Política

Me atrevo a concluir que a maior grandeza de Perseu está em seus méritos serem resultado do fazer coletivo

"Foi lição tua chorar pouco,
Para sofrer mais.
Aprendi-a demasiadamente."

Cecília Meireles, Mar Absoluto e Outros Poemas

Conheci Perseu em algum ponto do itinerário que eu fazia, diariamente, da Praça da República, onde cursava a seção de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, até a Praça Ramos, onde tomava meu ônibus.

Provavelmente na Rua Marconi que, povoada de livrarias e barzinhos, era o epicentro do nosso pequeno universo. Vivíamos, naquele final da década de 40, com o fim da II Grande Guerra e da censura imposta pela ditadura Vargas, uma época de efervescência cultural e política. Era o momento da reorganização dos partidos políticos e dos sindicatos mas era também o da criação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, o da chegada dos filmes do realismo italiano, o da criação dos grupos universitários de teatro que precederam o Teatro Brasileiro de Comédia. Nas artes plásticas, ao lado de talentos já consagrados como Lívio Abramo e Bruno Giorgi, surgiam as figuras novas de Aldemir Martins, Marcelo Grassmann e outros. Toda essa agitação desembocava na rua Marconi, que Perseu descreve assim, numa crônica escrita em 1960: "Rua de médicos, dentistas e advogados, era também rua de jornalistas, poetas menores e maiores e de cineastas... Os dentistas, médicos e advogados eram os sedentários: tinham consultórios, escritórios, sala de espera, telefone e secretária. Os outros eram os nômades: não pagavam aluguel mas moravam na Marconi, mais do que os primeiros".

Perseu se incluía entre esses moradores. Aos 19 anos, era certamente o rapazinho inteligente a que se referiu Antonio Candido, na linda e comovente carta que me escreveu. Tinha outras características notáveis: pagão, num mundo em que os mais empedernidos ateus eram batizados; rebelde, por convicção; socialista e anarquista por tradição familiar, e esteta, acima de tudo, como ele se autodenominava. Eram qualidades irresistíveis para uma moça como eu, que lutava para se libertar das convenções familiares e da educação católica que havia recebido.

Depois de algumas escaramuças preliminares, nosso namoro consolidou-se na velha sede do Partido Socialista Brasileiro, quando ambos trabalhávamos na campanha do líder gráfico João da Costa Pimenta. Costumo dizer, de brincadeira, é claro, que, depois de cumprir a tarefa histórica de nos aproximar, o PSB nada mais tinha a fazer e acabou morrendo.

Em 1952, apesar de todas as dificuldades (emprego precário, estudos não-concluídos) resolvemos nos casar.

Pelo horóscopo chinês, nosso casamento não poderia durar. A serpente (Perseu), que é o símbolo da sabedoria e da prudência, não poderia conviver com o tigre (Zilah), impetuoso e imprevisível, que tanto pode se tornar um herói quanto um bandido.

Contrariando essa previsão, rindo da sabedoria oriental, vivemos juntos mais de 43 anos. Essa trajetória está retratada, com autenticidade e beleza que me comoveram profundamente, nos depoimentos dos companheiros queridos, que, nos momentos mais significativos da nossa vida, estavam conosco, movidos pelas mesmas convicções, partilhando nossas esperanças e temores, nossas certezas e nossas angústias, nossa revolta, nossas dores, mas também, a alegria de viver o bom combate a que se refere João Ubaldo.

Não tenho muito a acrescentar aos registros feitos nesta revista, mas quero acentuar uma das características mais importantes da personalidade do Perseu: sua inesgotável capacidade de aprender com as pessoas, com as situações, com os acontecimentos. Ele era um professor, sem dúvida, e muitos receberam seus ensinamentos, mas estava sempre aberto para absorver tudo o que os seus colaboradores, alunos, familiares, amigos pudessem lhe dar. Acho que isso foi o que tornou tão fácil para ele formar as equipes que tornaram possíveis suas grandes realizações no campo jornalístico: a criação, no Estadão, de uma chefia de reportagem capaz de realizar uma cobertura como a da inauguração de Brasília e, na Folha, a criação da editoria de Educação que, nos terríveis anos 70, era o alimento diário dos estudantes e professores que travavam suas batalhas contra a arbitrariedade da ditadura.

Brasilia e Bahia não foram para ele (para nós, eu diria melhor) meros acidentes geográficos ou meras aventuras acadêmicas. Foram duas experiências, tão ricas em todos os sentidos, que nos marcaram para o resto da vida. De cada uma delas trouxemos uma filha e nossa integração foi tão grande, que meu filho de 8 anos dizia: "Sou paulista de nasceção, brasiliense de adoção e baiano de coração".

Em Brasília tivemos a oportunidade de conviver com colegas de todos os cantos do Brasil. Naquela mistura de sotaques mineiros, gaúchos, baianos etc. tivemos nitidamente a visão do Brasil por inteiro e nos envergonhamos do nosso provincianismo paulista. E havia aqueles alunos tão especiais, muitos deles já pais e mães de família, que não tinham tido oportunidade de estudar nos seus estados de origem e que se integraram com entusiasmo na tarefa de desenvolver conosco o projeto de uma Universidade revolucionária e voltada para os interesses do país. Desses alunos tão excepcionais guardamos uma lição de lealdade e coragem: no inquérito policial-militar que se instaurou para apurar subversão na UnB, os inquisidores não conseguiram obter dos alunos qualquer depoimento que comprometesse os professores.

A Bahia foi nosso refúgio, quando expulsos de Brasília, aturdidos e amargurados não conseguimos sobreviver em São Paulo. Lá começamos a reviver graças ao encanto irresistível da terra, mas principalmente à redescoberta, nas pessoas dos nossos colegas de trabalho, alunos e colaboradores, de gente que não se entregava, que resistia, que mantinha as convicções que a ditadura teimava em esmagar. Quando a repressão atingiu de maneira cruel (prisão, tortura, exílio) os nossos jovens colaboradores, e nos obrigou a voltar para São Paulo, a sensação foi a de fim do mundo. Ao sofrimento e remorso que nos causava saber a que tipo de tratamento estavam sendo submetidos esses jovens, que poderiam ser nossos filhos, somava-se a insegurança de como proceder. Como exercer nosso papel de pais e educadores sem transmitir a sensação de amargura e impotência que nos marcava, como traçar os limites entre conivência e cautela, entre a necessidade de afirmação dos nossos valores e a prudência necessária para sobreviver?

E aí tivemos nosso grande aprendizado: Quem nos salvou dessa depressão, quem nos ajudou a resolver esse dilema foram nossos filhos e os amigos dos nossos filhos: a valorosa turma da garagem a que se refere Aloizio Mercadante. Eles nos abriram os caminhos, e foi na esteira do movimento estudantil dos anos 70, atuando no inicio apenas como apoio (Perseu na editoria de Educação, eu integrando uma Comissão de Mães de Universitários em defesa dos direitos humanos) que retomamos nossa atividade política. Daí para a campanha da Anistia, daí para o apoio à greve dos metalúrgicos, daí para a integração no PT, foi um caminho natural.

Nessa trajetória encontramos outros mestres. Na campanha da Anistia, os familiares dos presos, desaparecidos e mortos, como Ana Dias, Clarice Herzog, Egle e José Vannuchi, Clara Charf, Suzana Lisboa e tantos outros nos ensinaram as grandes lição de transformar suas tragédias pessoais numa luta geral pelos direitos humanos. Lula e seus companheiros do ABC foram, para nossa alegria, os artífices que transformaram numa possibilidade concreta a idéia da formação de um partido de trabalhadores, que, ainda como utopia, era defendida nos círculos intelectuais que compunham majoritariamente o PSB da nossa juventude (Perseu dizia, sempre fazendo blague, que a massa do PSB era um motoqueiro da Light que, por essa razão era, com seu boné de condutor, figura indispensável em todos os comícios.

Assim, reconhecendo os méritos das realizações do Perseu, que foram exaltados em todos os depoimentos aqui feitos, me atrevo a concluir que a sua maior grandeza está em que elas não são o resultado de um trabalho individual e, sim, do fazer coletivo.

Por esta razão, quero completar o pensamento de Ricardo Kotscho. Vejo Perseu longe dos holofotes mas também longe dos pedestais. No meio do povo, em que devemos estar incluídos todos nós, os seus companheiros mais próximos. Para superar a dor da perda temos que procurá-lo não apenas nos documentos que escreveu ou nas lições que nos deixou, mas dentro de nós mesmos, tentando preservar ou recuperar o que cada um de nós ajudou-o a construir: o sentimento de ética, da supremacia dos valores coletivos sobre os interesses individuais, o compromisso com os interesses reais do povo brasileiro. Sendo enfim fiéis a nós mesmos, como o recomendava Shakespeare.

Zilah Wendel Abramo, viúva de Perseu Abramo.

S. Paulo, 9 de março de 96

Cara, Zilah:

Infelizmente, fui avisado do triste fato sem tempo para ir ao enterro. Venho por meio desta apresentar a você e aos seus os mais sinceros pêsames, de Gilda e meus.
Como sabe, conhecia e estimava o Perseu desde o tempo em que era um rapazinho inteligente, ativo e extremamente agradável, de uma grande fidelidade aos seus ideiais, de uma integridade que a vida só confirmou.
Sempre admirei muito os militantes socialistas dedicados às duras tarefas partidárias, coisa que só pratiquei de maneira intermitente e marginal. Nesse sentido, sempre admirei a constância com que ele militou, desde a remota esquerda democrática inicial até às lideranças do PT.
Um exemplo que deve ser motivo de orgulho para vocês.
Cara Zilah, receba o mais afetivo abraço do

Antonio Candido