Política

Na política os momentos de grandes consensos têm sido também de grande mediocridade intelecutal

Um monarca, ou qualquer governante, gostaria de não ter nenhum outro controle sobre suas ações do que sua própria vontade, e reinaria então, se pudesse, despoticamente, sem ser controlado por nenhum poder.

David Ricardo, Observations on Parliamentary Reform, 1824

1. Antes de se tornar ele mesmo uma unanimidade nacional, até um tipo equívoco como Nélson Rodrigues chegou a desconfiar que "toda unanimidade é burra". A política não é uma exceção. Nela, os momentos dos grandes consensos têm sido também e, invariavelmente, de grande mediocridade intelectual. Nesses períodos, o debate de idéias é substituído por uma curiosa combinação de mesmice e ambigüidade. Mesmo as cabeças mais lúcidas não conseguem resistir por muito tempo à repetição incessante dos mais irrelevantes lugares-comuns, quando não se tornam elas próprias peças decisivas da eficácia conservadora nessa hora de fadiga ideológica das forças políticas de esquerda. Expressões e palavras desprovidas de qualquer significado preciso vão se transformando nas pedras angulares de uma nova sabedoria convencional e dominante, o mainstream dos ingleses. Os ensaios acadêmicos e a mídia martelam diariamente e logo todos repetem, como se fossem tópicos ou conceitos indiscutíveis de uma "agenda política" comum e consensual, o que de fato não passa de um amontoado de fórmulas empregadas de forma intencionalmente vaga, tais como "descentralização", "novo pacto federativo", "competitividade", "desregulação", "prioridade social" etc. Dentre essas novas palavras de ordem, duas parecem caracterizar efetivamente o núcleo duro da estratégia liberal-conservadora que vem se impondo à nossa sociedade: "reformas estruturais" e "governabilidade".

O surpreendente em tudo isto, entretanto, não é a eficácia com que a propaganda vai construindo um novo senso comum, mas a facilidade com que ele imobiliza intelectualmente uma esquerda política que vem demonstrando grande dificuldade para redefinir seu papel e seu projeto como oposição ao liberal-conservadorismo. De maneira que se uma parte apenas consegue resistir na forma da pura negação, outra parte, sobretudo os seus intelectuais, vai racionalizando a inevitabilidade material e "global" das reformas e das políticas econômicas liberais, transformadas pelo novo senso comum na "única forma", além de tudo, de assegurar o sacrossanto objetivo da governabilidade, que também passou a ocupar lugar central nas preocupações políticas e nas discussões e publicações acadêmicas da esquerda intelectual.

2. Para avaliar, contudo, o preço que a oposição e a esquerda brasileira em particular poderão pagar, no longo prazo, caso não consigam desvencilhar-se desta armadilha (que alguns consideram teoricamente incontestável), parece oportuno e necessário uma imediata e séria rediscussão sobre o verdadeiro significado conceitual e prático dessas duas pedras angulares da arquitetura liberal-conservadora, associadas de forma quase invariavelmente circular: assim, a governabilidade aparece como indispensável ao sucesso das "reformas estruturais, e estas, por sua vez, seriam o único caminho para evitar a ingovernabilidade".

Com relação às reformas em discussão, também no Brasil, desde 1990, pode-se defendê-las ou atacá-las, mas somente um completo desavisado ainda desconhece o seu significado essencial. As market friendly reforms apontam numa direção muito clara, como pode-se ler, por exemplo, num documento do BIRD, excelente porque sintético: "The privatization and liquidation of public sector activities that compete unfairly with the private sector, the elimination of retrictions on competition, the elimination of controling and licensing functions, and the dismanteling of public agencies that perform those functions" (W.P. 495, 1990).

Com respeito à palavra "governabilidade", entretanto, em lugar daquela nitidez burocrática, reina a maior confusão ou, por outro, uma imprecisão com base objetiva. Como já dissemos, ora ela aparece como dependente das "reformas estruturais", ora, pelo contrário, ela é a condição essencial para o seu sucesso. Essa ambigüidade introduz o verdadeiro elemento de confusão estratégica que vem desorientando completamente nossa oposição política. No caso, uma confusão que começa no meio universitário e adjacências: há mais de trinta anos a palavra governabilidade freqüenta o jargão dos cientistas sociais sem que eles jamais tenham se colocado de acordo sobre seu conteúdo teórico ou prático. Apesar disso, o melhor caminho para compreender o sentido da "governabilidade", na atual conjuntura política brasileira, ainda passa pelo entendimento desse dissenso conceitual que não por acaso perdura até hoje.

3. O tema da "governabilidade" aparece, nos anos 60, como conceito chave na inflexão conservadora das teorias da modernização ou do desenvolvimento político. Ele sintetiza, de certa forma, o momento em que perde terreno o otimismo desenvolvimentista dos anos 50, que sempre acreditou na associação necessária e irreversível entre o desenvolvimento econômico e a construção democrática da periferia capitalista. Ainda uma vez, foi Samuel Huntington quem, a partir de 1965, capitaneou esta reviravolta, ao deslocar o eixo temático do debate acadêmico e político para o que diagnosticou, um pouco mais tarde, como unia profunda "crise democrática" dos países industrializados, e para a natureza instável e reversível dos desenvolvimentos democráticos nas periferias capitalistas. Como consequência teórica, a idéia de desenvolvimento político deixa de ter um signo necessariamente positivo e o foco central das preocupações práticas passou do problema da "construção democrática" para o da "estabilidade política" ou, mais precisamente, da "preservação da ordem" ou da "governabilidade". Esta virada teórica, como é sabido, teve versões de desdobramentos diferentes nos países centrais e periféricos. Nos primeiros, pode-se dizer que foi o seu diagnóstico da crise democrática, atribuída a uma presumível "sobrecarga de demandas", que racionalizou a virada conservadora dos anos 80, responsável, por sua vez, pela sistemática "desmobilização" legal e organizacional das demandas "excessivas", que ameaçavam, segundo o mesmo autor, a governabilidade dos países industrializados. Nos países periféricos, por outro lado, a preocupação de Huntington com a sua "debilidade institucional" e conseqüente "ingovernabilidade" foram, no mínimo, contemporâneas da instalação dos regimes autoritários que se generalizaram nos continentes africano e latino-americano nos anos 60 e 70 como forma de preservação da "ordem". Na sua primeira hora, portanto, o conceito de "governabilidade" teve como denominador comum, em suas diferentes utilizações práticas, o que Richard Higgott resumiu como "a capacidade governamental de atender certas demandas, ou então de suprimi-las de vez".

4. A definição teórica e prática de governabilidade foi sendo redefinida, entretanto, ao longo dessas três décadas. Sua principal alteração de rota foi obra da new political economie, que nasce do longínquo casamento entre o neoliberalismo econômico de Hayek e seus seguidores e a corrente de pensamento político que estréia com a teoria dos jogos, passa pela teoria da ação racional e culmina na escola da "escolha pública", em que convivem, há alguns anos, economistas e cientistas políticos. Se as idéias de Huntington foram sócias da reação antidemocrática do pensamento neoconservador, pode-se dizer, sem medo de errar, que foi a "nova economia política" que ofereceu o alicerce teórico à grande revolução neoliberal deste fim de século. Sua crítica aos conceitos em que se sustentou a teoria política clássica teve um efeito devastador sobre as convicções democráticas apoiadas nas idéias de "virtude" e de "interesse público". Em apertada síntese, o economic approach to politics, ao aprofundar e sistematizar a metáfora de Schumpeter sobre a política enquanto mercado e o "cálculo do interesse individual" como fundamento último do comportamento dos eleitores, das burocracias e da "classe política", acaba por reduzir o Estado, os governos e os sistemas políticos a uma soma de indivíduos que, basicamente, se orientam pela busca de vantagens individuais através do acesso seletivo e do manejo arbitrário dos recursos e das políticas públicas. Com a grande diferença de que, ao contrário dos mercados econômicos, nesses mercados políticos a "mão invisível" atuaria de forma inversa ou perversa, permitindo que seus produtos (as decisões e políticas públicas) fossem invariavelmente irracionais do ponto de vista econômico. Como derivação analítica implícita, ficava "demonstrado" que o funcionamento das "democracias de massa" do pós-Segunda Guerra tinha sido o grande responsável pela ingovernabilidade decorrente do processo irracional, circular e expansivo que conduziu ao crescimento e crise fiscal dos estados, assim como à instabilidade e crise das economias centrais nos anos 70. Em 1980, foi Buchanan quem melhor sintetizou a nova agenda da governabilidade: "Limitar vigorosamente o número de atividades ainda submetidas ao poder regulador dos estados". O "Estado mínimo" de Nozik seria, nesse sentido, apenas a versão limite desta mesma estratégia.

5. Um pouco mais à frente, na segunda metade dos anos 80, o mesmo Anthony Downs, que havia inaugurado em 1957 a nova escola, com sua Economic Theory of Democracy propôs uma autocrítica corretiva de sua visão inicial sobre a racionalidade da ação política, sintetizando as bases do que alguns chamam de neo-institucionalismo: "na realidade, os valores sociais classificados pelos economistas como preferências ou gostos "dados" são extremamente importantes em cada sociedade. Sua natureza e transformações afetam enormemente os comportamentos e instituições políticas e econômicas" (1991). Do ponto de vista normativo, contudo, o neo-institucionalismo apenas "enriqueceu" o que seria a estratégia neoliberal de Buchanan, acrescentando-lhe a seguinte idéia-síntese, aliás do próprio Downs, a saber, que "o bem-estar da sociedade e dos indivíduos envolvidos poderia ser enormemente melhorado se eles pudessem ser induzidos a comportar-se de acordo com valores pessoais e sociais diferentes dos que possuem atualmente".

6. É exatamente essa versão eclética da governabilidade que reaparecerá, nos anos 90, na agenda do Banco Mundial e de outras instituições multilaterais, já agora na forma de uma preocupação mais limitada com o que chamaram de governance ou good governance. Qual a sua novidade conceitual? Pequena. Esta nova definição aumenta apenas o rigor no detalhamento institucional do que seria um governo pequeno, bom e, sobretudo, confiável do ponto de vista da comunidade internacional. O ponto de que parte sua preocupação, nesse sentido, é bem elucidativo: "Para muitos credores do sistema financeiro, a efetividade de suas operações de ajuste e investimento é impedida por fatores que contribuem para uma gestão ineficiente. Esses fatores incluem instituições pouco sólidas, a falta de uma adequada estrutura legal, a fragilidade dos sistemas políticos incertos e variáveis" (World Bank). Como organismos operativos definem a governabilidade de forma instrumental, mas não avançam do ponto de vista estratégico. Deve-se a eles um papel decisivo na construção do senso comum contemporâneo que condiciona a governabilidade dos países, indistintamente, à implementação das "reformas estruturais" e à construção de instituições político-econômicas transparentes e confiáveis do ponto de vista da estabilidade das leis e da manutenção dos equilíbrios macroeconômicos.

7. Que lições nos deixa esse breve sobrevôo? Em primeiro lugar, que o significado analítico e normativo da idéia de governabilidade varia de acordo com o tempo e o espaço. Em segundo lugar, que através do tempo as definições ora apontaram para "condições sistêmicas de exercício eficiente do poder", tão gerais quanto infinitas, ora desceram à discussão da "boa maneira de gerir os recursos públicos", tão detalhada que praticamente torna impossível qualquer aspiração de validez universal. Por que, por exemplo, uma alta taxa de inflação seria melhor indicador de ingovernabilidade do que uma alta taxa de desemprego? Por que o desequilíbrio fiscal mais do que o desequilíbrio comercial? Ou ainda, por que uma baixa taxa de crescimento mais do que uma alta taxa de miséria e concentração de renda?

Em resumo, o conceito de governabilidade na sua acepção mais ampla ou mais especifica, é rigorosamente indeterminado e indeterminável do ponto de vista teórico. Na verdade, não se trata de um conceito teórico. Trata-se de uma categoria estratégica, cujos objetivos imediatos podem variar segundo o tempo e o lugar, mas que será sempre e irremediavelmente situacionista. Assim, como vimos nos anos 60 e 70, a idéia/proposta da governabilidade apontou para a eliminação de demandas e de atores sociais e políticos. Já nos anos 80, apontou para a necessidade de privatizar os estados e desregular as economias. Mesmo variando os seus objetivos, entretanto, não é difícil decifrar qual é o denominador comum às diferentes acepções de governabilidade. Na falta de teoria basta recorrer ao nosso velho e bom Aurélio, no qual o significado do neologismo pode ser deduzido da definição do que seja "governável": "Que pode ser governado, porque é dócil e obediente".

8. Com o mesmo atraso das ideias neoliberais, desembarcou entre nós, no final dos anos 80, o tema da governabilidade. Associada imediatamente à impotência dos governos frente à inflação, adquiriu, logo depois da promulgação da Constituição de 1988, o conteúdo estratégico combinado das teses de Huntington e Buchanan. Em duas palavras: a ingovernabilidade brasileira seria resultado de um excesso de demandas sociais reconhecidas pela nova Constituição e da resistência à implementação das reformas neoliberais capazes de devolver estabilidade e crescimento à economia brasileira. Ao mesmo tempo, e com uma rapidez própria das situações de atraso, foi sendo construído o consenso publicitário de que qualquer coisa, que não fosse isto, geraria uma progressiva ingovernabilidade na sociedade brasileira até o limite da entropia final. Por onde, alguma pessoa com mente um pouco mais linear poderia até concluir, por exemplo, que a privatização da Embratel viesse a ser absolutamente decisiva para combater o narcotráfico no Rio de Janeiro. O mesmo podendo-se dizer das reformas eleitoral, previdenciária, do sistema de concessões publicas etc. E uma vez assimilada esta agenda do bom senso, não é de se estranhar que as forças liberal-conservadoras deste governo proponham uma espécie de trégua em que todos abram mãos de seus interesses corporativos para permitir a aprovação da agenda consensual que não é mais do que o conjunto dos objetivos dos vitoriosos de hoje que vão sendo impostos, em nome da governabilidade, à uma oposição completamente desarvorada.

Como explicar a repetição abúlica, por parte de setores da oposição, dos argumentos liberal-conservadores pró-governabilidade? Por que a oposição vem cedendo tão facilmente à vertigem do consenso? Por duas razões, em nosso entender:

- porque não sabem com precisão que fatores são os verdadeiros responsáveis pela ingovernabilidade econômica brasileira;

- e porque, ao não dispor de um projeto alternativo de estabilização e redesenho estrutural da economia brasileira, acabam indefesos diante da tentadora idéia de que dadas as condições internacionais, somente "existe um caminho" e que esse passa pelo sucesso das políticas do governo de turno.

9. A novidade que este final de século traz e que parece não haver sido suficientemente assimilada pelo debate acadêmico ou político, é que em economias globalizadas ou em processo de abertura e desregulação, o desideratum da governabilidade coloca uma dupla armadilha: para os próprios governos nacionais e, mais intensamente, para suas oposições políticas. E isso porque:

- em primeiro lugar, com um passado de alta ou baixa inflação, em todas as sociedades globalizadas, "ordem" transformou-se em sinônimo de "equilíbrio macroeconômico", critério único de distinção entre bons e maus governos;

- e por isso, em segundo lugar, a condição essencial da governabilidade passou a ser, na linguagem do Banco Mundial, um "enabling economic environment" (E. Boeninger. W.B. 1992);

- em terceiro lugar, para alcançar esse meio ambiente econômico favorável, essa mesma burocracia multilateral recomenda "que os governos reduzam as incertezas derivadas das súbitas mudanças da direção";

- mas o problema, em quarto lugar, é que nessas novas condições globalizadas, a principal fonte de instabilidade e ingovernabilidade está concentrada nas decisões dos agentes econômicos responsáveis pela formação dos preços, pelas decisões de investimento e pelos macromovimentos especulativos com o câmbio e os juros. Incluindo-se, também e evidentemente, as imprevisíveis decisões macroeconômicas das três grandes potências mundiais;

- e, em último lugar, os comportamentos que devem ser "docilizados" em nome da governabilidade tem origem, predominantemente, fora das fronteiras e da alçada dos governos nacionais. Para estes atores estão voltadas basicamente todas as reformas estruturais (ou constitucionais) em discussão entre nós desde os tempos do governo Collor. E isso porque, nesse fim de século, só caberia aos governos nacionais a possibilidade de criar condições atrativas para os grandes capitais, "saneando" seus ambientes internos, não tendo assim verdadeiro poder sobre as novas raízes da ingovernabilidade.

O problema torna-se mais grave, entretanto, quando se leva em conta o que afirma, em artigo recente, o economista argentino Roberto Frenkel: longos períodos de alta inflação induzem e cristalizam um comportamento econômico de "preferência pela flexibilidade" por parte dos agentes privados, muito difícil de ser alterado. E como Frenkel também observa, em várias experiências mais avançadas de liberalização, as reformas estruturais ou constitucionais têm se mostrado insuficientes para alterar essa opção dos agentes econômicos. Estes demandam algo mais: a garantia prévia e absoluta da inalterabilidade das regras contratuais relativas ao capital e ao trabalho. Além disto, exigem a certeza de que não haverá recaída no "populismo macroeconômico".

Para garantir estas condições de governabilidade só há, no limite, uma fórmula política: um governo pró-liberalização, com maioria parlamentar disciplinada e o desaparecimento de uma oposição que possa empreender "ações disruptivas", na linguagem, ainda uma vez de Boeninger. Condições que, além disso, devem prolongar-se no tempo, com a diminuição da freqüência de eleições, e, se possível, com a garantia de reeleição do mesmos governantes.

10. Qual a contribuição que a oposição e a esquerda, em particular, podem dar à construção desse enabling environment? O ideal seria que não atrapalhassem a aprovação das "reformas estruturais", mas sobretudo que não conseguissem bloquear a desindexação dos salários, a flexibilização das condições de contrato do trabalho e a limitação da proteção social pública, vista como prejudicial à "competitividade" brasileira nos mercados internacionais. E, num segundo e prolongado momento, dedicar-se a construir sua credibilidade junto aos investidores. O que alcançaria abdicando de suas últimas veleidades keynesianas e desistindo de competir ou divergir com relação às políticas econômicas requeridas pelos "grandes decisores globais", além - óbvio - de comprometer-se a não alterar nenhuma das regras previamente estabelecidas.

Nesse sentido, é do maior interesse observar o que vem ocorrendo com as oposições ali onde contribuíram decisivamente para a construção desse tipo de governabilidade*. O que se observa é um prolongadíssimo congelamento do "situacionismo". Resultado de quê? De uma fragorosa derrota no plano do pensamento que empurrou a esquerda ou as oposições em geral na direção desse consenso em torno de ideán4o neoliberal. Tão amplo e profundo que tomou conta da social-democracia e hoje convence a todos de que não haverá vitória eleitoral sem credibilidade, e não haverá credibilidade sem adesão ao mesmo consenso. O que, na prática, dispensa o próprio exercício da alternância no governo, como os eleitores já compreenderam e vêm agindo em conseqüência no mundo inteiro, ao manter no poder os conservadores ou os social-democratas, dependendo de quem tenha se apropriado, inicialmente do mesmo projeto e da palavra de ordem da governabilidade. Aos descontentes só tem restado o refúgio no nacionalismo irresponsável, ou no comportamento que os europeus vêm chamando, sobretudo ao referir-se à inapetência política de sua juventude, de fascismo soft.

Assim sendo, tudo indica que o sucesso alcançado pelos novos liberais desse fim de século tem muito a ver com os grandes consensos construídos com base na proposta de criação conjunta de condições de governabilidade. Manobra de resto facilitada pela capitulação das oposições, prisioneiras de um falso entendimento dos constraints of reality, impostos por um processo de globalização que a todos condenaria à camisa-de-força da convergência a qualquer preço. Já sabemos qual é exatamente o preço que a esquerda está pagando por esse novo realismo: transformar-se numa alternativa viável, porém inútil. Seria o caso, quem sabe, de se falar numa espécie de tirania soft, sustentada por silêncios e consensos acerca do afastamento dos governos da gestão da economia e de sua redução à administração disciplinadora de pessoas e forças políticas e sociais "docilizadas", apontando para o que poderia ser a realização antecipada e plena do ideal da governabilidade liberal: uma espécie de Mônaco aperfeiçoado, onde a mídia e os institutos de pesquisa de opinião pública em conjunto, evidentemente com um Banco Central independente, se encarregariam de estabilizar expectativas com relação à credibilidade do Cassino, enquanto o Príncipe inauguraria praças e compareceria às reuniões filantrópicas do corpo de bombeiros e a oposição, agora confiável, passaria a ter direito a freqüentar as colunas sociais das revistas de variedades.

Bibliografia:

1. DOWNS, A. "Social Values and Democracy", in Kristen R. Monroe (ed.). The Economic Approach to Politics. New York, Harper Collins Publishers, 1991.

2 BRAUTIGAM, D. Governance and Economy. World Bank, WPS 815, 1991.

3. The World Bank. "Governance and Development". Washington, The World Bank Publications, 1992.

4. BOENINGER, E. Governance and Development: Issues and Constraints. "Procedings of The World Bank Annual Conference on Development Economics". Washington, 1992.

5. FRENKEL, R. e FANELLI, J.M. Estabilidad y Estructura: Interacciones en el Crecimiento Economico. Buenos Aires, Cedes, 1994, mimeo.

José Luís de Fiori é economista e professor da URFJ.

* Como procuramos mostrar no artigo publicado no Caderno "Mais!", da Folha de S.Paulo, de 8 de janeiro: "O espelho espanhol de FHC".