Cultura

Paulo Eduardo Arantes, neste depoimento, provoca e analisa a intelectualidade no poder

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T&D pretendia fazer uma entrevista com Paulo Eduardo Arantes, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo. Fomos recebidos em sua casa e, de saída, intimidados por uma pergunta até certo ponto previsível, vinda de quem veio: "O que um partido político como o PT poderia extrair de relevante de um professor de um Departamento de Filosofia como o da USP?". Assim começou uma descontraída conversa que se estendeu por dois finais de tarde e que acabou gerando um resultado, ao mesmo tempo, inesperado e bem-vindo. Depois de elencarmos e discutirmos os temas subjacentes à série de perguntas que havíamos preparado, o "entrevistado" decidiu abordá-los mais pormenorizadamente num depoimento por escrito. Aquele que acompanhar até o fim este verdadeiro ajuste intelectual empreendido por Paulo Eduardo Arantes, entenderá o motivo daquela provocação inicial, mas também, surpreendentemente, encontrará nele uma resposta para ela.

Filosofia para todos

Um estrangeiro não entenderia o crescente sucesso de mídia da filosofia em nosso país. E mesmo um brasileiro precisaria pensar duas vezes a respeito do espaço relativamente desproporcional ocupado pela filosofia nos meios de comunicação de massa, sobretudo em se tratando de uma especialidade tão remota como os estudos filosóficos. Nenhum jornal do mundo dedicaria quatro páginas da sua edição dominical (sem falar na inevitável réplica do concorrente) à cobertura do lançamento de um livro sobre Wittgenstein. Vocês me dirão que o autor era a verdadeira "matéria" (de capa inclusive), muito mais importante do que o clássico em questão, mas seria preciso acrescentar que o tal clássico, a despeito de ser um filósofo da lógica exigindo conhecimentos técnicos específicos, não por acaso tornou-se nos últimos anos matriz mundial de uma surpreendente variedade de gadgets, de filmes a biografias, passando por locais de peregrinação. Em menos de seis meses o livro já deve estar indo para a 2º edição. Quem o leu? Eu sou suspeito, mas não conheço muita gente.

Inexistente nos anos 60, as relações da filosofia universitária com a indústria da consciência em nosso país datam da década seguinte. Estreamos com uma anomalia: no início dos 70, a Editora Abril lança a coleção Os Pensadores, na forma de antologias acompanhadas de fascículos vendidos em banca de jornal, porém concebidos, planejados e coordenados por gente do ramo filosófico o mais estrito e exigente. Fora o preço, nada estava barateado. Resultado: em menos de um ano vendeu-se mais Platão do que em toda a história intelectual da Alemanha. Como era de se esperar, apocalípticos e integrados se engalfinharam. No coro frankfurtiano dos contrários falava-se em falso esclarecimento, engodo de massa, assalto à economia popular. Mas o lado a favor também possuía bons argumentos, entre eles a convicção de que era impossível tocar um primeiro ano de filosofia Brasil afora (se é fato que filosofia e espírito crítico são uma só e mesma coisa, apesar de toda desconversa que costuma acompanhar a primeira) sem o amparo de coleções como essa, além do mais numa época de universidade de massa, como já era a brasileira nos cinco primeiros anos da ditadura militar.

Primeiro lembrete a propósito de nossas esquisitices nacionais. Não custa recordar pela enésima vez que a via brasileira para o capitalismo moderno não tomou feição clássica, que em trinta anos, a bem dizer, passamos diretamente de uma economia primário-exportadora para uma configuração industrial oligopólica, queimando o impulso societário organizador que os países centrais devem ao longo período de capitalismo competitivo movido a luta de classes. Como este salto à frente carrega consigo uma espécie de Antigo Regime funcional, era natural que nessas condições nos tomássemos um aleijão, menos por deficiência interna do que por sermos de fato a fratura exposta do capitalismo mundial.

Se uma constelação como essa compromete até hoje a formação de um partido operário, por que não haveria de enredar num sistema de alienações originais a especulação filosófica, quando chegasse a sua hora? Esta começou de fato a chegar ao longo dos anos 70, alcançando hoje um fastígio quase burlesco. Como o país, a cultura filosófica também abandonou do dia para a noite o seu estado de "melhoramento-da-vida-moderna" para ingressar sem maiores mediações no repertório da indústria cultural, também ela muito idiossincrática em nosso meio, para pior é claro. Aliás mediações até que houve, sendo a principal delas o ânimo combativo de resistir a ditadura conferindo existência pública ao espírito filosófico. Quis no entanto a lógica das nossas combinações desiguais que com o tempo fosse ficando cada vez mais delicado discernir "vontade de esclarecimento" de exposição máxima em shows culturais, dos quais não se pode dizer sem mais que também não iluminem a cena. De sorte que os apocalípticos parecem integrados até o pescoço, e os integrados vez por outra cometem desatinos apocalípticos. No centro, uma Abertura bem-sucedida, que não cumprindo o prometido, melou tudo.

A Universidade depois da queda

Curiosamente, enquanto a mídia nos facilita a vida - pelo menos os happy few que ela festeja ou tolera -, a Universidade só a complica. O clima é de fim de linha. Mas voltemos ao começo dela, às ilusões da Abertura, aliás ilusões com forte apoio na realidade.

Na virada dos anos 70 para os 80, o mais pessimista dos observadores da cena nacional não recusaria o seguinte panorama, verdade que esboçado com mão de mestre: há muito tempo não se via no Brasil um esforço tão grande de estudar e entender a atualidade, conhecer e criticar os rumos do país; mas a despeito da qualidade e do empenho o conjunto não parecia somar, como se faltassem iniciativas e espaços sociais em que tais conhecimentos pudessem atravessar as barreiras de classe e profissão, influir uns nos outros, produzindo a indispensável densidade de referências recíprocas, sem as quais não se injeta energia social no estudo, transformando-o em algo mais do que simples mania ou um ganha pão como outro qualquer, em algo coletivo enfim. Em linha com esse raciocínio, e o sentimento correlato de regeneração social possível caso déssemos, entre outras coisas mais decisivas, com o nexo social entre o tal ânimo estudioso disperso e luta social, seria preciso acrescentar que o espaço das transfusões críticas demandadas estava disponível sim, como o demonstrava, por exemplo, o sucesso excepcional das reuniões da SBPC, ela mesma uma extensão da universidade (o correspondente sucesso dos megaeventos culturais de hoje, em que aliás brilha a filosofia, dá uma idéia do país depois da queda).

O mesmo autor que acabei de parafrasear costuma dizer que a Universidade é uma máquina de suscitar e ao mesmo tempo anular pensamento. Pois naquela quadra, tirante a atrofia de sempre, a Universidade estava mais para fomento do que para sepultamento. E isto porque vinha inchando desmesuradamente em função das políticas (e negociatas) megalomaníacas da ditadura, e quanto mais massa atendia menos funcionava. Um par de oposicionistas com muita imaginação formulou então a seguinte alternativa: se é assim, chegou a nossa hora. É que uma universidade de massa, no quadro de um processo acelerado de modernização como o nosso, é uma peça da maior importância, só que na gestão da demanda agregada: as verbas destinadas às universidades públicas estão atreladas aos imperativos macroeconômicos da política fiscal; daí as flutuações irracionais do financiamento, do ponto de vista da natureza do objeto. Com isso era arquivado um dos grandes mitos da esquerda: salvo no que respeita à política econômica como tal, a Universidade não é funcional, o capital não está minimamente interessado em ensino, pesquisa e tecnologia, até porque esta última faz tempo é gerada nos departamentos de P&D das grandes corporações multinacionais. Vistas as coisas desse ângulo heterodoxo, percebeu-se que a ditadura tinha gerado um monstrengo libertário, um enorme exército intelectual de reserva que por razões estruturais, mesmo que quisesse já era inempregável, a não ser para fins que lesassem frontalmente os interesses mais corriqueiros do cálculo econômico. Estava ali enfim, nas salas de aula e ateliês apinhados, uma chance histórica para a descompartimentação social e intelectual que estava faltando. Como o nó vinha do inchaço burocrático e autoritário, uma vontade democrática decidida e organizada logo o cortaria. Como sabemos, as oposições também pensavam assim em plano nacional, devendo a Abertura culminar numa ruptura democrática que cuidaria de desconcentrar tanto o poder político como o econômico.

Conhecemos a reviravolta pela qual ninguém esperava. Atendendo ao mais premente de um longo ciclo recessivo, o capitalismo acabou se mundializando e infligindo, de caso muito bem pensado, a maior derrota política e social de que se tem notícia desde os anos 30 àquelas forças que mesmo quando negociavam com ele um compromisso sabiam que estavam lidando com uma ameaça à vida civilizada no planeta.

Isso dito para lembrar que a Universidade não seria uma exceção.

Quando ela se preparava para uma virada histórica foi empurrada para o cemitério das grandes carcaças deixadas pelo caminho de uma formação nacional que não se completara, ao lado de usinas nucleares que nunca funcionam, ferrovias que não levam a parte alguma etc. Daí a vida dura que levamos: mesmo assim em estado pré-falimentar de sucata, para agravo moral ainda maior, passamos por privilegiados de um setor estatal improdutivo. Não adianta discutir. Diante da grande massa de esbulhados que constituem a imensa maioria deste país, trata-se é claro de uma evidência palmar. Mesmo assim a legião dos despossuídos continuaria na mesma depois de fechada a última universidade pública brasileira.

Não é isto o mais desastroso, até porque não acontecerá. Já há muito "sabido" em campo diligenciando reengenharias, gestão profissional, parcerias (negocinhos da china) e outras abobrinhas como exame final etc. A prevalecer a lógica dos vencedores, haverá encolhimentos drásticos, fatiamentos separatistas, formação de redes "acadêmicas" de interesse etc. Modesta contribuição dos tais sabidos para o aprofundamento do processo de dessolidarização social em curso.

Como disse, não é isso o mais estarrecedor, mas o que se vê na sala de aula. Às vezes fico pensando, depois de treze anos ensinando, nem mesmo cem Antonios Candidos dariam conta de tirar do limbo em que se encontram as milhares de Macabeas de ambos os sexos espalhadas pelas universidades brasileiras. Como o povo brasileiro, é certo que elas ou eles virarão estrela e irão para o céu, mas por enquanto o que se vê é outra coisa, um fenômeno para o qual o escritor e também professor Modesto Carone encontrou a fórmula exata: vítimas de um "dano cultural irreparável". São pessoas mentalmente desmobilizadas. Não têm para onde ir, pois a parte que nos coube do ajuste conservador desativou o mecanismo básico de uma sociedade moderna, a mobilidade social ascendente, o que corta o fôlego e a vida pensante de qualquer um. Recuar, nem pensar: onde a cultura viva do povo bastando-se a si mesma? Convenhamos, não há teoria crítica que quebre o gelo de tamanha alienação sem palavras.

Desse quadro faz parte o disparate pelo qual comecei: mal-estar na Universidade, relativo à-vontade na mídia. O colapso do desenvolvimento brasileiro deixou uma especialidade universitária como a sociologia, por exemplo, praticamente sem assunto. Pelo mesmo motivo, sua parceira, a antropologia, se deu muito bem, estudando os estilhaços daquela implosão, as várias maneiras dos derrotados porém ainda dependentes do capital vencedor entrarem e saírem da modernidade, como se diz em jargão, de preferência assistidos por corretores de "identidade" cadastrados.

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Com a filosofia aconteceu algo parecido, não por acaso o seu inesperado sucesso de público seguiu de perto o da antropologia. Também ela se ocupa com as mesmas sobras: como entrar numa sala de aula imbuído do propósito de difusão do espírito crítico herdado dos pais fundadores, sem resvalar no melodrama ilustrado? Sobretudo porque uma parcela dos presentes sabe que estamos vendendo outro peixe lá fora. Por uma razão muito simples: o referido desmoronamento (que tem escala mundial) ao mesmo tempo em que alterou radicalmente o perfil da demanda, transformou a filosofia numa espécie de conversa sobre cultura. Sem nunca ter pensado no assunto (nem seria possível) vínhamos nos preparando para a guinada desde a primeira época do estruturalismo francês, quando o repertório filosófico foi ampliado, abarcando lingüística, psicanálise, etnologia, nova história, neovanguarda literária etc. Não fizemos nada também, muito pelo contrário, para desfazer a velha crendice em vigor nos meios universitários e afins de que a filosofia ainda é um tribunal de última instância, cabendo de direito ao filósofo dar a última palavra sobre qualquer assunto na ordem do dia. Ocorre que nesse meio tempo a eufemística acumulação flexível já havia se encarregado de promover o arabesco intelectual a estilo de vida que se consome, desde que devidamente animado por intermediários qualificados operando no setor. Juntar as duas metades era só uma questão de tempo e ocasião. Chegado o primeiro, a mídia fez a sua parte. Quem disse que o Iluminismo se transformaria em um engano de massa imaginou muita coisa mas não que a filosofia enquanto Crítica da Cultura seria servida por animadores culturais e congêneres. Assim, o mercado que nos fustiga por obsolescência estatal, é o mesmo que nos afaga e nos obriga a tirar coelho da cartola diante de uma platéia embandeirada por banqueiros, ministros e colunáveis.

Intelectuais do contra, porém a favor

Quanto aos intelectuais, para variar se encontram na berlinda. O que é normal em sociedades mal-acabadas como a nossa, na qual sempre foram pau pra toda obra desde os primórdios da nacionalidade. Com um dado novo a mais: um dos nossos chegou à Presidência da República, o que complica tudo. Grande parte da encrenca ideológica em que andamos metidos vem daí. Estivesse o ajuste (para empregar uma expressão chave da fraseologia em vigor) em que vivemos entalados de uns tempos para cá sendo tocado pelo cacique político de turno, estou seguro que a conversa nacional estaria tomando outro rumo. Não quero ser cínico, "pois sei muito bem quem está pagando a conta e não é hora de ficar torcendo por vida intelectual animada. Como a tendência é ser caudaloso quando o assunto em pauta é a grande e lamentável família dos intelectuais brasileiros, vou me restringir a um par de observações, melhor dizendo, a um esquema (de Antonio Candido) e seu complemento (Roberto Schwarz).

Anuncia-se a Era do Sim: expressão que não é minha, mas de um destacado cinemanovista saudando a sensação de vazio que experimentara logo após a vitória de Fernando Henrique. A reversão positivadora é flagrante. Embora distante no tempo, seus dois extremos integram uma mesma linha evolutiva ideológica. A famigerada marca cruel do subdesenvolvimento que o Cinema Novo contrapunha ao Imperialismo na forma da crítica imanente da parte ao todo, retrocedeu à condição de tara sociológica que só a racionalidade econômica saberá erradicar.

Pois bem, aí pelo fim dos anos 70, numa breve palestra ainda não recolhida em livro, Antonio Candido chamou a atenção para alguma coisa de essencial acerca desse mecanismo de reviravolta, uma constante em nossa vida intelectual. Como estamos vivendo um momento de intenso ajuste intelectual, uma rotação de eixo como há muito não se via em nosso meio até anteontem oposicionista, acho do maior interesse voltar a examinar esse esquema, a ver no que dá. Curiosamente, Antonio Candido refrescava a memória dos presentes também no momento em que, a seu ver, estávamos entrando numa sólida era conservadora.

Em linhas gerais, o argumento partia da constatação de um certo déficit de negatividade em nossa cultura. Antonio Candido não se exprimiu exatamente nestes termos, mas sem falseá-lo torci um pouco a terminologia para o lado do Roberto, que me interessa salientar depois. Com isso ele queria dizer que a cultura intelectual brasileira demonstrou sempre uma tendência a ser muito "a favor", mesmo quando era "do contra". No seu modo de entender, fenômeno muito compreensível numa sociedade de cultura reflexa, condenada desde a origem a adotar os padrões trazidos pelos colonizadores. Esta referência obrigatória à norma européia, seja para acatá-la ou infringi-la, acabou fazendo com que o "a favor" e "o contra", por assim dizer, se alternassem interligados na evolução de nossa vida intelectual. Assim, um artista de vanguarda podia ser frontalmente "contra" a pasmaceira local, mas decididamente "a favor" da renovação estética européia, que por sua vez perdia o gume negativo ao servir aos propósitos positivos de um país periférico. Não surpreende então que os movimentos "do contra" na cultura brasileira sejam de fato muito temperados.

Ora, sou de opinião de que se esse esquema binário fosse devidamente expandido poderia dar conta de muita coisa do ritmo ideológico característico de um certo tipo de vida intelectual congregada, de perfil institucional indeciso porém tangível, que poderíamos batizar de Partido Intelectual. Se tomarmos ao pé da letra a carga negativa elementar presente em qualquer esforço reflexivo, sendo portanto por definição um Partido do Contra, o Partido Intelectual, não obstante, pode muito bem funcionar como um Partido do A Favor.

Aproveito para lembrar que esse esquema da alternância do "contra" e do "a favor" está em linha com o que Antonio Candido sempre disse, das mais variadas maneiras, a cerca da dimensão empenhada da vida intelectual brasileira, o ânimo construtivo de quem pensa e escreve com o olho posto nas providências a tomar com vistas à entrada bem aparelhada do Brasil no concerto das nações civilizadas. De sorte que exigir entre nós, de um intelectual, que ele se engaje é como chover no molhado, e mais uma vez assistir à mágica brasileira da conversão do negativo em positividade, ponto para o qual Roberto Schwarz não faz muito chamou a atenção, achando que finalmente chegara a hora da torre de marfim materialista. Esquema também em sintonia com outro tópico chave no arranjo teórico de Antonio Candido, o contraponto entre localismo e cosmopolitismo a reger nossa vida mental, por sua vez, embora relativamente desafogado em sua lógica específica, firmemente ancorado nas idas e vindas do campo de forças definidas pelas relações assimétricas entre centro e periferia.

Lembro o ponto para chegar à novidade que gostaria de assinalar a propósito do movimento pendular de um chamado Partido Intelectual entre o "contra" óbvio e o "a favor" não tão óbvio assim. Mas para tanto preciso recordar que o raciocínio de crítica cultural de Antonio Candido admitia e previa um momento de equilíbrio e síntese entre os dois pólos, o geral e o particular, momento tanto de ordem mental quanto material: a grande hora histórica de superação do subdesenvolvimento e da dependência cultural, com a incorporação moderna e coerente das massas populares a uma sociedade de passado colonial finalmente erradicado. Acontece, como todo mundo sabe ou devia saber (pelo menos desde o seu sepultamento ostensivo com a famigerada "mudança de agenda" promovida pela era Collor) que esta hipótese começou ser derrubada a partir de 64.

Aqui, o passo adiante dado pelo Roberto, de que falei, e do qual me vali quando me referi à patologia intrínseca do mundo metropolitano sendo posta em perspectiva pela atitude "do contra" do Cinema Novo. Como não posso me estender, diria muito rapidamente o seguinte: refletindo, depois do contravapor de 64, sobre o desenvolvimento do subdesenvolvimento (posso garantir que muito mais atraído pela "dialética" do título do que propriamente pelas teses de Günder Franck), quer dizer refletindo sobre a persistência do nosso Antigo Regime devidamente reposto pelo processo de aprofundamento da modernização capitalista, Roberto achou que finalmente havia chegado a hora em que a inteligência acederia objetivamente a um ponto de vista crítico de negatividade máxima acerca da marcha nefasta do capitalismo mundial, mas não um ponto de vista doutrinário qualquer, por teimosia ortodoxa e baluartista, mas uma perspectiva ancorada na sondagem das formas locais específicas daquela marcha internacional catastrófica e propriamente bárbara. Com isso, imaginava, embora não nestes termos de agora, o Partido Intelectual instalava-se de vez num longo e definitivo ciclo "do contra", em que do fundo mesmo do nosso quintal objetaríamos enfim para valer, e em nome da experiência havida, contra o sistema mundial de produção de mercadorias. E mais, um ciclo intelectual ao longo do qual nunca mais regrediríamos ao ângulo culturalmente diminuído e tutelado em que se costumava (?) a eliminação do nosso atraso (?) o uma diferença a tirar em relação à normalidade (que assim deixava de sê-lo) dos países centrais.

Ora, o tempo se encarregaria de mostrar que Roberto, ao cumprir o seu dever (materialista) de crítico literário, trazendo de volta a interpretação da experiência brasileira para o centro do ensaio literário, como alguns anos antes o mesmo Antonio Candido mostrara ser possível fazê-lo, conseguira por assim dizer extrair energia estética negativa, transposta ato contínuo para o plano da crítica da cultura e da sociedade, do enfoque geral da assim chamada (para facilitar) Teoria da Dependência, mas precisara para tanto empurrar para debaixo do tapete o mais do que ambíguo caráter afirmativo dela, mais interessada em desfazer à esquerda as imagens ou imaginações equivocadas a respeito do funcionamento do capitalismo na periferia do que em criticar a cara feia do bicho (por certo achando que isto era uma obviedade moral para mais tarde, capitulação sem dúvida reforçada a cada rodada da controvérsia ideológica interna pelo acerto realista do seu diagnóstico). Associada porém dependente, ou vice-versa, pouco importa, o fato é que nossa economia se desenvolve, nossa matriz industrial está se completando, quando chegar a nossa vez saberemos extirpar as patologias inerentes ao processo. A hora se apresentou e com ela, a conta.

Nos termos do nosso esquema: Antonio Candido (já que é o nome próprio pelo qual atende o dito esquema), mesmo derrotado no que tange à hipótese da construção nacional, compartilhada aliás por outro vencido, Celso Furtado, volta a ter razão, não sem paradoxo, seja dito para aguçar o sentimento dos contrários nesta marcha arrevesada das coisas, pois estamos evocando o testemunho involuntário de dois eminentes próceres civilizadores do mais positivo "a favor" institucional, sendo no entanto o primeiro deles declaradamente socialista e amigo fiel da Revolução Cubana. É que naquele caráter afirmativo da idéia nem um pouco equivocada de desenvolvimento capitalista dependente-associado ressoava novamente a batida do pêndulo do "a favor". Houve um interregno, é claro, em que as miragens da Abertura e da Transição arquivaram como velharia as antigas teorias da dependência, aliás reforçando a ilusão retrospectiva de que elas eram, todas, intrinsecamente críticas. O que se viu e se está vendo é que a mundialização em curso, como já foi dito por um observador, trouxe de volta consigo uma Novíssima Dependência, só que agora devidamente maquiada por uma velha racionalização encobridora. É que retomou tal qual a antiga síndrome do "Brasil errado", na contramão, no desvio etc., seguida da palavra de ordem da faxina interna e tudo o mais que se segue da atual fraseologia da inserção internacional e seus derivados.

Preciso acrescentar que Roberto não só reconheceu a guinada (ou a explicitação em nova chave) como passou prontamente a conceituá-la, identificando, que eu saiba pela primeira vez, a dimensão industrializante do marxismo uspiano, o seu lado de progressismo burguês oitocentista, sem embargo da intuição original do Brasil de passado escravista-burguês, o maior feito do dito marxismo.

Antonio Candido voltaria a repisar que o "contra" do intelectual brasileiro nunca se apresenta desacompanhado do seu par alterno do "a favor". Aliás como seu ex-assistente mostrou muito bem, e deu a última volta na chave de toda esta novela, no andamento binário da narração machadiana. E mais, recordando que os arrancos da nossa tradição "radical" intermitente (mas não os estou ameaçando com uma digressão sobre esta tradição "radical", segundo Antonio Candido, até porque não estamos falando de outra coisa desde o início), que os espasmos "do contra", de fôlego longo ou curto, cedo ou tarde retomam ao regaço da elite senhorial do "a favor". Com o que Roberto concordaria no ato, observando além do mais que as novas clivagens locais operadas pelo capitalismo mundializado geraram um bloco de "capacidades" (no sentido pejorativo que a literatura francesa antiburguesa do século passado emprestava a esta expressão), do qual queira ou não faz parte toda a crista do país organizado e integrado nos novos parâmetros produtivos (câmaras setoriais inclusive, mesmo que momentaneamente postas de escanteio) e que neste complexo das "autoridades" são todos "a favor" de que o Brasil de algum modo se saia bem (desde que outros menos dotados se ferrem), sem excluir deste propósito positivo os que agora correm por fora no pelotão "do contra". O mesmo Roberto recordaria enfim que a oscilação histórica dos intelectuais brasileiros entre o "contra" e o "a favor" em torno do eixo ao que parece incontrastável do conservadorismo nacional se deve à margem absurda e anti-social de liberdade de que gozam nossas classes dominantes por uma espécie de direito histórico aberrante derivado da origem moderna delas, criaturas escravistas do capital comercial, com um pé confortavelmente instalado na iniqüidade colonial ainda viva e outro fincado à larga no pólo internacional e ultra-moderno dessas mesmas relações sociais horrendas (mas agora sou eu que leio assim o que Roberto escreveu com muito mais precaução ao fim de seu depoimento sobre o Seminário Marx da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antonia), sendo aliás esse impressionante leque de opções de que dispõem que lhes permitiu refuncionalizar o principal representante público de nossa cultura sociológica "do contra", apanhado num momento de desatenção em que a conjuntura internacional lhe parecia sugerir que já estava chegando a hora do "a favor", é claro que por incontrolada paixão pelo possível e aversão não menos categórica à síndrome colonial da fracassomania, espécie de atitude "do contra" em estado crônico.

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De minha parte, aproveitaria a ocasião para acrescentar que, se dispomos de fato de um Partido Intelectual de longa tradição e relevantes serviços prestados à Nação, verdade que hoje rachado numa maioria de ajustados e um pequeno número de desajustados, intelligentsia mesmo, na acepção russa do termo, algo como um espírito de contradição organizado sem um momento sequer de descuido afirmativo, isso com certeza jamais conhecemos.

Presidência simulada

FHC? Levemente decorativo, na acepção materialista do termo. Não fui o primeiro a ter esta impressão, mas sou desta opinião. Aliás ela se encontra muito bem exposta numa entrevista recente do professor José Luiz Fiori, e ganharíamos todos em pensar duas vezes a respeito, sobretudo nos setores de esquerda com projetos presidenciais. O juízo não é leviano, nem ele quis dizer que o presidente da República seja zero à esquerda - a rigor a fórmula zero à esquerda exprime muito melhor a situação em que todos nós nos encontramos, à esquerda. Ocorre, para retomar o argumento resumido na referida entrevista, que a margem de manobra política em países periféricos constrangidos (no nosso caso, de muito bom grado) a embarcar no processo de globalização em curso pela via de mão única dos programas de estabilização em marcha forçada, é praticamente nula. Como entramos na era da globalização exclusivamente pela janela financeira, vivemos num mundo de curto prazo cujo comando econômico obedece a uma estratégia global. Assim, cada gesto do Poder Executivo (para não falar no ritual obsoleto que ainda insistimos em chamar eleição) é imediatamente sancionado em primeira e última instâncias pelos "mercados": quem sair da linha é imediatamente punido por retaliações fulminantes contra a sua moeda. Nestas condições, compete ao Poder Executivo vender credibilidade aos analistas financeiros dos paises centrais. Ora, entre as principais garantias está a promessa de que "política" é coisa do passado, salvo a atração turística periódica mencionada há pouco, mas disso a mídia e a ficção da moeda forte se encarregam. De fato ficou muito fácil governar, pois não há mesmo nada a fazer. Daí o faz-de-conta em que vivemos. No mundo repetitivo da estabilização pela estabilização, mesmo que protocolarmente ainda se mantenha o cacoete de falar em crescimento, estabilização cujo lastro é uma nuvem de um trilhão de dólares, pode-se até dizer que o Poder Executivo que não for ostensivamente decorativo como uma tela abstrata elegantemente ornamental deixa de ser funcional para a crença externa na nossa consistência macroeconômica, a salvo de ataques irracionais dos "políticos". Exagero? Má-vontade estilizada? Acontece que nós somos o último milagre latino-americano dos anos 90 a entrar em cena, e como tal "produzido" por uma conjunção aleatória de globalização financeira, recessão mundial e juros baixos no Primeiro Mundo. O elemento decorativo em questão, tendo tudo a ver com essa "produção" mirabolante, simplesmente dá forma visível à sensação difusa de irrealidade, confirmada pela ameaça cotidiana do milagre reverter em poucas horas. Escusado lembrar que noutros tempos essa irrealidade da realidade, ou realidade do irreal, atendia pelo nome de fetichismo da mercadoria. O presidente é decorativo não porque lhe faltem as virtudes intrínsecas de um estadista, mas porque é o resultado milagroso do fetiche da moeda estável.

Não havia portanto na entrevista nenhuma intenção escarninha do desacato pelo desacato. Se a dimensão decorativa comportasse alguma dose de cinismo, que é a forma contemporânea da falsa consciência ilustrada, como um filósofo pop definiu o cínico moderno, seria o caso de imaginar um raciocínio do seguinte teor: de fato, não há mais política que não seja meramente decorativa e não chegará ao topo do Estado quem não investir na aspiração fetichista que atravessa todas as classes sociais sem exceção, pois ninguém consegue conviver com a idéia inimaginável de que uma economia totalmente monetária seja de fato inviável na prática; não só o Estado mas também os empreendimentos privados de toda ordem empenham seu futuro em lucros fictícios; ora, sem futuro não há política a menos que continuemos a chamar pelo velho nome de política a arte de entreter pela mídia a ilusão monetária daqueles que não têm dinheiro, mas votam de quatro em quatro anos. Quem raciocinasse deste modo teria por certo do seu lado a boa consciência da consistência sociológica.

Cinismo à parte, o marco zero da esquerda também tem que ser fincado neste pântano, se ela estiver disposta a sacudir a poeira do cretinismo institucional que a acometeu desde os primeiros tempos da Abertura e a fez embarcar na canoa furada de uma transição de ponta a ponta conservadora. Achávamos que tínhamos um passivo de pensamento político a descontar, quando se devia ao contrário retomar a crítica da política. Levou quem viu, mesmo sem enxergar nada, que a política sempre teve a idade histórica do fetiche econômico predominante: principiou pela fantasmagoria do "contrato" gerada na esfera da circulação e agoniza agora na forma-publicidade da riqueza financeirizada.

O que fazer? Pelo menos dois caminhos me parecem rifados de saída. Refazer a trajetória do marxismo do apogeu social-democrata, dos tempos de Engels ao Estado Social do pós-guerra. Por não ter encarado praticamente a crítica do fetichismo da mercadoria, sob pretexto que seria devaneio utópico, elucubração negativa sem nada de positivo a propor, o marxismo ortodoxo correu pela pista inexistente da política, miragem tanto, mais atraente até hoje quanto incessantemente reforçada pela lembrança épica das conquistas dos trinta anos dourados de capitalismo organizado, o mesmo que renunciando excepcionalmente às suas tendências destrutivas profundas permitiu no centro a montagem do Welfarestate, e na periferia, a nossa industrialização tardia. Tampouco me parece disponível a abstração oposta, a antipolítica dos velhos Novos Movimentos Sociais, alternativos ou não. Como já disse de outro modo a propósito do sucesso de mídia da filosofia, ocorre que os interesses não-materiais configurados ao longo das rebeliões antiprodutivistas dos anos 60 e seguintes já foram devidamente colonizados na forma do consumo cultural de estilos de vida, consumo exponenciado pelo frenesi do capitalismo-cassino, em cujo âmbito a ficção do capital-dinheiro rentista cristaliza no fetiche das "identidades", nas quais se investe como uma aplicação num derivativo como outro qualquer. Se não nos decidirmos a desatar este nó - converter em prática social tangível a crítica da irrealidade fetichista do capitalismo mundializado e finalmente entregue a si mesmo, e largar de vez a intenção piedosa de reorganizá-lo mais uma vez - envelheceremos mais uma geração no campo das artes políticas decorativas. Como lembrado há pouco, dividido em dois blocos, o dos ajustados e o dos desajustados. Estou de acordo em situar à direita os primeiros, e à esquerda os segundos, inclusive por um senso elementar de continuidade histórica e solidariedade social. Mas convenhamos: aliviados pelo justo destampatório, continuamos na mesma, sob o fogo cruzado das críticas de sinal trocado, porém simétricas: o que para uns é inserção dinâmica, para outros é estática, o que para uns é sistêmico, para outros é espúrio, e assim sucessivamente como no mau infinito da velha matemática. Uma coisa pelo menos é certa: acho que já dá para perceber que não se romperá o bonapartismo global dos "mercados" elegendo-se presidentes de esquerda.

Sirva de lição o nosso drama. O Partido Intelectual a que pertenço, mesmo na qualidade de simples casaca-de-ferro, e que não posso mais renegar, preparou-se durante trinta anos e sua fração majoritária acabou chegando lá. E o que se está vendo? Retrospectivamente pelo menos, já que seria ocioso profetizar, de tanto sermos positivamente "do contra" fomos a rigor colecionando argumentos "a favor" do capitalismo mundializado antes do seu triunfo. Os "mercados" penhorados agradecem a grata surpresa de tão fina apoteose intelectual, com a qual sinceramente jamais esperaram contar.

Fernando Haddad e Jorge Almeida são doutorandos em filosofia pela USP

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