Nacional

Com aquele jeito tranqüilo, leve, solidário, o seu Perseu era o nosso mais vivido e ilustrado militante.

Minha geração entrou na Universidade no início dos anos 70. A UNE já não existia, tinha sido duramente reprimida pela ditadura militar. As entidades estudantis estavam banidas. Na USP, os centros acadêmicos resistiam, isolados, sem espaço nas faculdades sobreviviam precariamente.

Em 1973 a repressão assassinou Alexandre Vanucchi Leme. Os estudantes da USP decretaram luto, suspendemos as festividades do trote e ajudamos a organizar uma missa na Catedral da Sé, extremamente policiada, mas que representou um marco na luta contra a tortura e as prisões políticas em São Paulo.

Começamos a organizar grupos de estudantes clandestinos nas escolas para reconstruir o movimento estudantil. Estes pequenos grupos cumpriram um papel decisivo na retomada das lutas estudantis e na reorganização das entidades. Tínhamos um grupo, autodenominado Grupão que coordenava os diversos grupos das escolas, tirava atividades conjuntas e iniciava um processo de discussão para reorganizar o DCE-Livre da USP. Começavam a se organizar também outras tendências estudantis.

Nós nos reuníamos todo domingo à noite. As reuniões avançavam pela madrugada. Debatíamos a conjuntura, o avanço da luta de resistência, a relação entre o movimento estudantil e a luta de massa, a construção de um partido de esquerda e sonhávamos com a revolução.

Quase todas as reuniões eram na garagem de uma velha casa na Lapa, na casa da Laís Abramo, uma jovem estudante do curso de Ciências Sociais, filha de Perseu e Zilah. Tínhamos rígidas normas de segurança e abrimos contatos com várias organizações de esquerda que começavam a se reorganizar em São Paulo.

Foi neste ambiente de resistência à ditadura, impulsionado pelos belos sonhos dourados de uma geração que teve que ajudar a reconstruir a sociedade civil e conquistar as liberdades democráticas que conheci o velho Perseu Abramo.

Ele era editor de educação na Folha de S. Paulo. Seus editoriais eram pauta obrigatória em nossas discussões. Era na coluna dele que de alguma forma nossos sonhos clandestinos começavam a ganhar a luz do dia. Ele, sempre ao lado do sorriso doce de D. Zilah, era o consultor nas horas difíceis. O paciente socialista que ficava horas ouvindo nossas frágeis certezas e inumeráveis dúvidas. Com aquele jeito tranqüilo, leve, solidário, o seu Perseu era o nosso mais vivido e ilustrado militante.

Ele foi uma referência fundamental na nossa luta, fez a Folha de S.Paulo abrir espaço para as incipientes lutas estudantis.

Dois anos depois, éramos manchetes em todos os jornais. Paralisávamos a USP, em 1975, para protestar contra o assassinato de Vladimir Herzog. O ato ecumênico na Catedral da Sé, mais um com o respaldo do cardeal D. Paulo Evaristo Arns, não reuniu apenas estudantes, foi uma ampla e poderosa resposta da sociedade civil.

Em 1976, reorganizávamos o DCE-Livre da USP Alexandre Vanucchi Leme. Nossa tendência política agora era pública, a Refazendo. Tínhamos a Liberdade e Luta, Caminhando, Organizar a Luta, Alternativa e mais algumas. Vencemos as primeiras eleições para o DCE por larga margem de votos. A Universidade de São Paulo saía na frente, mas a luta estudantil avançava em todo o Brasil.

O processo de reorganização das UEEs e da União Nacional dos Estudantes crescia. A repressão invadiu a PUC em setembro de 1977 para impedir o Encontro para a reconstrução da UNE. Estudantes foram queimadas, salas de aula depredadas e centenas de lideranças presas. Mas a vitória política era nossa. A luta pela Anistia também ganhava força e seu Perseu sempre à frente.

Escrevemos uma página da luta estudantil e democrática e em cada linha tivemos o toque solidário de Perseu Abramo.

O mesmo Perseu que ajudou a fundar e dirigir o Partido dos Trabalhadores durante todos estes anos. Sempre tranqüilo, firme e comprometido.

Perseu Abramo foi uma referência fundamental para minha geração, um exemplo de dignidade política, coerência ideológica, humildade militante e consistência socialista. Valeu Perseu, tem um pouco de você em cada das lutas que travamos e muito em cada um de nós.

Aloizio Mercadante é economista formado pela Universidade de São Paulo.