatizou o general Liber Seregni, presidente da Frente Ampla, em seu discurso de abertura do Foro. "Sem ficar congelados em palavras de ordem abstratas, que se tornam paralisantes, e sem esperar a chegada do modelo puro, trata-se de avançar e recolher conjuntamente as novas contribuições teóricas", afirmou.

Às vezes enfadonhos, às vezes esperançosos, encontros desse tipo revelam que a esquerda faz um esforço sincero para responder ao atual momento histórico. Para avançar, porém, é preciso ampliar o diálogo e a troca de idéias e falar mais para a sociedade, incorporando novos setores. O problema é como ajustar as contas com o passado, sem renegá-lo, e, ao mesmo tempo, criar as bases de um novo movimento que mantenha a perspectiva da sociedade socialista.

Marco Piva é jornalista e membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT.

Decifra-me ou devoro-te

Num dos episódios mais controversos do encontro, o pedido de expulsão do Movimento Bolívia Livre (MLB), formulado pelo Partido Operário da Argentina, provou que a esquerda latino-americana ainda tropeça em suas divergências. De um lado, a acusação, respaldada por dez organizações congêneres de cinco países (Argentina, México, Chile, Uruguai e Paraguai). De outro, a defesa, representada pelo grupo de trabalho (GT), comissão executiva do Foro.

Qual foi a acusação? Nas palavras do PO, o MBL cruzou a linha que separa "a vítima do algoz, o opressor do oprimido, o explorador do explorado" ao aceitar a decretação do estado de sítio na Bolívia. Não bastasse fazer parte do governo de Sánches de Losada, o partido boliviano teria sido "cúmplice" da repressão contra trabalhadores em greve.

Realmente não é fácil admitir na mesma mesa alguém que aceita um governo que ataca, temporariamente ou não, as liberdades públicas e promove o toque de recolher, justificando-se da mesma forma que os militares sempre o fizeram durante as ditaduras. Ocorre, porém, que tão grave quanto assinar um estado um estado de sítio é acusar um partido do mesmo campo sem querer ouvi-lo, colocando isso como primeiro ponto de pauta em prejuízo de outras questões importantes. E o que é pior: exigiu-se a expulsão de um membro do Foro quando sabe-se que essa instância não conforma nenhuma espécie de Internacional, na qual são tomadas deliberações desse tipo. Fosse assim e o Partido Socialista chileno sequer teria pisado em Montevidéu pelo fato de apoiar um governo com características neoliberais.

Pode-se (e deve-se) discordar de atitudes como a do MBL através de um debate franco e aberto, com direito à apresentação de justificativas de ambos os lados, como acabou acontecendo. Mas a esquerda tem a obrigação de rechaçar igualmente propostas como a do Partido Operário da Argentina e seus seguidores que vão ao Foro para reforçar pensamentos estreitos que nunca convencem nem as massas que dizem representar, nem os eleitores para os quais apresentam candidatos. Em tempo: enquanto o MBL obteve 7% dos votos para presidente, o candidato do PO não alcançou 0,3% nas eleições de maio na Argentina.(MP)