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No dia 10 de agosto, falecia o mais eminente sociólogo brasileiro. Perde a universidade, as Ciências Sociais, a esquerda e os trabalhadores

Perdemos Florestan Fernandes. Num desfecho triste e trágico, no dia 10 de agosto, falecia o mais eminente sociólogo brasileiro. Perdeu a universidade, um dos seus espíritos mais ousados e instigantes. Perderam as Ciências Sociais, dada a vastidão, abrangência e amplitude de sua obra. Perdeu a esquerda, um de seus símbolos contemporâneos mais legítimos. Perderam os trabalhadores, uma de suas vozes mais autênticas. Perdemos todos que o admiravam e gozavam da sua amizade.

Nascido em julho de 1920, filho de família pobre, Florestan Fernandes começou a trabalhar precocemente, com seis anos de idade. Em alfaiatarias, sapatarias, laboratórios, diversas foram suas atividades, que lhe deram recursos para o ingresso junto à Faculdade de Filosofia. Cedo também iniciou sua atividade política na esquerda, particularmente junto ao trotskismo, que depois viria a romper. Foi, todavia, o trabalho intelectual dentro da USP que efetivamente absorveu Florestan Fernandes. Nascia então sua vastíssima obra intelectual. Conhecedor em profundidade de Marx, Weber e Durkheim, escreveu com originalidade sobre os indígenas, os negros e a questão racial no Brasil, o folclore, a dependência e o subdesenvolvimento, as classes sociais e o capitalismo brasileiro, configurando-se numa das mais abrangentes e instigantes formulações sobre dimensões multifacetadas da realidade brasileira.

É, entretanto, de sua produção intelectual e política mais recente, que quero aqui recordar. Lembro-me que, em meados dos anos 70, no apogeu da ditadura militar, Florestan Fernandes, de volta ao Brasil, foi proferir uma palestra na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, sobre A Revolução Burguesa no Brasil, livro que acabara de publicar. Lá estávamos, os jovens alunos que tínhamos sido privados de suas aulas e que queríamos conhecê-lo. Florestan Fernandes disse, ao iniciar sua conferência, que falava como um socialista e, naquela condição, discorreu sobre os difíceis e tortuosos caminhos da montagem e desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Com um acento já nitidamente maior em Marx, Florestan Fernandes oferecia uma densa e sólida explicação para o processo de modernização e constituição do capitalismo no Brasil, mostrando peculiaridades de nossa formação social e de nossa Revolução Burguesa, apontando o caráter retardatário do capitalismo aqui instaurado, a fragilidade da burguesia brasileira e sua recorrência constante ao Estado, às formas autocráticas, às mudanças graduais, sem rupturas mais profundas. Uma revolução burguesa que conciliava pelo alto e excluía as classes trabalhadoras. Em suma, tratava-se de uma "burguesia dotada de moderado espírito modernizador", que buscava com muita freqüência os procedimentos autocráticos de dominação.

Foram enormes os impactos desta formulação, no interior do mundo acadêmico e fora dele, no qual esta reflexão encontrava solo fértil, contrapondo-se a tantas concepções anteriores que equivocadamente propugnavam pelo caráter democrático e progressista da burguesia brasileira. Dessa nova safra vieram diversos ensaios e livros, muitos voltados para o combate qualificado da forma autocrática e ditatorial então vigente, de que é exemplo, entre outros, A Ditadura em Questão. Florestan Fernandes desenvolvia a tese da liberalização outorgada ou da auto-reforma do regime militar, contra as análises então em voga, que viam democracia onde ela não existia. O sociólogo socialista cumpria, uma vez mais, a tarefa, que desde cedo lhe atribuiu: a elaboração sólida e a crítica radical das formas da dominação e da sociabilidade burguesa no Brasil.

Nos últimos dez anos, Florestan Fernandes dedicou-se, prioritariamente, à luta político-partidária. Ingressou no Partido dos Trabalhadores e, numa campanha memorável, elegeu-se deputado federal. Foi combater no Parlamento. Reelegeu-se para um segundo mandato, não por vontade pessoal, mas por um impulso que não podia impedir, oriundo do movimento social de esquerda presente em parcelas expressivas do PT e fora dele, que queriam-no novamente como representante.

Florestan, como pedia que o chamássemos, era figura singular na esquerda. Retilíneo nos princípios, generoso e plural no diálogo com os distintos partidos e movimentos de esquerda, era um intelectual erudito e, ao mesmo tempo, dotado de enorme simplicidade. Florestan Fernandes foi, também nesta última fase de sua vida política, um mestre. Sua morte, que a tantos amigos entristeceu, deixará uma lacuna irreparável. Tanto para aqueles que se inspiravam em seu espírito inteligente, crítico e insubmisso, quanto para os milhares de despossuídos, que perderam uma voz tão sintonizada com seus anseios mais profundos e verdadeiros

Ricardo Antunes é professor de Sociologia do Trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.