Sociedade

Nilmário Miranda, deputado do PT, explica como foi constituída a Comissão de Direitos Humanos na Câmara

O que é essa Comissão Permanente, e como se chegou a ela?
A Câmara nunca teve uma Comissão de Direitos Humanos. A ex-deputada Benedita da Silva em duas legislaturas tentou criá-la e não conseguiu. A Câmara tinha uma posição de que Direitos Humanos deveriam ser uma Subcomissão da Comissão de Justiça. Muito bem, na legislatura passada, eu fui presidente durante três anos da Comissão Externa para os Desaparecidos Políticos. E como a Benedita foi para o Senado, pensei em apresentar um projeto criando uma Comissão de Direitos Humanos. Mas com uma mudança em relação ao projeto de Benedita.

O dela era deliberativo. Deliberava sobre pareceres, sobre projetos. A proposta que eu fiz não deliberaria, não tiraria poder das comissões existentes. No meu entendimento, os Direitos Humanos têm uma concepção muito ampla, e determinar claramente sobre o que a Comissão deliberaria, acabaria limitando-a ou tiraria poder de outras comissões. Então criei uma Comissão Permanente, que tem todas as prerrogativas de qualquer comissão, menos deliberar sobre projetos.

Como evoluiu a questão dos Direitos Humanos no Brasil?
Hoje, o Brasil é avançado do ponto de vista jurídico. Nosso problema está na prática. Não existe um sistema de proteção. Acho que a visibilidade que a Comissão adquiriu se deve ao fato de que não existia nada em instância federal. Daí despertou a atenção da ONU, da OEA, do Sistema Interamericano e Internacional de Direitos Humanos e das ONGs mais famosas do mundo, como a Anistia Internacional. Acredito que existe uma ligação muito grande entre a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão Externa para os Mortos e Desaparecidos Políticos. Isto porque antes de toda mobilização dos anos 60 (pós-golpe) e 70 em torno das perseguições políticas, torturas e assassinatos, não se colocou no país a questão dos Direitos Humanos. Começou com a luta dos familiares de presos assassinados e desaparecidos com o apoio da Igreja e entidades da sociedade civil, como ABI e OAB. O primeiro grande passo de unificação foi a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). A Anistia é votada e aprovada em agosto de 79. Não foi a que exigia o movimento dos CBAS. O reconhecimento dos mortos e desaparecidos, a reparação dessas perdas, a responsabilização judicial dos autores dos crimes, conforme propunha o movimento, não aconteceu. Mais ainda, criou-se a aberração jurídica da anistia recíproca, de acordo com a qual anistiava-se, simultaneamente, vítimas e torturadores. Mas, a Nação em seu conjunto entendeu apenas que havia conquistado a Anistia: presos soltos, exilados e banidos de volta ao país. Segue-se assim um período de refluxo. Os familiares, no entanto, se mantêm lutando, ainda que isolados, desamparados até mesmo pela esquerda. O fato é que na primeira metade dos anos 80, os movimentos pela Anistia vão se transformando em movimentos pelos Direitos Humanos. Podemos até mesmo dizer que o Movimento Nacional de Direitos Humanos é uma extraordinária conseqüência da luta pela Anistia. E, do mesmo modo, afirmar que a Comissão de Direitos Humanos surge na Câmara em relação muito estreita com a antiga Comissão Externa de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ou seja, uma comissão seria quase uma decorrência direta da outra. Havia tantas violações de Direitos Humanos no país, que a questão dos mortos e desaparecidos ficou um pouco esquecida, explodindo novamente durante a gestão de Luiza Erundina, na Prefeitura de São Paulo, com a Vala de Perus. O movimento teve continuidade com a Comissão Externa de Mortos e Desaparecidos da Câmara Federal, criada em 91.

No campo não há uma situação específica na área dos Diretos Humanos?
Com certeza. Imagine que apenas no sul do estado do Pará houve 190 assassinatos em 15 anos. Mas o principal violador dos Direitos Humanos no país é o Estado. Essa é uma herança direta da ditadura, uma das prioridades a serem enfrentadas no país. O problema da tortura permanece e é gravíssimo. Ela vem da concepção de operação de combate ao crime e de uma tradição "inquisitorial", em que a polícia não é formada para provar que a pessoa cometeu um delito. Parte da idéia de obter uma confissão. Assim, a tortura é incorporada inclusive por grandes setores da população e é alimentada pela tolerância do sistema. Na Constituição, o artigo 5º considera a tortura um crime imprescritível e inafiançável, mas como não há lei específica, quando há tortura só se pode condenar o policial por maus tratos, lesões corporais ou abuso de autoridade.

Como é que vocês estão trabalhando a questão da segurança junto com os Direitos Humanos?
As grandes metas são a estruturação das polícias - separando os Institutos Médicos Legais e Criminalísticos do aparelho policial -, a criação da polícia interna com uma Corregedoria mais autônoma e a revisão do papel do Ministério Público nos inquéritos. A questão passa também por melhorias salariais, pela formação dos policiais e pela concepção da segurança vinculada com a sociedade. Algumas experiências nessa área já estão sendo implantadas, com a criação de uma polícia interativa. É o caso de várias localidades do Espírito Santo, onde a comunidade discute como deve ser o policiamento e que policiamento quer. Agora, há uma violência que o Estado não é diretamente responsável. É a violência doméstica, que em geral é contra as mulheres, crianças e até idosos. A violência no trânsito também é uma luta dos Direitos Humanos.

Você falou dos idosos. Como fica a questão dos Direitos Humanos para esse segmento da população?
Cuba possui um bom exemplo nesse sentido. Mesmo com toda a crise, é um país que sempre cuidou muito bem das suas crianças e de seus idosos. As pessoas não são vistas apenas do ponto de vista da preparação para o mercado de trabalho, ou da sua saída do mercado de trabalho. O maior sacrifício é da população adulta, mas preservou-se mulheres grávidas, portadores de deficiência (inclusive mentais), idosos e crianças. Porque são as populações mais vulneráveis à violência. Ao contrário do nosso país, onde as primeiras vítimas, em qualquer crise econômica, é o portador de deficiência física, o portador de deficiência mental, o idoso. Há no Congresso a discussão da redução para 16 anos da imputabilidade do menor. Isso é uma loucura. De um milhão de crimes ocorridos anualmente no país, cerca de 100 mil são cometidos por menores. Quase todos são crimes contra o patrimônio, e não contra a vida. Há uma minoria, muito pequena, de crimes contra a vida. Então, querer jogar em cadeias crianças, jovens de 16 anos, é uma perversidade sem tamanho. Há também uma discussão no Congresso, para rebaixar a idade permitida para o trabalho infantil, que hoje é de 14 anos. A idéia é legalizar a situação de 7 milhões de crianças que estão trabalhando, muitas em situação de superexploração. Também há a questão da prostituição de meninas e meninos. Fala-se em números alarmantes: 400 mil meninas prostituídas no país, às vezes com o consentimento das famílias, uma alternativa de sobrevivência, que vem da exclusão, mas que também é doméstica.

Muitas vezes as pessoas temem entrar nesse tema. Como você vê isso?
É uma coisa curiosa, porque estamos montando o Fórum das Comissões de Direitos Humanos das Assembléias e da Câmara dos Deputados, e quando fui fazer o levantamento nos estados cheguei a um resultado surpreendente. Treze estados tinham Comissão de Direitos Humanos e catorze não. Desses treze, dez comissões eram dirigidas por petistas e a maior parte criada por petistas. Nas câmaras municipais, esse quadro se reproduz, sempre com o PT dirigindo a questão dos Direitos Humanos. Também nas ONGS, a grande maioria é dirigida por petistas, ou tem forte presença petista. A Comissão tem uma proposta de criar um plano nacional de Direitos Humanos, a partir das três instâncias do Executivo: municipal, estadual e federal. Essa é uma sugestão da Anistia Internacional.

Como as nossas administrações se comportam em relação a isso?
Elas tem uma preocupação muito grande com a cidadania. Estão fazendo verdadeiras revoluções no modo de administrar, criando assim um novo tipo de Estado, só que em nível municipal e agora estadual. Temos, por exemplo, o orçamento participativo, que já está começando a produzir mudanças na forma de eleger vereadores e criando uma nova cultura; as audiências públicas, que incorporam a cidadania num processo legislativo; os conselhos populares; o modo de conceber o plano diretor; a lei orgânica do município. Mas é preciso também ter coordenadorias ou secretarias específicas de Direitos Humanos. Não é pelo fato de trabalhar com criança direitinho, atender os idosos, as populações carentes que já está se desenvolvendo uma política de Direitos Humanos.

Quando você fala em Direitos Humanos, você globaliza todos esses setores numa articulação maior?

O direito humano tem origem internacional e vem se desenvolvendo desde a Revolução Francesa, mas passou a ter força política a partir da Segunda Guerra Mundial, com a constatação de que o direito interno se prostitui com facilidade. É só verificar a História: fascismo, nazismo, stalinismo, ditaduras. Não existe nenhum país do mundo que respeite os Direitos Humanos tal como ele está formulado pelo direito internacional. Do ponto de vista de sua abrangência, cobrem as violências contra a mulher, o desaparecimento forçado de pessoas, torturas, penas cruéis e degradantes, trabalho infantil, trabalho escravo e discriminação racial. O trabalho escravo, por exemplo, está crescendo com muita velocidade. Passou de 5 mil pessoas para 25 mil no campo, de 91 a 94. No plano internacional, logo teremos convenções mundiais sobre a migração, que vai colocar problemas novos de violações maciças dos Direitos Humanos, que já estão se anunciando na Europa e mesmo no Brasil.

Como este assunto está sendo tratado pelas esquerdas em outros países, especialmente latino-americanos?
Participei do Fórum de São Paulo, fui para Costa Rica, Cuba, México e Uruguai para discutir Direitos Humanos. E houve avanços no sentido de consolidar uma posição, mas a criação de uma alternativa ainda está muito longe. Inclusive porque não temos um modelo de Estado vinculado à nova concepção de Estado nacional, com a globalização, a mundialização e a planetarização, que é um processo concomitante. Agora, eu acho que as grandes bandeiras não são mais os direitos civis e sim os direitos econômicos, sociais e culturais, que estarão vinculados com a migração, a exclusão, o desemprego, o acesso à terra, a distribuição da riqueza, a mortalidade infantil e a preservação do meio ambiente. Isso vai obrigar os países a prestar relatórios e estabelecer metas para tratar não só retoricamente os Direitos Humanos.

Existe alguma iniciativa de organização fora do aparelho do Estado? Qual seria a iniciativa para dar respaldo a vocês?

A Comissão teve uma iniciativa pioneira. Lançou um boletim quinzenal com o nome DH FAX. É a primeira Comissão da Câmara a ter um boletim voltado para a sociedade. Ele está vinculado ao Movimento Nacional dos Direitos Humanos, e é distribuído em várias redes: Inesc, Movimento Nacional de Meninos de Rua, Anistia, OEA, ONU, Assembléia Legislativa, câmaras municipais, prefeituras, agências noticiosas e imprensa. Queremos criar também uma instituição de proteção aos Direitos Humanos dentro da esfera pública, mas não estatal, inclusive para fiscalizar o próprio Estado, com orçamento da União, com poder de punir quem violar os Direitos Humanos, mas fora do controle do Estado. Temos ainda uma pretensão maior, continental. A partir da reunião do Parlatino, começamos a resgatar os Direitos Humanos do Cone Sul. Queremos criar um instrumento internacional, uma espécie de Mercosul dos Direitos Humanos para proteger os imigrantes, os que morrem na fronteira por extermínio, os que são tratados como escravos e, além disso, trocar informações sobre desaparecidos e mortos, estabelecendo uma cooperação mútua.

Há muitos brasileiros desaparecidos na América Latina e vice-versa?
Muitos. Estamos levantando todos esses casos. Já temos uma BBS, uma rede de informação a partir do Rio Grande do Norte, num trabalho conjunto com Tereza Urba, que tem uma rede independente ligada à luta ambiental. O nosso boletim também vai entrar nessa rede e na Alternex. Enfim, acho que isso vai criar um processo intenso de comunicação e de interação entre as várias entidades e pessoas ligadas aos Direitos Humanos. Um outro projeto que estamos entramos é o dos quilombos, do que restou dos quilombos, com o intuito de preservar os sítios que contêm elementos históricos fundamentais dos negros no Brasil. Só em Minas Gerais, os estudos identificam 160 quilombos com registros sobre a história da repressão aos negros.

O país tem agora uma lei reconhecendo a responsabilidade do Estado pelo assassinato dos opositores políticos durante o período da ditadura. Qual sua avaliação dessa lei?
Antes de responder isso, é preciso dizer que a ditadura militar matou e torturou várias pessoas e para a maior parte dos mortos até 68-69 foi atribuído o suicídio. Com o AI-5 e a criação do DOI-Codi, a repressão é assumida diretamente pelas Forças Armadas, e comandada por elas. Depois temos uma fase de mortos e desaparecidos, mas sobretudo de mortos, que provoca o início do desgaste da imagem da ditadura pela ação das famílias - apesar do bloqueio judicial de habeas corpus - e a denúncia internacional do país. A terceira fase é a dos desaparecimentos. Em 74, não há um único morto oficial, só há desaparecidos. Em outubro de 75, temos a morte de Vladimir Herzog e, em janeiro do ano seguinte, a de Manoel Fiel Filho, que se trata também de desaparecimento. Aí começa o desmonte dessa máquina. Em 76, acontece a chacina da Lapa, que foi o último grande crime. Os demais acontecem com o movimento social. A lei sobre os mortos e desaparecidos tem várias limitações, dada a recusa do governo de acatar qualquer tipo de emenda. Em primeiro lugar, reconheceu apenas o desaparecimento de 136 pessoas. Em todos os demais casos, os familiares vão ter que provar que as pessoas desapareceram e foram mortas sob tortura, não nas circunstancias descritas pela repressão na época. Tentamos também outra emenda, abrangendo todos os casos em que houve atuação dos agentes da repressão, sem a limitação do local onde as pessoas morreram. No entanto, esse argumento foi recusado. Permaneceu o critério de morte em dependências policiais e assemelhados. Tentamos também fazer com que a questão do ônus da prova ficasse para a Comissão e para os familiares, mas fomos derrotados. O ônus da prova fica apenas para os familiares. Também existe a questão de estabelecer as circunstancias da morte, mas nesse caso apresentaram como impedimento a Anistia, porque o Estado poderia divulgar uma lista de pessoas e depois não processá-las, já que a Lei de Anistia prevê a proteção a elas. Propomos, então, como conciliação o modelo chileno: relatar as circunstâncias, sem dizer o nome dos responsáveis. Mesmo assim eles recusaram. Todos concordavam com nossos argumentos, mas diziam que havia um pedido pessoal do presidente para que não houvesse emendas.

E a acusação feita pela OEA, de que o governo estaria desrespeitando uma convenção internacional sobre desaparecidos exatamente na questão de apurar as circunstancias?
Certamente o governo será condenado quando a OEA examinar a questão. Primeiro, porque o direito internacional não reconhece a auto-anistia: anistia para o torturador, o assassino. Só reconhece para as vítimas. Segundo, porque o direito internacional não reconhece a prescrição, ou seja, enquanto o caso estiver aberto, terá que ser apurado, ou será considerado crime de lesa humanidade, e um delito continuado, isto é, que não prescreve. Essa convenção, além de tudo, foi assinada pelo Brasil e elaborada num encontro realizado em Belém do Pará. Só que o Brasil não reconhece a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, então a condenação vai ser somente moral. O governo está querendo, a partir do reconhecimento dos mortos pelo Estado e do pagamento da indenização, conquistar um espaço em nível internacional como defensor dos Direitos Humanos. O fato é que havia uma oportunidade de desenvolver um processo digno, decente, estabelecendo um corte com o período de autoritarismo. Não conseguimos fazer passar nossas emendas, mas o movimento desencadeado desde a primeira minuta, que trazia apenas a questão da morte presumida e da indenização, avançou muito. Houve aproximação com as famílias, audiências públicas em todos os estados e contato com todas as entidades nacionais e internacionais, o que resultou em modificações importantes no nosso projeto antes de chegar ao Congresso, mas todas as possibilidades de emendas foram fechadas pelo governo. O reconhecimento de 136 vítimas da repressão do Estado já é uma vitória, abrindo a possibilidade para que outras mortes sejam reconhecidas.

As famílias tiveram um papel importante de denúncia nesse processo...
Creio que a lealdade dos familiares dos mortos e desaparecidos é uma coisa para entrar na História da Nação, na história dos valores que já não se encontram mais. Muita gente via isso como obsessão, neurose, deformação psíquica, exagero. Companheiros nossos durante muito tempo estigmatizaram esse trabalho, que tem uma coisa extraordinária, a lealdade dos parentes, dos familiares com os seus parentes. E eles procuraram todos os governos. Do Golbery ao Fernando Henrique, na tentativa de achar os desaparecidos. A iniciativa só podia ser do presidente da República, só ele tem autoridade no país para entrar na questão dos desaparecidos, dos mortos.

Será possível ampliar ainda os limites da atual lei?
O país vai ficar surpreso, porque apesar da limitação da lei, acho que vamos muito longe nesse processo. De repente, o Brasil descobriu o seu passado, entrou na discussão do âmago da ditadura, que tinha sido negada pelo Estado e abriu a discussão dos mortos e desaparecidos. E isso jamais poderia ter sido considerado apenas como remexer no passado, reabrir feridas, como muita gente chegou a entender, pessoas da esquerda que achavam que isso podia incomodar. Há um lado de reparar a injustiça, que é a grande preocupação das famílias e elas tinham que ser premiadas por essa luta. Além disso, estamos nos preparando para atuar dentro da Comissão Especial, com provas, testemunhos, indícios, disputando caso a caso. É impossível pensar qualquer lei que deixe de fora qualquer dos mortos ou desaparecidos, como algo definitivo. Vamos mostrar que Marighella também foi atraído para uma tocaia e que a custódia do Estado estava presente, que o Estado não deu chance para ele se defender. Assim como o Lamarca, que não teve a chance da prisão. Ele foi eliminado para não ficar preso, não virar um símbolo da resistência.

Alípio Freire é editor de T&D e Ivan Seixas é jornalista.