Nacional

A Nação a construir não é aquela sociedade dependente, dividida entre o moderno e o arcaico, entre incluídos e excluídos, mas uma Nação soberana, socialmente homogênea, na qual todos terão cidadania

A - Colocação do problema tático

1 - Tática e estratégia

Um plano tático consiste no conjunto das ações destinadas a executar uma estratégia. Esta, por sua vez, consiste em um encadeamento de objetivos intermediários, ordenados à consecução de um objetivo final.

O primeiro objetivo estratégico do partido, nesta etapa da sua trajetória, é a construção da Nação brasileira. Trata-se de dar prosseguimento - em bases muito distintas - a um processo histórico que vem de longe e que se encontra paralisado, por força do efeito combinado de contradições internas jamais resolvidas e das transformações estruturais do capitalismo neste final de século.

Construir a Nação consiste em assegurar soberania ao Estado brasileiro e em promover, simultaneamente, a universalização da cidadania no interior do espaço nacional.

Soberania é a capacidade de tomar decisões com um grau superior de autonomia, tanto em relação aos interesses econômicos particulares quanto em relação aos outros estados e organismos internacionais.

A universalização da cidadania constitui um objetivo político indispensável à democracia e, para consegui-la, é preciso atingir um grau maior de homogeneidade social, o que, no quadro brasileiro, significa a difusão, a todas as camadas sociais, de um padrão de vida comparável ao "padrão fordista", típico do consumo de bens e serviços do operariado dos países desenvolvidos.

Não se deve confundir a construção da Nação com um retorno nostálgico ao modelo do nacional-desenvolvimentismo. A Nação a construir não é aquela sociedade dependente, dividida entre o moderno e o arcaico, entre incluídos e excluídos, mas uma Nação soberana, socialmente homogênea, na qual todos terão cidadania.

2 - O problema tático

O problema que se coloca para concretizar a estratégia da construção da Nação consiste em identificar e definir, em uma conjuntura interna e internacional adversa, os passos requeridos para recuperar e fortalecer o Estado brasileiro, assim como para promover a homogeneização social. Isto não é fácil, porque todo movimento da história presente caminha na direção oposta. A globalização desequilibrou profundamente as relações entre o capital e o trabalho, e entre o capital e o Estado nacional, provocando o debilitamento deste, do - movimento sindical e dos partidos de esquerda e de corte popular, aqui e em todo o mundo.

A formulação tática não pode desconhecer o caráter adverso da conjuntura, mas não pode também deixar-se abater por essa realidade. O desafio consiste precisamente em identificar, nesse quadro adverso, elementos positivos para a programação de ações políticas que permitam avanços na direção do objetivo estratégico. Para tanto, é preciso responder adequadamente a três perguntas:

- como neutralizar os movimentos do adversário?

- quais ações concretas realizar para atingir os objetivos próprios?

- com que forças aliar-se para executar essas ações?

Uma conjuntura adversa significa que o adversário tem força para fixar o campo e a hora do confronto - tem força, portanto, para impor uma agenda política. Para dizer as coisas concretamente: a aliança tucano-pefelista está tendo condições para colocar, na agenda política do país, as reformas neoliberais. Essas reformas interessam às classes dominantes, mas, hoje, nenhuma força política tem condições de fugir à discussão delas, porque interessam também a outros setores sociais, como, por exemplo, a classe média deslumbrada com as futilidades importadas de Miami. Embora esse conjunto seja claramente minoritário, detêm uma quantidade formidável de recursos políticos e, por isso, pode impor sua pauta política ao país. Diante desse fato, as perguntas pertinentes são: Convém negociar com o governo? Ceder alguma coisa em troca de minimizar o retrocesso que as emendas constitucionais representam em relação às conquistas obtidas na Constituinte? Ou a atitude correta consiste em fazer oposição frontal às emendas, a fim de tentar barrá-las ou, pelo menos, sinalizar claramente a nossa inconformidade?

Negociar, ou marcar posição?

Se ficarmos exclusivamente respondendo às iniciativas do esquema tucano-pefelista, obviamente, não avançaremos no nosso plano estratégico, de modo que a discussão tática, além dessas perguntas, inclui outra questão. Quais iniciativas o PT pode tomar, na atual conjuntura, a fim de colocar na agenda política do país, questões que, de fato, interessam à grande massa da população, como, por exemplo, a garantia de emprego, a melhoria dos salários, a moradia, a reforma agrária, a reforma educacional?

Respondidas estas questões, cabe ainda indagar: Com que forças políticas devemos nos aliar, neste momento, a fim de conseguir os votos necessários para bloquear as reformas neoliberais no Congresso?

Esboçar-se-á, em seguida, as respostas que parecem adequadas a essas questões. Antes, porém, convém fazer duas advertências. Primeira: nenhuma das respostas significará um caminho sem aspectos negativos. Todos os caminhos apresentam vantagens e desvantagens; todos têm preços, de modo que a decisão terá de basear-se sempre em um balanço entre o positivo e o negativo. Segunda: a opção por uma alternativa de tática não implica necessariamente a exclusão absoluta e definitiva da outra. A opção tática constitui uma diretriz e não uma camisa-de-força, de modo que pode e deve mudar rapidamente a cada alteração do quadro político.

B - Proposta da tática de "resistência com acumulação de forças"

1 - Apresentação da tática

A tática adequada para o PT, nesta conjuntura, é a que combina dois elementos: resistência à ofensiva neoliberal e acumulação de forças no setor popular. Só assim será possível avançar na consecução dos objetivos estratégicos de construção da Nação e universalização da cidadania.

O elemento resistência, para ter eficácia, precisa articular luta parlamentar com mobilização do povo, a fim de impedir a aprovação das emendas constitucionais do governo ou, pelo menos, de deixar bem claro na consciência de todos o repúdio do PT a elas (na hipótese extrema de se tornar impossível derrotar o "rolo compressor" que o governo montou no Congresso para aprová-las).

O elemento acumulação de forças consiste em dois tipos de ação: de um lado, apoiar decididamente os movimentos reivindicatórios do setor popular; e, de outro, apresentar à opinião pública uma agenda política voltada para os verdadeiros interesses da massa da população, como meio de criar condições para retomar a ofensiva no embate político.

2 - Justificativa da tática proposta

A tática proposta difere da que o partido - acertadamente - adotou na Constituinte e assemelha-se à que seguiu - também acertamente - por ocasião do Colégio Eleitoral. Na Constituinte, adotou-se uma tática em que o elemento "negociação" preponderava sobre o elemento "denúncia" e "obstrução". (Preponderava, não excluía). A repetição dessa tática na batalha das emendas neoliberais não daria o mesmo resultado. Uma força política somente negocia com outra em duas circunstâncias: quando precisa ceder algo para obter o que deseja; ou quando, mesmo tendo condições de obter sozinha tudo o que deseja, precisa da legitimação que só o lado contrário pode fornecer. Por isso, para discutir objetivamente a opção entre "negociar"e "marcar posição", o primeiro a considerar é que o atual "rolo compressor" tucano-pefelista é de natureza distinta do "Centrão". Na época deste, o establishment encontrava-se dividido, confuso e precisava de legitimação. O "rolo compressor" tucano-pefelista é um dispositivo político coerente, com sólidas conexões internas e internacionais, impulsionado pela conjuntura histórica. Não precisa e não vai ceder nada, nem se deter diante do que até ontem constituíam limites intransponíveis, como se viu na greve dos petroleiros e na quebra do monopólio estatal do petróleo. Não há, por conseguinte, condições de explorar eficazmente as vacilações e contradições que caracterizaram a posição do establishment durante o processo constituinte. Isto não significa que "o rolo compressor" seja imbatível, mas significa claramente que se trata de um governo que não fará concessões substantivas de nenhuma espécie. Se aceitarmos entrar em negociações sobre as emendas, ele utilizará seu estupendo dispositivo publicitário para reforçar o consenso sobre a indispensabilidade das reformas. Com efeito, quem não vê que toda a propaganda do situacionismo busca incutir na população a idéia de que as reformas são uma condição para acabar com privilégios corporativistas e para o ingresso de capitais estrangeiros, sem o que não haverá como evitar a regressão econômica? No contexto da barragem propagandística do governo, o aspecto substantivo e forte da mensagem é dado pela palavra "reforma" e o aspecto secundário e menos importante, pelos adjetivos "neoliberal" ou "popular", porque a massa somente poderá distinguir essas duas reformas antagônicas, se houver possibilidade de usar exaustivamente os meios de comunicação para explicar as diferenças entre uma e outra. Ora, como o nosso adversário monopoliza os meios de comunicação, essa possibilidade está descartada. Nessas condições, se o PT aceitar uma tática de negociação, será facílimo, para o governo, convencer a população que importante são as reformas - tanto que o PT concorda com a necessidade delas - e que a adjetivação petista não passa de oposicionismo barato, motivado por interesses corporativistas ou eleitoreiros.A necessidade de apresentar alternativas e de discutir reformas estruturais com o povo será examinada a seguir. Em um contexto desses, quem conseguirá mobilizar a massa para protestar contra as reformas neoliberais? E como superar um placar que já está estratificado no Congresso sem desequilibrar o jogo mediante uma forte pressão popular?

Neste momento, a tática correta consiste, portanto, em fazer todo o esforço possível para obstruir o andamento das emendas enviadas pelo governo, em denunciar vigorosamente a política neoliberal, como meio de despertar a massa do estado letárgico em que se encontra e levá-la a pressionar contra a aprovação dessas emendas.

3 - Condições para o êxito do elemento "resistência"

A tática proposta terá mais probabilidade de êxito se for possível ampliar as forças que se opõem às reformas neoliberais. O esforço para conseguir essa ampliação desdobra-se em dois movimentos distintos.

O primeiro consiste na unificação da tática e da ação dos partidos de esquerda e populares. Para tanto, parece importante criar um foro permanente de consulta, com representantes de todos eles, a fim de melhorar a coordenação das ações no plano parlamentar e no plano da mobilização popular.

O segundo movimento, na busca de fórmulas que ensejem articulações pontuais do campo popular com forças do outro campo, mas que discordam, neste momento, das reformas neoliberais, pois isto permitirá impor derrotas importantes ao governo.

4 - Condições para o êxito da "acumulação de forças"

4. 1. Elaborar um programa de desenvolvimento
Para acumular forças, o primeiro passo consiste em formular alternativas às propostas neoliberais, ou seja, consiste em propor à sociedade um programa de desenvolvimento para o Brasil, um programa geral de reestruturação do estado e da economia. Para não correr o risco de confusão com a propaganda "reformista" do governo, o momento e a forma de anúncio desse programa precisam ser escolhidos com muito cuidado, a fim de possibilitar a distinção entre reformas neoliberais e reformas populares. Na verdade, o programa de desenvolvimento terá de contrapor-se frontalmente ao programa neoliberal.

Este programa serviria para alcançar dois objetivos: primeiro, para dar origem a uma agenda política do partido, ou seja, a iniciativas do PT. Essa agenda deveria limitar-se a um, ou quem sabe, dois pontos prioritários, a fim de concentrar os esforços e operar como uma lupa que magnifique os problemas reais com os quais a massa deveria preocupar-se; em segundo lugar, o programa serviria como critério para fixar o correto posicionamento do partido diante das questões que o adversário colocar na pauta política do país. Todo o partido deveria ser mobilizado para cumprir o mais rapidamente possível esta tarefa prioritária.

O pressuposto político básico desse programa de desenvolvimento é a alteração substancial da atual correlação de forças, até porque não tem o menor sentido preparar programas ou projetos de reforma, já que, se essa correlação não for alterada, nenhuma proposta poderá ir muito além da proposição de aperfeiçoamentos técnicos, que só servem para reforçar a propaganda situacionista a respeito da necessidade das reformas neoliberais. O PT não deve cair na armadilha que seus adversários armam ao cobrar-lhe alternativas "realistas" para as desastrosas políticas que estão realizando, sem discutir as premissas dessas políticas, ou seja, os objetivos delas e os parâmetros que as condicionam. Só depois de desvendar para a opinião pública essas premissas e os interesses e privilégios que elas escondem, assim como de esclarecer as premissas da proposta petista, pode-se passar à exposição das medidas técnicas que o PT adotaria para resolver o problema de acordo com os objetivos que considera legítimos.

4.2. Montar um dispositivo de divulgação

A menos que o partido decida institucionalizar-se como o perdedor oficial de eleições destinadas a legitimar o poder do establishment, não pode mais disputar responsavelmente o governo da República, sem dispor de um instrumento minimamente eficaz de divulgação. Todos os militantes e todas as instâncias partidárias deveriam ser mobilizados para deflagrar uma vigorosa ofensiva, visando democratizar os meios de comunicação de massas. Simultaneamente, o partido deveria fazer todo o esforço possível para que surjam, no país, órgãos de divulgação que permitam: desfazer os ataques e as imagens negativas criadas pela mídia, para desqualificar o partido, os sindicatos e os movimentos populares na opinião pública; esclarecer as questões em debate na arena política; colocar na pauta política as questões que realmente interessam à população. Obviamente, essa tarefa só poderá ser cumprida, se o partido já tiver atingido um grau de maturidade que impeça a transformação desse instrumento em uma arena para a luta interna de poder e que permita obter a colaboração de outras forças do campo popular.

4.3. Promover a aliança trabalhadores/massa excluído

O terceiro componente da tática de acumular forças consiste no grande desafio colocado para o PT nesta difícil conjuntura histórica: tecer uma aliança orgânica entre os trabalhadores já integrados nas estruturas do capitalismo brasileiro (trabalhadores com carteira de trabalho e proteção sindical) e a imensa massa dos excluídos (trabalhadores informais, população estruturalmente desempregada e segmentos marginalizados).

Não parece haver outro meio para aumentar a força da classe trabalhadora e torná-la capaz de superar as forças do establishment. Se o PT surgiu, de fato, para ajudar a organizar a luta da classe trabalhadora pelo poder do Estado, essa aliança precisa converter-se em uma preocupação de dirigentes e militantes. Priorizar a aliança com os excluídos não significa rejeitar alianças com outras classes sociais. No contexto do desenvolvimento brasileiro, uma política baseada fundamentalmente nos interesses e nos valores dos trabalhadores e dos excluídos atende também aos valores e interesses de segmentos importantes de outras classes sociais, em especial aos interesses dos pequenos empresários urbanos e rurais e dos profissionais liberais não organicamente ligados aos interesses do grande capital. Com efeito, uma política voltada para atender às necessidades de integração das massas excluídas e de melhoria do padrão de vida dos trabalhadores, pode significar progresso econômico e emprego seguro para as camadas médias e para o pequeno empresariado, justificando-se assim um discurso capaz de abrangê-los. Mas o esforço para fazer esse discurso abrangente, capaz de ser ouvido por segmentos de outras classes sociais, não pode prejudicar a comunicação do partido com seus interlocutores prioritários - os operários e os excluídos.

Promover a aliança do trabalhador integrado com o excluído constitui um desafio difícil, porque, embora haja, entre esses dois segmentos sociais, coincidências de interesses em muitos pontos, há também discordâncias importantes, em vários outros. Mas este ainda não é o principal obstáculo. O mais difícil é encontrar uma brecha para se comunicar com essa enorme massa de gente, que se acha em um estado de verdadeira prostração, cujas raízes culturais foram esmagadas e cujas formas de vida deixam pouquíssimo espaço para qualquer preocupação que não seja a sobrevivência diária.

A inclusão dessa prioridade na tática da "resistência com acumulação de forças" requer um esforço inédito de inserção em um conjunto social que representa mais de 40 milhões de brasileiros, que vaga hoje em dia, disperso e desestruturado, pelas beiradas e porões da comunidade nacional e sobre cujas aspirações e formas de vida dispomos de pouquíssima pesquisa e reflexão.

5 - Manter a fidelidade

Finalmente, para desvendar inteiramente o significado da conjuntura, torna-se imprescindível introduzir um novo elemento na análise. Assim como "nem só de pão vive o homem", nem só de interesses e relações de causalidade previsíveis vive o processo de construção de uma Nação livre e democrática. Em todo momento, o povo - a força que de fato faz a história - está observando os partidos e as lideranças políticas. Busca ver nelas, não apenas a lucidez e a competência, mas também a fidelidade a valores e memórias, a firmeza, o devotamento, a coragem. Nesse plano, tudo depende do momento, da circunstância, do cenário.

Na hora dramática em que as elites aculturadas procedem ao desmonte do Estado nacional e não hesitam em cometer um verdadeiro assassinato de imagem contra a categoria dos petroleiros, o mais importante para o PT é mostrar fidelidade, firmeza e coragem. Não é hora de consultar instituto de pesquisa para saber o que a maioria está pensando, nem de estar com o olho em 96 ou 98 e, menos ainda, de tentar inutilmente salvar alguma coisa do naufrágio neoliberal à custa de falsear sua imagem como força de oposição ao governo e ao establishment. O que de fato importa é prestar atenção no que significa o silêncio da imensa massa da população, que, depois de manifestações tão fortes como nas Diretas e na campanha de Lula em 1989, mostra-se reticente e apática. Que ninguém se engane: ela está observando. E mesmo aquela parcela de deslumbrados, que, hoje, está aprovando o que nós desaprovamos, também nos observa atentamente. Quando o pêndulo da história mudar de sentido, esse povo todo colocará na frente da sua ofensiva, as forças e das lideranças que, na hora da adversidade, mostraram capacidade de indignação e fidelidade a valores.

Plínio de Arruda Sampaio foi deputado federal constituinte 1987-1990.