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Ler o livro de Roberto Campos é como ler as memórias do personagem machadiano Brás Cubas

Ler o livro de Roberto Campos - A Lanterna na Popa, 1.417 páginas! - lembrou-me algo de Machado de Assis. Não naturalmente o estilo preciso do genial escritor carioca; nem o seu fino humor; nem a crítica ácida das instituições de um império escravocrata e depois de um país mais ex-império e ex-escravocrata do que republicano e liberal.

Tampouco encontramos ali aquela descrição vivaz do cronista que registrava na pena leve, com graça e acuidade, os dramas e comédias do cotidiano. Nessa altura dirá o meu caro leitor, já preocupado ou mais intrigado do que preocupado: "Afinal, se tão pouco há do bom escritor nas páginas do Roberto, o que há de parentesco entre o 'Dr. Semana' e o constituinte a contragosto em 88?"

Na verdade, o que há de comum entre eles é uma grande originalidade. Ler o livro de Roberto é como ler as memórias de Brás Cubas escritas por ele mesmo, o personagem, que tomasse da pena e desbancasse o mestre do comando de seu livro.

Explico-me. Explica Roberto - outro -, o Roberto Schwarz, num de seus livros tão agradáveis de se ler que se tem até pena de que seu estilo seja tão conciso - que Machado de Assis, ao criar o pseudo-autor e personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, tocou na moleira de um dos dramas centrais do caldo de cultura e de pensamentos em que o Brasil vicejou.

É mais ou menos assim: o Brasil se fez pelo ajuste nada harmonioso entre - uma superestrutura de inspiração liberal e uma infraestrutura de aspiração escravista. Digo de aspiração porque o escravismo entre nós não foi apenas um legado maldito dos tempos coloniais; a partir de um certo ponto ele tornou-se uma opção consciente de nossa elite, com a qual quase todos conviviam mais ou menos alegre ou melancolicamente, conforme o gosto: algo parecido com a miséria e o desemprego, hoje, que vamos para o Primeiro Mundo, dizem. (Na verdade, a herança maldita do sistema colonial, diga-se de passagem, era aquela/esta elite).

Esta situação desconfortável para o pensamento criava desdobramentos bizarros, como este de conviverem alegremente desejos de modernidade com o atraso da escravidão; o caminho da cidadania com a porta da senzala; ideais de justiça e igualdade perante a lei com a iniquidade e a exclusão amplamente consentidas.

Tudo isto, então, por caminhos que agora seriam demasiado longos para explicar, recai sobre e informa a pena de Machado ao escrever este, manejando-lhe a suposta mão, as memórias de seu personagem. Brás Cubas é um crápula com uma grande amante - Virgínia. Tudo o que ele cultiva deteriora. Todas as iniciativas que toma aparecem contaminadas por uma malemolência que o faz chegar a lugar nenhum. Essa malemolência não é apenas um traço de caráter, que ele, aliás, não tem. (Neste sentido Brás Cubas é um Macunaíma sem a alegria e o humor deste). Essa malemolência nasce dessa capacidade de fazer conviver, no mesmo espaço mental, coisas absolutamente inconciliáveis, como querer formular uma teoria que explique o avanço da história humana dentro de uma sociedade que não avança, a do escravismo brasileiro. Tudo se desfaz na mão daquele enfant gaté (será enfant raté?) da elite brasileira. O que inventa, descrito ironicamente por Machado, simplesmente não presta, não dá certo, simplesmente porque já nasce torto. Sua vida torna-se um amontoado de inutilidades, de ideias jogadas fora, porque criadas para serem jogadas fora, elas já pertencem ao lixo da história.

Ao livro de Roberto falta a ironia de Machado. Bom, pode faltar bem mais, é claro, mas aquilo falta. Em primeiro lugar cabe dizer que pelo livro é absolutamente impossível discernir qualquer coisa do verdadeiro Roberto, o personagem de nossa república infeliz, tão caracterizada pelo que se insiste em chamar de "autoritarismo de transição" (essas transições que nunca acabam). Isto porque o autor Roberto, ao contrário do irônico Machado, se deixa tomar inteiramente pelo seu personagem. O desfiar de elogios ao personagem que encontramos nestas páginas é longo e enfadonho: esse personagem tão obsessivo força até o autor a dizer, sem apresentar documentos, que se passou no exame do Itamaraty, em 1938, com uma nota aquém da esperada é porque houve troca de provas. Uma coisa dessas, registre-se, para se dizer de si mesmo, ou se apresentam as provas, ou pudicamente se cala; mas é que Roberto, nesta altura, não fala de si mesmo, fala de um outro, alguém, alguma imagem, pela qual ele se empolga.

Esse alguém é um burocrata de governos e governos que se sucedem, cheio de ideais e de ideias, e que como todo ser intelectualizado neste país, acha que vai dar uma contribuição decisiva para salvá-lo. Encara a vida e a política como um tabuleiro de xadrez, onde se movem peças interessantes. Mas não consegue, é verdade, ver além do tabuleiro, nem para baixo, nem para os lados, nem, sobretudo, para cima. Buscamos em vão no livro uma idéia original, alguma marca absolutamente pessoal; encontramos, quando muito, opiniões. As observações que este personagem faz sobre os lugares em que esteve, alguns decisivos, como a Conferência de Bretton Woods, onde se desenhou o perfil da economia moderna, ou sobre os personagens com quem conviveu, como Nixon, Kennedy, De Gaulle e outros, são cheias de uma frivolidade afetada, que o faz confundir piadas de mau gosto com manifestação do espírito.

Este burocrata, então, imbuído de nobres ideais e do profundo desejo de modernizar a pátria, para que ela saia do atoleiro crônico em que se encontra, tomado por uma admiração inconteste por tudo aquilo que é rico neste mundo desigual, não consegue, é claro, sequer imaginar que a riqueza de uns é proporcional à pobreza dos outros. Para isso, seria necessário espiar embaixo do tabuleiro, e ver as engrenagens da coisa. Mas nosso amigo é um engenheiro de rotas, que imagina ser o mundo uma viagem em direção a um horizonte que inexplicavelmente se afasta: ele, que esteve tantos anos no poder, e um poder tão poderoso, não consegue conceber que o mundo em hecatombe em que vivemos tem qualquer coisa a ver com o que ele tenha feito. Se deu errado é porque nós, burros, não o ouvimos direito. Ou ele, quem sabe, no máximo, não conseguiu se explicar como devia.

A defesa que faz do Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), do governo Castello, é comovente. Vamos vendo o Brasil moderno nascer, este convulso e em crise que nos é dado por outorga, esse Brasil que se consubstancia na iníqua Constituição de 67, mas os desacertos se devem, na ótica plana daquele personagem, ao fato de que o Plano não foi ouvido, ao contrário, foi desviado de suas intenções, por grandes e poderosos fetiches sobreviventes - o nacional populismo, a tendência até socializante(!) das Forças Armadas brasileiras, o estatismo, o etcétera.

O esforço explicativo do personagem em apuros para explicar o inexplicável redunda então num estilo absolutamente desprovido de direção, em que os adjetivos, os neologismos classificatórios de ocasião, os rótulos inventados, substituem o peso dos substantivos e a força do pensamento original, ou pelo menos pessoal. Ao se falar de fetiches, torna-se, é claro, mais importante colori-los, para que eles se tornem visíveis, do que descrevê-los como parte de uma constelação de fenômenos socialmente construídos e desconstruídos. Isso implicaria olhar para os lados, ver o mundo de relações do campo social como uma estrutura cabível de análise, e isto o personagem, nós já vimos, não consegue fazer. Ele se ofusca pela contemplação do tabuleiro onde imagina que se dão as decisões, e por sua vontade obsessiva de nele ser visto como um figurante. Mais ou menos como aquele personagem de Bioy Casares que quer registrar sua imagem numa peça que não o contém originalmente, para dar a impressão, através de um gestuário composto, que ele está em diálogo com a mulher que ama.

Imbuído desses bons sentimentos e dessa visão oportunamente ingênua do mundo da política, nosso amigo então se entrega a manejar esse feixe de boas intenções no iníquo mundo da política brasileira. Não consegue ver a iniquidade desse mundo, nem sua torpeza de ser construído para prolongar a miséria, assim como o do Império o foi para, no fundo, em que pese a boa alma do imperador, prolongar a escravidão.

Ver estas coisas implicaria olhar para cima, para além, ter ideais verdadeiros, não uma mera coleção de bons propósitos mal e mal costurados com um verniz de seminário.

Atingimos o paroxismo desse carnaval funéreo na descrição da reticente cassação de Juscelino. O personagem em questão, que nessa altura é ministro, fica constrangido, porque fora colaborador próximo deste. Opina contra, por escrito. Castello lhe explica que a decisão deve parecer unânime. Juscelino será cassado e a responsabilidade pública deve ser de todos. O personagem se cala. Fica consolado, por ter escrito a carta contra, que fica na gaveta do presidente; de público, é forte e aderente membro da "revolução", de seu poder, de seu governo. Que nome, caro leitor, terá isto no seu bairro?

Não se diga porém que o livro e o personagem são destituídos do interesse. Quem queira enfrentar os miles de páginas encontrará ali descrições significativas, embora frívolas; relatórios importantes, embora descritos por um estilo também de relatório, sem muita profundidade, mais ou menos como os artigos do mesmo autor que saem na imprensa diária. O personagem também tem coerência. Se o seu espírito é machadiano sem Machado, como disse, como se Brás Cubas tomasse o freio nos dentes e saísse do livro para escrever as suas memórias, isto vai até o fim. Brás Cubas termina seu livro dizendo que tem o consolo de não ter tido filhos, não transmitindo a ninguém o legado de nossa miséria. Diz nosso personagem contemporâneo: "Se escrevesse um capítulo amoroso, ele teria apenas uma frase: "Não fui veado"; e uma nota de rodapé: "Nem atleta sexual". É verdade que Brás Cubas consegue ser amargo, ao final; ao nosso personagem, resta esta espécie de uma impávida grossura, o que confirma que, senão a história, as narrações pelo menos se repetem, primeiro como tragédia, depois como farsa.

Flávio Aguiar é membro do Conselho Editorial de T&D.