Cultura

Irmãos Karamazov, de Dostoievski, é de uma originalidade na revelação de aspectos da alma humana

Comecei a ler muito tarde. O primeiro livro que li marcou-me tão profundamente que não lembro mais qual foi. Sei apenas que era um livro policial, desses americanos, com mulheres bonitas e assassinos sanguinários. Eu tinha treze anos e, como quase tudo nessa idade (ou na vida toda), fui levado pelas aventuras sexuais da moça.

Um pouco maior, outros motivos me prenderam a Dostoievski. Dele li quase tudo. Me marcaram, sobretudo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov. A história é de uma originalidade na revelação de aspectos da alma humana, que poucas vezes voltei a encontrar. Apaixonei-me pela mulher que o idiota estava apaixonado. Não só por ela ser quem era, mas também pelo amor dele por ela. Amei, através do amor do Idiota, a mulher que ele amava.

Irmãos Karamazov revelou-me tantas coisas do modo de ser do povo russo. O melhor turismo é a literatura. A leitura de Dostoievski e Tostoi (de quem li Guerra e Paz e Ana Karenina) apresentaram-me um outro mundo, que eu dificilmente viria a conhecer sem eles.

Entrando nesse assunto, lembro também como a leitura dos pequenos livros de Marguerite Duras (O Amante, O Homem Sentado ao Fundo do Corredor, entre tantos outros) aproximou-me dos franceses, como Eça de Queiroz havia me aproximado dos portugueses. De Eça, o livro que mais gosto dos que li é A Cidade e as Serras. Penso em fazer um dia um filme desse livro.

Eça faz lembrar Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba foram para mim verdadeiras aulas de História do Brasil e da língua portuguesa. Nesse ponto, Machado junta-se a Eça na minha lembrança e ambos projetam o recente convívio com José Saramago. Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis (meu preferido), O Evangelho Segundo Jesus Cristo e, este último, Ensaios sobre a Cegueira. Saramago inventou a língua novamente. Mudou a pontuação como Garcia Marques em O Outono do Patriarca. Aliás, Garcia Marques! O eterno Cem Anos de Solidão, certamente, mas não posso esquecer Crônica da Morte Anunciada, O Enterro do Diabo, O Coronel em seu Labirinto e O Amor nos Tempos do Cólera.

E dos nomes que esqueci, certamente vários são de livros que li. A memória é um instrumento imperfeito; ou perfeito já que talvez fosse insuportável nos lembrarmos de tudo. Esquecimentos e lembranças me fazem lembrar Paul Auster. A Música do Acaso, Trilogia de Nova Iorque, Leviatã, O País das últimas Coisas... Ler Paul Auster ajuda a desfazer a imagem de que os Estados Unidos é um país de bobocas. Grande escritor, um escritor essencialmente da loucura contemporânea. como seria da loucura do sempre Estorvo, de Chico Buarque, que li e adorei.

E através do romance de Chico, chego aos poetas, A Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, e toda a obra de Fernando Pessoa. "O Poeta é um fingidor / E finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente..."

Dos poetas estáticos ao grande poeta dramático: William Shakespeare. Todas as peças! A Tempestade, Comédia dos Erros, Ricardo III, Hamlet, Macbeth... Tudo. Tudo de Shakespeare me marcou muito. Ali! E Molière! Tudo de Molière! Tudo que li, porque não li tudo.

E também de tudo que li, uns poetas angolanos que me chegaram pela mão de meu avô Thiers, professor de literatura. Dos nomes só lembro de Agostinho Neto. Não lembro mais dos poemas, mas sei que adorei na época e fiquei com vontade de ir a África. De meu avô, além de ensinamentos, também recebi dois livros escritos por ele: O Menino e o Palacete e Os Seres. Ambos livros de memória, da infância dele.

Criança, lembro que leram para mim contos de Hans Christian Andersen e que muita da minha fantasia de adulto continua impregnada por ele.

Pobre fantasia que hoje suporta o peso de livros teóricos corno Um Estudo sobre Rabelais (o nome não é bem esse), de Mikail Batkin (o nome também não deve ser bem esse). Deixando minha pretensão de lado, encontrei nas idéias de Batkin sobre o teatro tudo que eu já praticava em cena.

E mais livros teóricos me marcaram, como Sociedade e Cibernética, de Norbert Viner (também devo ter escrito o nome do autor errado). Desse livro, uma idéia mais saiu da minha cabeça. Não lembro bem como ele formula, mas é mais ou menos o seguinte: A vida são ilhas de organização num universo entrópico (que se desorganiza). Essa idéia situa-se no encontro da ciência com a poesia, e muito do pouco interesse que passei a ter pelas ciências exatas se deve a esse livro, que li, dado por meu pai, quando ainda era bastante jovem.

E muitos livros que esqueci completamente me marcaram.

Seja como for, na bagunça dos estilos, escolas, tendências, contemporaneidades, épocas, regionalismos, brasileirismos... quaisquer formas de tentamos organizar nossos conhecimentos, o que me ficou de tudo que li é o desejo de ler mais. E essa é a marca maior que os livros deixaram em mim: o desejo de ler.

Pedro Cardoso é ator e roteirista.