Nacional

Pesquisa sobre o perfil psicológico dos militantes políticos no Rio foi feita pelo Centro de Estudos de Pessoal do Exército

Um aspecto das práticas "psi", nos anos 70, no Brasil, importante de ser estudado, é a participação direta de alguns de seus profissionais no aparato repressivo da ditadura militar brasileira.

Não pretendo aqui fazer uma história do envolvimento direto de alguns profissionais "psi" com a repressão. Esta história ainda está para ser escrita assim como a de diversos outros profissionais - médicos legistas, advogados etc. - que respaldaram teórica e tecnicamente o terrorismo de Estado no Brasil com suas práticas e saberes. Os recentes casos Amilcar Lobo, Leão Cabernite, Ernesto La Porta e Ricardo Agnese Fayad mostram muito bem esta situação e fornecem subsídios para esta história.1

Entretanto, acredito que, como uma forma de resgate da memória brasileira, algo deva ser apontado. Há um exemplo significativo a ser lembrado: uma pesquisa, praticamente desconhecida, sobre o "perfil psicológico" de militantes políticos presos no Rio de Janeiro, no início dos anos 70, que contou com a participação direta de alguns psicólogos que trabalhavam, na época, no Centro de Estados de Pessoal do Exército, localizado no Forte do Leme, no Rio de Janeiro.

Sobre este ponto, são importantes alguns comentários iniciais. De um modo geral, os psicólogos que faziam parte do Centro de Estudos de Pessoal do Exército, eram - em muitos casos - militares que, nos anos 50, haviam feito nas Forças Armadas o chamado "Curso de Classificação de Pessoal" que, a partir de disposição legal posterior, outorgou a todos o diploma de psicólogo. Após a criação do cargo de psicólogo e a regulamentação da profissão, em 1962, todos os militares que fizeram este curso - que, na maioria dos casos, não chegava a um ano de duração - foram reconhecidos oficialmente como psicólogos.

Nos anos 70, muitos deles trabalhavam no Centro de Estudos de Pessoal do Exército oferecendo Cursos de Especialização em Psicologia para o pessoal da Forças Armadas, contando também com psicólogos e estagiários civis que atuavam, em uma série de outras atividades, no Forte do Leme.

A "contribuição" técnica de muitos desses psicólogos ao aparato de repressão durante os anos de terrorismo de Estado foi clara, daí a maioria se negar a falar sobre o assunto nos dias de hoje.

Era pensamento corrente na época, dentro dos organismos de repressão, que havia duas categorias de presos políticos: os "recuperáveis" e os "irrecuperáveis". Na Vila Militar, no Rio de Janeiro - onde muitos estavam presos no final dos anos 60 e inicio dos 70 -, ocorria esta separação.

A primeira tese - a do preso "recuperável" - difundida pela mídia e por alguns setores militares, nos anos 60, prendia-se à figura do jovem estudante de esquerda como "inocente útil" do "terrorismo internacional". Uma das autoridades que mais defendia isto era o chefe de Estado Maior do Exército, General Antonio Carlos da Silva Murici2.Este personagem, em várias entrevistas à grande imprensa, destacava: " ... O terrorismo se abastece nos meios escolares do país; a tônica é arregimentar jovens a partir do curso secundário; um sistema de coerção garante a lealdade inicial do militante; a clandestinidade é promíscua e tirânica: os rapazes subversivos são instruídos a desviarem as moças do lar; a responsabilidade é dos pais (...); a segurança começa pela noção dos deveres individuais e se firma nos valores morais e espirituais."3.

A família e a subversão

No Brasil dos anos 60 e 70, duas categorias foram muito disseminadas: a do subversivo e a do drogado, ligadas à juventude da época. Eram apresentadas com conotações de grande periculosidade e violência, visto representarem uma ameaça política à ordem vigente; deveriam, portanto, ser identificadas e controladas. Tais categorias vinham acompanhadas de outros adjetivos: criminoso, traidor, ateu etc; o que trazia fortes implicações morais4.

Para as subjetividades hegemônicas, tanto o subversivo quanto o drogado apresentavam problemas psicológicos graves e sérios, visto principalmente suas atitudes em relação ao trabalho e à família5.

O que estava subjacente a estas duas categorias e, portanto, um dispositivo produzido no sentido de enfraquecer todo e qualquer movimento de resistência que pudesse forjar processos de singularização6, era a produção de uma outra subjetividade: a "crise" da família, a sua "desestruturação". Se seus filhos, fundamentalmente os de classe média e média alta, estavam se tornando "subversivos" ou "hippies", algo estava errado. Havia naquele momento, grande preocupação com a família: falava-se de sua importância como mantenedora de uma sociedade saudável, em que o controle e a disciplina estavam presentes e ela, a família, deveria cooperar nisto. Principalmente nas camadas médias urbanas vinha sendo vendido, desde há muito, a importância dos projetos de ascensão social, o que se tornava um valor básico para elas. Assim, esses filhos "desviantes" e "diferentes" eram produzidos pelos problemas que essas famílias passavam.

O privado, o familiar, tornaram-se o refúgio contra os terrores da sociedade, negando-se o que acontece fora e voltando-se para o que acontece dentro de si, de sua família.

Portanto, a militância política, principalmente nas classes médias urbanas, naquela época, passou a ser vista de forma extremamente negativa. Fortaleceu-se a crença de que os interesses pessoais e familiares devem estar acima de quaisquer outros e que não se pode, em hipótese alguma, abrir mão deles.

O perfil psicológico do "terrorista" brasileiro

Muito convencido de que a "mente vence a guerra revolucionária"7, Murici um dos porta-vozes do regime militar, afirmava que "não há presos políticos, mas criminosos terroristas presos" e, ainda em 1969, fez a primeira de uma série de pesquisas com presos políticos.

A primeira foi realizada no Rio de Janeiro e tinha o objetivo de levantar, dentre o pessoal preso na época, o nível de escolaridade e as causas que os levaram para a luta política.

Seus resultados mostraram que "de 260 estudantes interrogados no Rio, 80% pertenciam ao primeiro ano universitário, 15% ao segundo e 5% aos demais. Uma análise do fenômeno, feita pelo mesmo órgão (um órgão de segurança não revelado), apontou como causas essenciais do aliciamento: 1) desajustes; 2) descaso dos pais pelos problemas da mocidade (e outros)..."8

Uma segunda pesquisa feita no início de 1970, em nível nacional, também por solicitação de General Murici, em um total de cerca de 500 presos políticos - detidos em diferentes dependências do Exército -, levantava seus níveis social e de escolaridade. Afirmava o próprio general: "A análise feita permitiu a seguinte observação: 1) 56% eram estudantes ou pessoas que há pouco tempo haviam deixado a área estudantil. Sua proporção era de 33% e 23%, respectivamente; 2) a média das idades dos presos atrás referidos era de 23 anos; 3) desses detidos, 20% eram mulheres, (...) sendo interessante observar que no Rio de Janeiro o número delas atingia 26%, enquanto que no Nordeste seu número chegava a 11% e, no Sul, quase não havia mulheres envolvidas na trama terrorista - seu número não chegava a 2%. Esses dados mostram como realmente é grande o esforço subversivo terrorista na área estudantil brasileira, particularmente nos grandes centros. De outro lado, que o número de mulheres aliciadas é maior nas áreas mais politizadas do Brasil do ponto de vista ideológico.

Outros dados interessantes levantados mostram que, naquela ocasião, apenas 3% eram militares reformados ou cassados, e 4% a 5% de operários não especializados, de nível primário. Subversivos presos naquela ocasião e provindos de atividades rurais eram apenas 4%, quase todos detidos no Paraná. Camponês do Nordeste havia apenas um. Os demais 32% dos presos eram constituídos por pessoas de condições sociais diversas, nunca, porém, de analfabetos ou mal-alfabetizados, nem de pessoas de condição miserável ou de poucos recursos. Isso demonstra que a maioria dos que ingressam no terrorismo ou na subversão ideológica é constituída por pessoas pertencentes às classes A e B, melhor dotadas financeiramente..."9.

Estas duas pesquisas, que mostram a preocupação dos governos militares em conhecer melhor quem eram os chamados "inimigos da Pátria" e como era a juventude de classe média que entrava para a clandestinidade e/ou luta armada, serviram de base para a terceira pesquisa - a que nos interessa mais diretamente -, chamada "perfil psicológico do terrorista brasileiro". Nesta, houve colaboração direta dos psicólogos militares e civis ligados ao Centro de Estudos de Pessoal do Exército.

As grandes questões, dentro das subjetividades hegemônicas fortalecidas na época, eram: por que os filhos da classe média, da pequena burguesia, que tinham tudo para ascender socialmente e tornarem-se, inclusive, ideólogos do capitalismo, estavam indo para o caminho da contestação a este sistema? Por que negavam suas origens de classe? As causas não estariam vinculadas à "crise" da família moderna? Não seriam esses "terroristas" jovens "desajustados emocionalmente", com famílias "desestruturadas"?

Para poder provar essas hipóteses, que os altos escalões da repressão, há muito, vinham anunciando através da mídia, no segundo semestre de 1970, foi realizada, exclusivamente no Rio de Janeiro, uma terceira pesquisa entre 44 presos políticos. Visando levantar o "perfil psicológico" desses militantes políticos, esta pesquisa constou de duas partes. Na primeira, um extenso questionário com cerca de cinco folhas datilografadas continha perguntas para respostas dissertativas e de múltipla escolha sobre a infância, a adolescência e o relacionamento familiar. Uma anamnese em que, dentre outras coisas, se perguntava: nome, idade, sexo, filiação, grau de instrução; como foi feita a escolha da profissão; como se envolveu em política (por algum namorado, na faculdade etc); se teve muitos(as) namorados(as); se teve experiências homossexuais na infância e adolescência; se já utilizou algum tipo de droga; como é seu temperamento; como é a situação familiar (seus pais moram juntos; por que se separaram; se dão bem ou brigam na frente dos filhos; qual a pessoa de sua família mais importante etc); qual a relação com os irmãos e se há algum envolvido em política; se mora com os pais ou por que saiu de casa; se é casado, se tem filhos; o que pensa fazer após a libertação etc.

Sobre esta primeira parte, a análise feita pelos oficiais e profissionais "psi" envolvidos mostrou a tabulação do quadro ao lado a quatro perguntas contidas na anamnese.

QUADRO1
Situação da família:
Pais separados 06
Carência de afeto na família 04
Problemas de família 03
Família normal 01
Não responderam 30
QUADRO 2
Ocasião em que Ingressaram na subversão:
Após sua formatura 02
Na faculdade 24
Na entrada da faculdade 05
No 2º cicio secundário 09
Após o curso secundário 02
Não responderam 02
QUADRO 3
Forma ou razão por que foram aliciados:
Por envolvimento progressivo 26
Por ligações afetuosas com
elementos da esquerda
(todas moças)
04
Por estudos e reflexões pessoais 08
Por necessidade de prestígio 01
Induzido por colegas 01
Não responderam 04
QUADRO 4
Que pensam fazer após a libertação:
Voltar à faculdade 03
Voltar à vida normal 14
Retomar à família (moças) 02
Não vêem como possível sua reintegração 01
Ir para fora do país 01
Continuar a luta revolucionária 03
Não responderam 19

Murici, "analisando" as respostas dadas a estes quatro itens, afirmava que: "Pelas respostas obtidas verifica-se logo a importância do lar na vida dos jovens e apoio que lhes proporciona. Foi grande a falta de respostas ao item do Quadro 1, mas se quase um terço dos consulados não estavam ajustados à vida familiar, o resultado é por demais significativo para ser desprezado. Não há dúvidas de que é no lar que se encontra a melhor trincheira contra os desvios da moral e da conduta social"10

Utilizando os dados obtidos na primeira pesquisa, em 1969 - levantamento do nível de escolaridade entre os presos políticos no Rio -, os órgãos de repressão e os profissionais "psi", que com eles trabalhavam, chegaram à "brilhante" conclusão que: " ... É nos períodos que imediatamente antecedem e sucedem a entrada na universidade que se verifica a maioria dos aliciamentos. O final do curso secundário, o período de preparo para o vestibular, o início do curso universitário, talvez por atingirem um período em que o jovem procura firmar sua personalidade, deseja mostrar que já é adulto em suas idéias e capaz de decidir por si mesmo, é a fase em que mais facilmente se deixa conduzir, embora julgue, muitas vezes, que está conduzindo."11

A segunda parte desta pesquisa sobre o "perfil psicológico do terrorista brasileiro" foi a aplicação de uma bateria de testes de aptidões, de interesses, de nível mental (Raven) e de personalidade (Rosenzweig e Rorschach). Um psicodiagnóstico foi, portanto, construído e toda testagem foi realizada por "oficial com curso de especialização no Centro de Estudos de Pessoal do Exército (e) os resultados foram examinados por psicólogos civis..."12, afirmava o General Murici, que a seguir os relatava: "Dos 44 examinados, 32 (73%) foram considerados como indivíduos com dificuldades de relacionamento, ou escasso interesse humano e social, ou ainda de difícil comunicação humana; em suma, como pessoas 'difíceis'; como imaturas foram assim considerados 23, dos quais cerca da metade estavam incluídos no grupo de difícil relacionamento humano; 18 foram incluídos no grupo de desajustados, sendo que 3/4 dos mesmos pertenciam ao grupo dos 'difíceis'; praticamente todos os inseguros (8) e os instáveis (7) estavam no primeiro grupo.

Isso mostra que especial atenção e tratamento devem ser dados aos jovens que apresentam um relacionamento difícil com seus companheiros. Tudo indica que sofrem de complexos que os levam, por esse ou aquele motivo, a atitudes de luta contra a sociedade e o meio em que vivem (...); serão sempre desajustados e, assim,- criaturas infelizes."13

Patologizava-se, assim, aqueles que se lançavam na resistência contra a ditadura militar: "São doentes e é preciso tratá-los", afirmava-se.

A aplicação dos testes foi precedida por uma entrevista individual, em que eram feitas perguntas muito semelhantes às da anamnese anteriormente respondida.

Pelo levantamento que fiz, esta pesquisa foi realizada em vários quartéis da Vila Militar, no DOI-Codi e no HCE, todos no Rio de Janeiro, onde estavam, na época, os presos políticos. Muitos se negaram a responder à anamnese e foram novamente transferidos para o DOI-Codi (RJ), como forma de intimidação, indo, alguns, diretamente para a tortura. Isto foi confirmado pelos ex-presos políticos entrevistados14, embora, em fala na grande imprensa, na época, o General Murici afirmasse que os 44 presos políticos "voluntariamente" se submeteram aos testes e ao questionário propostos.

Nas entrevistas realizadas antes da testagem, alguns "entrevistadores" diziam para os ex-presos políticos que se tratava de tentar levantar a sua "curva da vida". Todos de forma fria, impessoal e distante, iniciavam as entrevistas afirmando que não trabalhavam ali, que tudo o que o preso dissesse seria mantido em sigilo, que não seria divulgado. Além disso, procuravam saber como haviam se sentido durante a tortura, como tinham reagido, se aquelas punições tinham valido para alguma coisa e se estavam arrependidos pelo que fizeram.

Em pesquisa realizada no Arquivo do Dops, em 1993, o Grupo Tortura Nunca Mais (RJ) encontrou documento do 1º Exército, com carimbo de "confidencial"15, no qual a equipe de psicólogos encaminha os resultados conclusivos sobre o estudo e interpretação do teste de Rorschach aplicado a um grupo de terroristas, solicitado pelo 1º Exército16. Após indicarem as fontes bibliográficas utilizadas apontam os "Traços Dominantes do Grupo", afirmando que: "Os terroristas, em sua maioria, revelaram:

- estabilidade emocional e afetiva precária;

- dificuldades de adaptação e ajustamento;

- atitude oposicionista, voltando sua agressividade ora contra o meio, ora contra o próprio ego;

- escasso interesse humano e social (atitude anti-social);

- pensamento rígido e índice de estereotipia elevado."17

Já na época da referida pesquisa, alguns presos políticos que a ela foram submetidos concluíram que se tratava de um levantamento psicológico. Por serem filhos da pequena burguesia, muitos torturadores colocavam para eles que não entendiam porque tinham se tornado "terroristas". Esta preocupação, segundo alguns, talvez viesse após o Congresso da UNE em Ibiúna, em 1968, onde, dos estudantes presos, cerca de 99% eram de classe média (filhos de senadores, advogados, médicos e altos oficiais das Forças Armadas). No ano seguinte, realizou-se a primeira pesquisa já mencionada, quando se fez no Rio de Janeiro um levantamento sobre o nível de escolaridade dos presos políticos.

Estas pesquisas mostram não somente uma necessidade por parte da repressão de conhecer melhor quem eram os militantes políticos, como eram aqueles que estavam sendo combatidos, mas também - bem de acordo com as subjetividades hegemônicas na época - fortalecer a crença, nas sociedade em geral e nas famílias de classe média, em especial, de que seus filhos eram "desajustados", "desequilibrados" emocional e socialmente e, portanto, "doentes", necessitando de tratamento. Em suma, elas - as famílias - eram as principais responsáveis pelos transtornos que esses jovens traziam para a nação que queria "se desenvolver em ordem e paz", afirmavam os slogans da época.

Isto claramente era colocado por alguns comandantes de quartéis onde estavam os presos políticos. A impressão que tinham, alguns desses presos, era de que os resultados do "perfil psicológico" haviam sido levados ao conhecimento dos responsáveis pelas unidades onde estavam detidos para que pudessem melhor "conhecer" e "lidar" com eles.

Outras participações "psi"

Além da participação nesta pesquisa chamada "perfil psicológico do terrorista brasileiro", houve numerosos outros casos de atuação "psi" que respaldaram o regime de terror que se implantou no país.

Os principais casos ligaram-se aos laudos psiquiátricos fornecidos a inúmeros presos políticos.

Há, por exemplo, casos como os de Ivan A. Seixas - preso com 16 anos, em São Paulo, em 1971 - e César Q. Benjamin - preso com 15 anos, em Salvador, em 1971 - que, justamente por serem menores, foram encaminhados a psiquiatras para avaliações e exames de sanidade mental18 após terem sido barbaramente torturados. Há, ainda, o caso de Regina Maria Toscano Pereira que, ao ser colocada em liberdade condicional, em 1973, após ser torturada, o laudo psiquiátrico recomendava um tratamento de base analítica.

Muitos outros casos ocorreram; ver, por exemplo, os vários laudos psiquiátricos citados no livro Brasil Nunca Mais, que mostram nitidamente - em alguns casos - as violentas marcas psíquicas que as torturas deixaram em alguns presos políticos. Nestes laudos, os psiquiatras da Forças Armadas relatavam estas marcas e alguns até faziam referências às torturas sofridas pelos militantes. Em outros casos, relatavam os estados psíquicos "confusionais" e/ou "paranóides", "reações primitivas de repressão e conversão histérica" etc. de alguns presos políticos, sem haver qualquer referência às torturas infligidas a eles; aqui, a omissão e a conivência foram totais.

Poderiam muitos argumentar - e isto tem ocorrido ultimamente, quando algumas entidades de Direitos Humanos denunciam alguns profissionais que colaboraram com o aparato de repressão - que estes "psi" estavam apenas cumprindo ordens ou desenvolvendo um trabalho como qualquer outro. Muitos, inclusive, eram oficiais das Forças Armadas e a eles eram encaminhados presos políticos para que fizessem uma avaliação psiquiátrica. Estavam, portanto, apenas executando seu trabalho.

Entretanto, sabemos que se não existissem profissionais - quaisquer que sejam eles, em qualquer área - que, voluntariamente, deram seu respaldo teórico ao aparato de repressão, este não teria funcionado tão bem quanto funcionou. Em todas as ditaduras latino-americanas e durante o nazismo, o regime de força só conseguiu se sustentar por tanto tempo porque existiram profissionais que, utilizando seus saberes, deram respaldo ao terrorismo de Estado em diferentes setores e áreas. Por isto, a máquina pode se manter azeitada e funcionando. Como não acredito no mito da neutralidade científica, e no de qualquer outro tipo de neutralidade, há que apontar que tais profissionais foram cúmplices do regime de terror e, no mínimo, coniventes com a máquina mortífera que se abateu sobre o país, principalmente após 1968.

A pesquisa chamada "perfil psicológico do terrorista brasileiro" - apesar de todo o referencial psicométrico dominante na época - utilizava alguns conceitos e explicações psicanalíticos. Vide os testes projetivos de personalidade aplicados: Rosenzweig e Rorschach. Estes testes nasceram em solo teórico da psicanálise, e as interpretações de seus resultados baseiam-se amplamente em idéias e teorias psicanalíticas.

Não querendo entrar aqui em detalhes sobre os testes utilizados na pesquisa mencionada, nem analisar criticamente o seu uso em geral, apesar de considerá-los como poderosos instrumentos de poder no sentido de marginalizar, rotular, estigmatizar e normatizar - o que fugiria ao assunto deste artigo - há, entretanto, alguns aspectos a serem levantados.

O principal prende-se à situação em que a referida testagem e laudos de "sanidade mental" foram realizados: pessoas presas, algumas isoladas em celas solitárias, outras sofrendo grotescas e constantes torturas físicas e psicológicas, sendo em suma, violentadas no cotidiano da prisão. E ainda se esperavam "performances" - como se diz no vocabulário psicométrico - e respostas "estruturadas", "orientadas" e "equilibradas". E profissionais "psi" colaborando com este quadro dantesco, fornecendo seu aval teórico/ técnico para justificar que aqueles que resistiam à sanha assassina de um Estado de terror eram desequilibrados, desestruturados, doentes.

Estes são, portanto, situações analisadoras19 e exemplos extremos de como algumas práticas "psi", nos anos 70, no Brasil, colaboraram efetivamente para a manutenção e o fortalecimento das subjetividades hegemônicas que sustentaram, em muitos aspectos, o estado de terror que se abateu sobre nosso país. Entretanto, algumas outras práticas "psi", de outras formas, continuaram produzindo e fortalecendo estas mesmas subjetividades, modelos e dispositivos, como mostro no decorrer de minha Tese de Doutorado.

Cecília Coimbra é psicóloga, professora adjunta na Universidade Federal Fluminense, doutora em Psicologia pela USP e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais - RJ.