Cultura

Paulo Eduardo Arantes, neste depoimento, provoca e analisa a intelectualidade no poder

T&D pretendia fazer uma entrevista com Paulo Eduardo Arantes, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo. Fomos recebidos em sua casa e, de saída, intimidados por uma pergunta até certo ponto previsível, vinda de quem veio: "O que um partido político como o PT poderia extrair de relevante de um professor de um Departamento de Filosofia como o da USP?". Assim começou uma descontraída conversa que se estendeu por dois finais de tarde e que acabou gerando um resultado, ao mesmo tempo, inesperado e bem-vindo. Depois de elencarmos e discutirmos os temas subjacentes à série de perguntas que havíamos preparado, o "entrevistado" decidiu abordá-los mais pormenorizadamente num depoimento por escrito. Aquele que acompanhar até o fim este verdadeiro ajuste intelectual empreendido por Paulo Eduardo Arantes, entenderá o motivo daquela provocação inicial, mas também, surpreendentemente, encontrará nele uma resposta para ela.

Filosofia para todos

Um estrangeiro não entenderia o crescente sucesso de mídia da filosofia em nosso país. E mesmo um brasileiro precisaria pensar duas vezes a respeito do espaço relativamente desproporcional ocupado pela filosofia nos meios de comunicação de massa, sobretudo em se tratando de uma especialidade tão remota como os estudos filosóficos. Nenhum jornal do mundo dedicaria quatro páginas da sua edição dominical (sem falar na inevitável réplica do concorrente) à cobertura do lançamento de um livro sobre Wittgenstein. Vocês me dirão que o autor era a verdadeira "matéria" (de capa inclusive), muito mais importante do que o clássico em questão, mas seria preciso acrescentar que o tal clássico, a despeito de ser um filósofo da lógica exigindo conhecimentos técnicos específicos, não por acaso tornou-se nos últimos anos matriz mundial de uma surpreendente variedade de gadgets, de filmes a biografias, passando por locais de peregrinação. Em menos de seis meses o livro já deve estar indo para a 2º edição. Quem o leu? Eu sou suspeito, mas não conheço muita gente.

Inexistente nos anos 60, as relações da filosofia universitária com a indústria da consciência em nosso país datam da década seguinte. Estreamos com uma anomalia: no início dos 70, a Editora Abril lança a coleção Os Pensadores, na forma de antologias acompanhadas de fascículos vendidos em banca de jornal, porém concebidos, planejados e coordenados por gente do ramo filosófico o mais estrito e exigente. Fora o preço, nada estava barateado. Resultado: em menos de um ano vendeu-se mais Platão do que em toda a história intelectual da Alemanha. Como era de se esperar, apocalípticos e integrados se engalfinharam. No coro frankfurtiano dos contrários falava-se em falso esclarecimento, engodo de massa, assalto à economia popular. Mas o lado a favor também possuía bons argumentos, entre eles a convicção de que era impossível tocar um primeiro ano de filosofia Brasil afora (se é fato que filosofia e espírito crítico são uma só e mesma coisa, apesar de toda desconversa que costuma acompanhar a primeira) sem o amparo de coleções como essa, além do mais numa época de universidade de massa, como já era a brasileira nos cinco primeiros anos da ditadura militar.

Primeiro lembrete a propósito de nossas esquisitices nacionais. Não custa recordar pela enésima vez que a via brasileira para o capitalismo moderno não tomou feição clássica, que em trinta anos, a bem dizer, passamos diretamente de uma economia primário-exportadora para uma configuração industrial oligopólica, queimando o impulso societário organizador que os países centrais devem ao longo período de capitalismo competitivo movido a luta de classes. Como este salto à frente carrega consigo uma espécie de Antigo Regime funcional, era natural que nessas condições nos tomássemos um aleijão, menos por deficiência interna do que por sermos de fato a fratura exposta do capitalismo mundial.

Se uma constelação como essa compromete até hoje a formação de um partido operário, por que não haveria de enredar num sistema de alienações originais a especulação filosófica, quando chegasse a sua hora? Esta começou de fato a chegar ao longo dos anos 70, alcançando hoje um fastígio quase burlesco. Como o país, a cultura filosófica também abandonou do dia para a noite o seu estado de "melhoramento-da-vida-moderna" para ingressar sem maiores mediações no repertório da indústria cultural, também ela muito idiossincrática em nosso meio, para pior é claro. Aliás mediações até que houve, sendo a principal delas o ânimo combativo de resistir a ditadura conferindo existência pública ao espírito filosófico. Quis no entanto a lógica das nossas combinações desiguais que com o tempo fosse ficando cada vez mais delicado discernir "vontade de esclarecimento" de exposição máxima em shows culturais, dos quais não se pode dizer sem mais que também não iluminem a cena. De sorte que os apocalípticos parecem integrados até o pescoço, e os integrados vez por outra cometem desatinos apocalípticos. No centro, uma Abertura bem-sucedida, que não cumprindo o prometido, melou tudo.

A Universidade depois da queda

Curiosamente, enquanto a mídia nos facilita a vida - pelo menos os happy few que ela festeja ou tolera -, a Universidade só a complica. O clima é de fim de linha. Mas voltemos ao começo dela, às ilusões da Abertura, aliás ilusões com forte apoio na realidade.

Na virada dos anos 70 para os 80, o mais pessimista dos observadores da cena nacional não recusaria o seguinte panorama, verdade que esboçado com mão de mestre: há muito tempo não se via no Brasil um esforço tão grande de estudar e entender a atualidade, conhecer e criticar os rumos do país; mas a despeito da qualidade e do empenho o conjunto não parecia somar, como se faltassem iniciativas e espaços sociais em que tais conhecimentos pudessem atravessar as barreiras de classe e profissão, influir uns nos outros, produzindo a indispensável densidade de referências recíprocas, sem as quais não se injeta energia social no estudo, transformando-o em algo mais do que simples mania ou um ganha pão como outro qualquer, em algo coletivo enfim. Em linha com esse raciocínio, e o sentimento correlato de regeneração social possível caso déssemos, entre outras coisas mais decisivas, com o nexo social entre o tal ânimo estudioso disperso e luta social, seria preciso acrescentar que o espaço das transfusões críticas demandadas estava disponível sim, como o demonstrava, por exemplo, o sucesso excepcional das reuniões da SBPC, ela mesma uma extensão da universidade (o correspondente sucesso dos megaeventos culturais de hoje, em que aliás brilha a filosofia, dá uma idéia do país depois da queda).

O mesmo autor que acabei de parafrasear costuma dizer que a Universidade é uma máquina de suscitar e ao mesmo tempo anular pensamento. Pois naquela quadra, tirante a atrofia de sempre, a Universidade estava mais para fomento do que para sepultamento. E isto porque vinha inchando desmesuradamente em função das políticas (e negociatas) megalomaníacas da ditadura, e quanto mais massa atendia menos funcionava. Um par de oposicionistas com muita imaginação formulou então a seguinte alternativa: se é assim, chegou a nossa hora. É que uma universidade de massa, no quadro de um processo acelerado de modernização como o nosso, é uma peça da maior importância, só que na gestão da demanda agregada: as verbas destinadas às universidades públicas estão atreladas aos imperativos macroeconômicos da política fiscal; daí as flutuações irracionais do financiamento, do ponto de vista da natureza do objeto. Com isso era arquivado um dos grandes mitos da esquerda: salvo no que respeita à política econômica como tal, a Universidade não é funcional, o capital não está minimamente interessado em ensino, pesquisa e tecnologia, até porque esta última faz tempo é gerada nos departamentos de P&D das grandes corporações multinacionais. Vistas as coisas desse ângulo heterodoxo, percebeu-se que a ditadura tinha gerado um monstrengo libertário, um enorme exército intelectual de reserva que por razões estruturais, mesmo que quisesse já era inempregável, a não ser para fins que lesassem frontalmente os interesses mais corriqueiros do cálculo econômico. Estava ali enfim, nas salas de aula e ateliês apinhados, uma chance histórica para a descompartimentação social e intelectual que estava faltando. Como o nó vinha do inchaço burocrático e autoritário, uma vontade democrática decidida e organizada logo o cortaria. Como sabemos, as oposições também pensavam assim em plano nacional, devendo a Abertura culminar numa ruptura democrática que cuidaria de desconcentrar tanto o poder político como o econômico.

Conhecemos a reviravolta pela qual ninguém esperava. Atendendo ao mais premente de um longo ciclo recessivo, o capitalismo acabou se mundializando e infligindo, de caso muito bem pensado, a maior derrota política e social de que se tem notícia desde os anos 30 àquelas forças que mesmo quando negociavam com ele um compromisso sabiam que estavam lidando com uma ameaça à vida civilizada no planeta.

Isso dito para lembrar que a Universidade não seria uma exceção.

Quando ela se preparava para uma virada histórica foi empurrada para o cemitério das grandes carcaças deixadas pelo caminho de uma formação nacional que não se completara, ao lado de usinas nucleares que nunca funcionam, ferrovias que não levam a parte alguma etc. Daí a vida dura que levamos: mesmo assim em estado pré-falimentar de sucata, para agravo moral ainda maior, passamos por privilegiados de um setor estatal improdutivo. Não adianta discutir. Diante da grande massa de esbulhados que constituem a imensa maioria deste país, trata-se é claro de uma evidência palmar. Mesmo assim a legião dos despossuídos continuaria na mesma depois de fechada a última universidade pública brasileira.

Não é isto o mais desastroso, até porque não acontecerá. Já há muito "sabido" em campo diligenciando reengenharias, gestão profissional, parcerias (negocinhos da china) e outras abobrinhas como exame final etc. A prevalecer a lógica dos vencedores, haverá encolhimentos drásticos, fatiamentos separatistas, formação de redes "acadêmicas" de interesse etc. Modesta contribuição dos tais sabidos para o aprofundamento do processo de dessolidarização social em curso.

Como disse, não é isso o mais estarrecedor, mas o que se vê na sala de aula. Às vezes fico pensando, depois de treze anos ensinando, nem mesmo cem Antonios Candidos dariam conta de tirar do limbo em que se encontram as milhares de Macabeas de ambos os sexos espalhadas pelas universidades brasileiras. Como o povo brasileiro, é certo que elas ou eles virarão estrela e irão para o céu, mas por enquanto o que se vê é outra coisa, um fenômeno para o qual o escritor e também professor Modesto Carone encontrou a fórmula exata: vítimas de um "dano cultural irreparável". São pessoas mentalmente desmobilizadas. Não têm para onde ir, pois a parte que nos coube do ajuste conservador desativou o mecanismo básico de uma sociedade moderna, a mobilidade social ascendente, o que corta o fôlego e a vida pensante de qualquer um. Recuar, nem pensar: onde a cultura viva do povo bastando-se a si mesma? Convenhamos, não há teoria crítica que quebre o gelo de tamanha alienação sem palavras.

Desse quadro faz parte o disparate pelo qual comecei: mal-estar na Universidade, relativo à-vontade na mídia. O colapso do desenvolvimento brasileiro deixou uma especialidade universitária como a sociologia, por exemplo, praticamente sem assunto. Pelo mesmo motivo, sua parceira, a antropologia, se deu muito bem, estudando os estilhaços daquela implosão, as várias maneiras dos derrotados porém ainda dependentes do capital vencedor entrarem e saírem da modernidade, como se diz em jargão, de preferência assistidos por corretores de "identidade" cadastrados.