Cultura

A obra de Lasar Segall dialoga com as artes plásticas até hoje

Com qual conceito de patrimônio, preservação e uso, vocês trabalham?
M.A.- Na verdade, trabalha-se hoje com uma noção mais ampla possível de patrimônio, de caráter antropológico. Assim, reconhece-se como patrimônio o resultado de todas as relações do homem, tanto com a natureza, quanto com os próprios homens. Acho importante também, desde já, introduzirmos o conceito de herança cultural que se refere justamente à parcela desse patrimônio apropriado por um determinado segmento cultural e que passa a ter para esse segmento, para a comunidade, para a sociedade um significado. Na transformação do patrimônio em herança reside o papel do Museu.

M.S.- O Museu é responsável por um acervo: as obras de Lasar Segall doadas pela família, complementado por um acervo bibliográfico, que é a biblioteca Jenny Klabin Segall. O acervo de obras de Lasar Segall é a principal parte do patrimônio e o Museu tem a responsabilidade de conservar, cuidar, divulgar e realizar pesquisas. A nossa maior preocupação é como aliar conservação e divulgação. Já resolvemos isso razoavelmente bem. A segunda parte da estratégia é como utilizar isso. Uma vez conservado minimamente, a grande preocupação é como usar esse acervo. Em outras palavras, no caso das obras artísticas de Lasar Segall, como divulgá-las. Como usar educacionalmente o patrimônio museológico. Nossa preocupação é que a função do acervo e da instituição como um todo tem que ser basicamente educacional. É preciso aprimorar, pesquisar, melhorar essa função, pois assim aprimora-se o diálogo entre o objeto que você expõe e o freqüentador. Esse é um conceito amplo e complicado, implica inovações museográficas, mas começa por uma inovação museológica, que é a formulação da política da instituição. A política de nosso Museu é clara e transparente e todos podem conhecê-la. O que deveria acontecer com todas as instituições.

M.A.- Um dos aspectos é o da metodologia de trabalho. Quando falamos que o patrimônio é esse conjunto mais amplo e a herança é a parcela desse patrimônio que é assumida e identificada enquanto valor para um determinado grupo social, pressupomos regras. Primeiro: de reconhecer que os objetos em si não são portadores de valores intrínsecos, mas de valores atribuídos, resultado de processos sociais que lhes atribuem, em diferentes épocas, diferentes valores. Assim, temos que ter bem claro com quais valores estamos trabalhando, em relação aos objetos que formam o acervo, porque é isso que vai funcionar como ponto de partida. Outra questão fundamental é que o Museu é um canal de comunicação. O Museu Lasar Segall, por exemplo, desde que foi criado, não tinha entre seus objetivos funcionar como uma instituição consagradora de valores. Segall nunca foi tratado como um grande mestre, ao qual se devesse reconhecimento ou devoção. Ao contrário, o entendimento do Museu é que a criação artística é resultado de um trabalho diário, de um processo educativo do próprio artista, que tem que ser compreendido, entendido numa perspectiva histórica. Isso dá a configuração central, em torno da qual as ações do Museu são desenvolvidas.

M.S.- Para completar, gostamos de considerar o Museu um espaço alternativo de resistência cultural. Por isso, o Museu tomou certas posturas desde o começo. A partir da consciência de que a tendência à massificação cultural é muito grande, resistimos a isto. Essa é a primeira coisa. A segunda é a consciência clara de que há uma tendência mais resistente e cada vez mais forte de mercantilização da cultura como um todo. E terceiro, que não é só do plano racional que se constitui esse campo de resistência, nesse espaço alternativo. Que o desafio fundamental é saber aliar conhecimento e sensibilização, o que é um grande "pepino". Cabe à instituição Museu não só conscientizar no sentido racional, mas também desenvolver a sensibilidade. Arte é emoção, arte é sensibilidade, e esses são campos do ser humano: o da razão e o da emoção. Como juntar essas duas coisas? Cidadania não tem sentido sem sensibilização. A conscientização que o indivíduo precisa ter para chegar à cidadania passa também pela sensibilização.

O ilustrador da T&D, nº23, Douglas Canjani, diz que faz parte da cidadania a educação do olhar. Concordando com esta preocupação, gostaria que vocês falassem um pouco sobre os "livros" com os quais vocês estão trabalhando.
M.A.- Os museus, a depender e a partir dos seus acervos, têm que tentar programáticas diferentes. Na nossa área, a grande questão a enfrentar é justamente a do aprender a ver, da educação visual, da educação artística. Isso é um aprendizado, um modo de conhecimento. A grande tarefa do Museu nessa área é trabalhar no sentido de desenvolver uma educação do olhar. Uma experiência mais específica, que deu origem a esses "livros" a que você se refere, foi uma exposição que fizemos há cerca de quatro anos: "Exercícios de Leitura". A partir de todas essas constatações, bolamos um processo baseado em uma conjunção de metodologias. Selecionamos três obras do nosso acervo, que foram expostas cada uma numa sala, sem etiqueta de identificação. Na frente de cada obra havia cinco bancadas e em cada uma, um "livro". Propúnhamos ao visitante um "jogo" e em cada um dos "livros" havia uma etapa: construir, analisar, identificar, sentir e conhecer. Tratavam-se de perguntas que induziam as respostas em cada uma dessas perspectivas e isso, na verdade, formava uma seqüência que tinha como objetivo uma apreciação plena da obra e que aliava a questão da sensibilização ao conhecer. Sem isto, qual o sentido de desenvolver conceitos como expressionismo, arte moderna ou cubismo, se não se tem um olhar capaz de detectar as questões que se está trabalhando?

Como é trabalhada a biblioteca?
M.S.- Na verdade, temos quatro acervos: a obra de Segall, a biblioteca e dois arquivos fundamentais. Um, o mais importante, é o arquivo do Lasar Segall: toda a documentação impressa ou manuscrita, direta ou indireta sobre o artista. Outro é o arquivo mais recente e que trata dos documentos da instituição. Sua memória também faz parte do seu patrimônio. São arquivos à disposição dos estudiosos. A biblioteca existe no Museu por razões muito circunstanciais... Esse Museu em 67. Jenny Segall, viúva de Lasar, pensava esse Museu há muito tempo. Ela o idealizou. Quando morreu, em 67, o acervo do pintor Lasar Segall estava aí. E também uma biblioteca, um acervo de muitos livros do casal Segall. Jenny foi tradutora dos clássicos franceses e alemães do teatro, trabalho que ela interrompeu em 57, com a morte do meu pai. Então, a partir desse núcleo de livros, da aquisição da coleção Lopes Gonçalves e da doação da coleção de Anatol Rosenfeld, começamos a construir esta biblioteca, que se tornou talvez a mais importante do país, obrigatória para jornalistas especializados e para quem estuda teatro, fotografia, cinema etc. Uma coisa importante é como se favorece e facilita para o leitor o acesso àquilo que procura. E, além disso, propiciar que ele desperte para outros campos de interesse. Esse acervo está aí para ser usado. O acesso é livre às prateleiras. A biblioteca é viva, pois produz publicações, visando responder às necessidades concretas dos seus leitores.

Como e em que momento se coloca Lasar Segall no processo da produção artística internacional e nacional?
M.S.- No plano internacional é muito simples: Segall participou da formação do movimento expressionista alemão, que tem um papel histórico muito importante. Quando veio para o Brasil em 23, essa carreira se interrompeu, mas a obra do artista não. Indiretamente, talvez, tenha sido um momento de glória o fato de ter sido incluído na Exposição de Arte Degenerada que Hitler promoveu em Munique, em 1937. Em nível nacional, Segall está razoavelmente bem estudado, mas também não é uma trajetória linear. Segall expôs pela primeira vez no Brasil em 1913, e Mário de Andrade já tinha referências sobre sua obra, antes da sua chegada definitiva, em 1923. A sua mostra de 1913 é, portanto, anterior à famosa exposição de 1917 de Anita Malfatti e à Semana de Arte Moderna de 22. Aqui, ele se insere no movimento modernista. Portinari surge no panorama- artístico brasileiro, e o Estado Novo, por intermédio do Carlos Drummond de Andrade (chefe de gabinete de Gustavo Capanema), passa a cooptar artistas, como Villa Lobos, Niemeyer como arquiteto oficial, e Portinari como o pintor oficial brasileiro. O modernismo, por sua vez, tinha um componente nacionalista complicado, levando algumas de suas vertentes a esbarrar na xenofobia. E como havia o Portinari, foi estimulada uma certa rivalidade entre ele e o Segall. Quando ocorreram as bienais (a partir de 1951), começou a complicar mais ainda, porque de repente se inicia de certa maneira a ditadura do abstracionismo.

M.A. - A história da arte, assim como toda história, política ou econômica, é uma construção obviamente temporal, sujeita a todas as influências políticas, ideológicas e muitas vezes até mercadológicas. A partir disto, o que nos interessa em seguida, é saber como Segall está inserido na história da arte que está se fazendo agora. Essa questão é fundamental porque nela temos condições de influir. A obra de Segall é uma produção que tem qualidade, pois suporta o embate, uma relação com o olhar crítico contemporâneo.

O Maurício falou em ditadura do abstracionismo. Como se estabeleceu isto no Brasil?
M.A.- Esse foi um grande embate, fundamentalmente nos anos 50, e que foi superado já a partir da década de 60, no sentido de se entender que não existe prioridade de uma forma de expressão sobre a outra. O mundo da produção artística, como todo universo cultural, está sempre sujeito a essas discussões. Acho que isso tem que ser sempre reconhecido - principalmente do ponto de vista das instituições -, como um embate específico daquela época e tem que ser historicizado, assumido enquanto discussão e passado para o público, fornecendo-lhe informações que permitam compreender a polêmica. Este é o papel do Museu. O grande problema é que muitas vezes essas discussões - que para o universo das artes plásticas são fundamentais - são passadas para o público de maneira tão superficial, ou tão dogmática, que faz com que muitas vezes pareçam absurdas. Isso não é verdade, existem fundamentos, questões conceituais, teóricas, estéticas que estão por trás das discussões.

M.S.- Olha, na história da arte isso se repete, e está tudo muito ligado ao conceito de contemporaneidade. Um dos ditadores da arte abstrata foi o Mário Pedrosa, que era um crítico de artes plásticas, um cara de esquerda, um cara bacana e importante. A partir de 50, ele influenciou os jovens a fazerem arte abstrata. E não importava se tinha Segall, Portinari ou Guignard funcionando. Não que ele desqualificasse Segall ou Portinari. Essa ditadura de uma corrente sobre a outra ofusca a história, deseduca.

Em que medida a postura de Mário Pedrosa com relação ao abstrato esteve mediada pela sua polarização com o chamado "stalinismo"?
M.A.- No universo artístico brasileiro, Mário Pedrosa foi dos críticos que teve a atuação mais construtiva. Temos que entender que sua atuação, na defesa de uma determinada visão artística, estava inserida numa visão política. Mas, ele fez isto de uma maneira muito responsável, a partir de um ideário absolutamente sistematizado, formalizado, com reflexão. Sua produção teórica não era uma coisa dogmática, mas correspondia a toda uma visão de mundo. E, sem dúvida, foi um grande pensador das artes plásticas.

Qual é a relação do Museu com o Estado?
M.S.- A globalização da economia, o neoliberalismo, a diminuição do papel do Estado, enfim, são discussões que todos estamos vivendo. Mas, a privatização e a relação com o Estado já está complicada na área da cultura. Por que aplicar as leis do mercado a tudo? Como vai ficar, se acabarem com o papel do Estado na área da cultura? E o patrimônio? Como de fato se preserva o patrimônio no país? Quer dizer, não se pode deixar anarquicamente, à mercê da sociedade civil - que no fundo, hoje, são os empresários, os banqueiros - a formulação da política cultural. Somos um órgão incorporado ao lphan - Instituto do Patrimônio Histórico Nacional. O Museu foi incorporado ao lphan há dez anos, com sua autonomia garantida, devido à sua tradição. Somos um órgão público, mas como todos os demais órgãos da área cultural temos que captar recursos fora. Para isso, existem as Associações de Amigos. A nossa é muito ativa. Ela é absolutamente fundamental na nossa conceituação e nasceu com a preocupação de não repetir essas associações que vivem de grandes "mordidas" e que, quando a "mordida" não vem, não têm nada. Nós criamos um corpo associativo de longo prazo, o maior possível, e por isso a contribuição é bastante baixa, muito acessível. Já estamos com 650 sócios. Isto não impede que a gente capte recursos para projetos específicos. Qualquer pessoa pode se associar, escolhe o quanto quer pagar e como quer pagar. Para finalizar, eu queria dizer que faz parte do Museu, a sua cultura democrática. Isto se desenvolveu durante anos, a ponto de hoje ele ser dirigido por um coletivo, com assembléias quinzenais, das quais todos participam: do faxineiro ao diretor. A assembléia ainda não tem poder deliberativo. Mas é o colegiado diretivo composto de oito pessoas, quatro chefes de departamento e quatro funcionários, quem decide no Museu. Já não sou eu pessoalmente que decido, apesar de ser a pessoa que, do ponto de vista formal, responde pela instituição.

E as oficinas do museu?
M.S.- Temos oficina de redação, o atelier de gravura (xilogravura e metal), o laboratório fotográfico, as projeções cinematográficas e o coral-escola. Mantemos também, quinzenalmente, às quartas-feiras, a partir das 19 horas, debates culturais. Tudo isso gratuitamente. E, no entanto, não conseguimos que a grande mídia sequer nos inclua em seus roteiros culturais.

Alipio Freire é editor de T&D.