Nacional

todo o universo da mídia esteve sempre presente e atuante nos acontecimentos que marcaram notadamente os últimos quinze anos

As decisões políticas e econômicas tomadas nos últimos meses, e que exigiram o envolvimento de todos os cidadãos e instituições, estão sendo decisivas para definir a verdadeira vocação política do país mesmo que seja a de republiqueta condenada a ciclotímicos períodos de autoritarismo, tecnicismo e demagogia. Mas o otimismo nos leva a pelo menos considerar opções mais dignas, como a de se dar início à construção de um novo Estado, numa arquitetura amparada em alicerces democráticos e iluminada pelos refletores da cidadania.

O governo FHC encerra, potencialmente, vários ciclos. Historicamente, marca o fim da transição democrática, urdida em gabinetes militares sob o maquiavelismo de Golbery do Couto e Silva. No âmbito macroeconômico, esgota o modelo nacional-desenvolvimentista e seus surtos de estatizações que, para desespero de neoliberais em evidência, fizeram o Brasil crescer neste século 4,5% ao ano, em média. Nunca tivemos um projeto tão factível de inserção no Primeiro Mundo quanto o Plano Real e seu mentor, o Consenso de Washington. Quanto à erradicação das misérias sociais, é mais prudente simular um cassino e dar início às apostas.

Qualquer que seja o desdobramento dessa agenda, é pouco provável que a imprensa não exerça um papel determinante. Já não vemos a fúria opinativa que marcou o jornalismo brasileiro até o golpe de 64. Mas fatos políticos recentes não permitem dúvidas: desde a Campanha pelas Diretas até a CPI do Orçamento, os meios de comunicação têm participado - muitas vezes como protagonistas - dos grandes feitos cívicos da Nação. Por se outorgar a função de porta-voz da sociedade e não abrir mão do poder de traçar perspectivas, os grandes jornais e revistas, as emissoras de TV, as rádios, enfim, todo o universo da mídia esteve sempre presente e atuante nos acontecimentos que marcaram notadamente os últimos quinze anos. Por exemplo, teria sido inusitado e surpreendente se durante as eleições gerais de 1994 a imprensa tivesse agido com isenção, independência e imparcialidade, embora sejam esses os compromissos propagados em manuais de redação e campanhas publicitárias.

Não se trata de paranóia ou preconceito. Simplesmente, esse tem sido o comportamento universal dos meios de comunicação. No Brasil não tem sido diferente desde que seu primeiro periódico, o Correio Braziliense, redigido e impresso em Londres por Hipólito da Costa, diagramou linhas hostis à monarquia. Hoje em dia, o que difere veículos, muito mais do que opções ideológicas ou de mercado, são técnicas de engajamento, métodos de persuasão, recursos de dissimulação, competência editorial e outras formas elaboradas para que determinada visão de mundo prevaleça sobre as demais.

O que torna a imprensa brasileira peculiar é, sob um ângulo alegórico, a sua macunaímica falta de caráter, aliada a um certo pudor em assumir perversidades, talvez reflexo da cordialidade mítica que vem nos empurrando para o abismo da barbárie. Para não ficar em generalizações, basta lembrar da esquizofrenia que, num primeiro momento, levou os mais poderosos grupos de comunicação do país a apoiar o então candidato Fernando Collor de Mello, em 1989.

Escoteiros e tropa de choque

Ainda está para ser escrita a história dos bastidores do segundo turno daquela eleição, quando foi orquestrada pelas elites do país, com a conivência da imprensa, uma das mais sórdidas campanhas de difamação e manipulação, que não abdicou sequer do uso de depoimentos comprados ou montagens fotográficas envolvendo sequestradores com o PT e seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva.

Nenhum diretor de redação explicou até hoje por que foi omitida dos noticiários a existência, conhecida por todos os grandes veículos, do filho ilegítimo de Collor. Se divulgado esse deslize moral - a princípio irrelevante, estivesse aquela disputa eleitoral calcada no debate e na civilidade - teria repercussão significativa e era informação prioritária, tendo em vista o sensacionalismo, ampliado pela mídia, em torno da filha natural e depositária de pensão que Lula tivera com a enfermeira Miriam Cordeiro. Embora grave, esse não foi o principal indício de que leitores, espectadores e ouvintes foram premeditadamente solapados em seu direito à informação.

Se houver um mínimo de memória nas vítimas daquele estelionato eleitoral, não se esquecerá do impacto causado pela antológica edição que a Rede Globo fez do último debate entre os postulantes ao cargo de presidente da República; ou das manchetes tendenciosas que infestaram jornais; ou dos editoriais que disseminaram pânico e preconceito; ou da atuação discriminatória de jornalistas como Paulo Francis, Sebastião Nery e Ferreira Netto, que montaram palanques travestidos de jornalismo.

É correto antepor a isso a igualmente criticável atitude de outros profissionais da informação que, em serviço, ostentaram broches do PT e tiveram a petulância de, em frente à casa de Collor, cantar o jingle de Lula. Porém, seria comparar o poder de devastação de um grupo de escoteiros com a militância ecológica de uma tropa de choque nazista.

Independentemente da eficaz aliança entre mídia e establishment - e aqui se retorna à atávica falta de caráter brasileira - bastaram dois anos para que esses mesmos grupos começassem a se engalfinhar no festival de arbitrariedade, perversão e cinismo que culminou no impeachment do presidente da República que ajudaram a eleger. Chegou um momento em que as mais primárias regras de isenção foram grotescamente descartadas em nome da pena de morte política decretada pela mídia. Não houve mal-estar ou estorvo nem mesmo em relacionar Collor e seu tesoureiro, Paulo César Farias, com tráfico de drogas nunca comprovado.

É indiscutível a legitimidade da cassação dos direitos políticos de Fernando Collor. Questionáveis são os métodos que a imprensa adota quando estão em jogo interesses econômicos e ideológicos. Esse engajamento é mais visível ao se observar a cobertura reservada ao Partido dos Trabalhadores e seus dirigentes. É evidente que existem outros políticos, instituições e temas inscritos no índex da grande imprensa brasileira. Se a personificação do mal para a Rede Globo é Leonel Brizola, o mesmo não acontece com o grupo Estado, mais preocupado em exorcizar Orestes Quércia. Idiossincrasias à parte, os grandes grupos de comunicação sustentam unânime antipatia ao PT. Quaisquer momentos históricos com participação expressiva de petistas proporcionam ilustrações contundentes de como se movimentam as peças da informação no tabuleiro da cobertura política.

Não é difícil entender as motivações que levam grandes veículos a nutrir desprezo pelo ideário petista: para eles, o PT pronuncia um discurso messiânico, é engolfado por crises internas, escora a plataforma estatizante, cultua decisões autoritárias e fomenta o corporativismo. Inimigos de classe, é fácil delimitar os campos antagônicos que separam socialistas de empresários (no caso, os de comunicação.) Por mais irritante que seja, a democracia garante legitimidade para que qualquer cidadão, normalmente poderoso, ache indigestos ingredientes como distribuição de renda, reforma agrária, imposto progressivo, valorização do trabalho, fim da especulação financeira e outros quitutes da culinária socialista.

A mão direita e a sinistra

O que se destaca é a metódica operação de indispor a opinião pública com a atuação do PT. A mais displicente comparação entre o tratamento oferecido pelas primeiras páginas aos prefeitos Jânio Quadros ou Paulo Maluf e aquele destinado à prefeita Luiza Erundina leva à conclusão de que a administração petista era pródiga em manchetes intolerantes, quando não devastadoras. Merece registro um primor de má-fé e antijornalismo praticado pela Folha de S.Paulo, logo no início do governo Maluf: em quatro de março de 1993, o caderno São Paulo, ao noticiar o fim da coleta seletiva de lixo implantada por Erundina, estampou em manchete: "PT fazia marketing com lixo, afirma secretário".

O julgamento, proferido em entrevista pelo secretário de Serviços e Obras da gestão malufista, Hygino Baptiston, não poderia ser, jamais, manchete e lead. O fato relevante era a interrupção de um projeto de indiscutível importância, deficitário mas de valor social e ecológico. Faltou investigar, porque a coleta seletiva não é opção deste ou daquele prefeito, mas lei municipal que todos devem cumprir. Para atenuar ou eliminar o aspecto negativo da intervenção administrativa, esta sim a verdadeira notícia, o jornal não teve pruridos em elevar ao nível de manchete uma declaração retórica, desprovida de objetividade e claramente, política com inevitável prejuízo para o PT.

Outros exemplos poderiam ser elencados: a imprensa apenas registrou quando Maluf doou dinheiro para a realização do congresso da União Municipal dos Estudantes Secundaristas no Anhembi, em 1993, mas foi vestal e implacável quando o governo petista facilitou o aluguel do Palácio das Convenções para a CUT, e quando o Distrito Federal, governado pelo PT, patrocinou o congresso da UNE; verdadeiras campanhas foram promovidas contra o IPTU progressivo petista, implantado sem nenhuma indignação dos comunicólogos antes por Jânio Quadros, depois por Paulo Maluf (embutido em descontos e isenções, com a agravante de ser progressivo para os pobres) e finalmente, considerado legal pelo Supremo Tribunal Federal, em votação divulgada sem alarde pela imprensa, em junho do ano passado; os folclóricos buracos da Erundina, não se sabe por quê mais insuportáveis e jornalísticos do que os de outras administrações; o escândalo Lubeca, fartamente denunciado em primeiras páginas e nem mesmo parcimoniosamente desmentido em rodapés quando desmontado pela Justiça, embora esse descaso com retratações seja um comportamento patológico dos meios de comunicação.

Essas demonstrações de parcialidade se tornam erros singelos deparadas com a cobertura dispensada ao assassinato do líder sindical Oswaldo Cruz Júnior, ocorrido em seis de janeiro de 1994. Aqui vale um esforço de atenção: conscientes do potencial bombástico que a repercussão desse crime teria, nenhum dos grandes veículos se privou de cometer sistemáticas e planejadas manipulação, omissão e desinformação com o intuito indisfarçado de comprometer as imagens da CUT, do PT e, por extensão, de Lula, até então líder isolado em todas as pesquisas de intenção de voto para presidente. A Rede Globo não titubeou em classificar o assassinato - sem nenhuma conotação política, segundo conclusão do inquérito - como queima de arquivo promovida pela CUT. O Estado de S.Paulo chegou a registrar em sua primeira página: "Delegado diz que laudo prova a execução de Cruz". A Folha de S.Paulo, tímida, preferiu "desdenhar revelações importantes da rotina das investigações, para azar do leitor", nas palavras de sua ombudsman à época, Junia Nogueira de Sá. Seu sucessor Marcelo Leite, por sinal, não cansou de alertar que o jornal fernandoenricou durante as eleições.

Remontava-se, cinco anos depois, a arena em que foram sacrificados a ética jornalística e os ideais democráticos. No altar de imolação que pode tornar-se a imprensa, a morte do sindicalista foi apenas um dos muitos rituais previamente anunciados. No maior dos atentados, também no início da sucessão presidencial, se tentou envolver o PT com a máfia italiana, a partir de insinuações levianas de uma desprezível figura do Judiciário fluminense. Diante dessas sabotagens, não faltam os que se apressam em defender o jornalismo crítico e independente ou a liberdade de imprensa. Também são numerosos os que acusam de esquerdismo enxergar a mão direita no bolso do colete. Não há por quê estranhar: muitos são pagos para isso.

Só que insistir em camuflar opções ideológicas com a fantasia puída da imparcialidade, com o disfarce indigente da isenção, é perpetuar um baile de máscaras que há muito deveria ter acabado. Seria interessante experimentar outras posturas, como andar com elegância, em marcha firme, trajando uniformes de batalha, mesmo que seja apenas para que aliados possam reconhecer-sé e inimigos tenham condições de mirar melhor. Como numa guerra, em que regras simples como essa são respeitadas.

O real e o imaginário

O fato é que as eleições de 1994 terminaram sem que se assistisse à chacina de 89. O cadáver em praça pública foi o mesmo, mas o linchamento foi mais higiênico. Graças ao Plano Real, o serviço sujo não precisou ser feito. Com um pouco de morbidez, no entanto, é possível imaginar o que seria um hipotético segundo turno entre FHC e Lula, quando baterias preventivas teriam de ser acionadas. O povo talvez tenha sido pragmaticamente sábio ao eleger um candidato que soube passar a imagem de competente e, de lambuja, evitar um massacre desnecessário, porque previsível e redundante.

O Plano Real e a cobertura reservada a todo o seu processo de implantação foi um espetáculo de otimismo. O sonho da estabilidade econômica cegou a opinião pública, que preferiu ignorar que as medidas foram lançadas às pressas, de forma eleitoreira, queimando etapas técnicas a ponto de perder um de seus idealizadores, André Lara Resende, descontente com os rumos casuísticos traçados já no final de 1993. Tomou-se impatriótico protestar contra o uso político da reforma monetária, ou alertar que estava sendo acionada uma bomba-relógio cambial (que, como vimos, explodiu no colo do criador).

A euforia se justificava com o nocaute da inflação. A platéia aplaudiu espontaneamente, como sempre faz quando do lançamento de novos milagres econômicos, expediente comum em culturas de religiosidade sincrética, como a nossa. Havendo credulidade popular, beatifica-se alguém e instaura-se a canonização.

Promoveu-se, como no início do Plano Cruzado, um cordão de isolamento visando proteger as medidas governamentais de quaisquer críticas, inclusive as responsáveis. Aproveitando o caráter de utilidade pública na divulgação do Real, os donos da mídia esfregavam as mãos a cada nova boa notícia, amplamente veiculada. Ninguém estranhou o sartre tapuia montado em jegue e mostrando devoção ao Padre Cícero, apesar de ateu. Nem a tragédia bufa vivida pelo ministro Rubens Ricúpero, anjo caído da gênesis fernandista, esmoreceu o clima de ressurreição cívica. Carpe diem.

Inesquecível, todos os jornais estampando em suas primeiras páginas que o preço da cesta básica havia caído retumbantes 0,6% após ter subido anônimos 12% desde a adoção da URV, na engenhosa antecâmara da nova moeda. Pelo que se vê, não foi preciso muito esforço para convencer a maioria sobre qual era o melhor candidato. Elegeu-se a esperança e quem se fez passar por ela, e ponto.

À parte a legitimidade da vitória governista, não há o que justifique, sob o ponto de vista ético, o adesismo psicótico da imprensa. Sacramentada a posse do novo presidente, foi constrangedor acompanhar as manchetes ufanistas já ensaiadas durante a campanha eleitoral. O Estado de S.Paulo, com sua típica incontinência, perdeu a compostura. Basta acompanhar alguns de seus títulos principais, com grifos pertinentes, no primeiro mês do governo FHC:

Dia 1º - "FH assume com apoio quase unânime"

Dia 2 - "FH promete faxina no serviço público"

Dia 3 - "Serra cortará gastos em R$ 3 bilhões"

Dia 10 - "Dezembro teve menor inflação desde 73"

Dia 14 - "Malan promete facilitar o crédito"

Dia 16 - "Real elevou lucros em até 1000%"

Dia 20 - "FH acha 15º (salário, dos deputados) um escândalo"

Dia 22 - "Mercado de trabalho volta a crescer"

Dia 23 - "Governo quer leiloar rádios e TVs"

Dia 24 - "FH tenta manter reajuste do mínimo"

Dia 25 - "FH decide vetar mínimo de R$ 100"

Dia 27 - "Governo quer eliminar monopólios"

Dia 29 - "Lula critica mas tem esperança em FH"

Dia 31 - "Fipe-Estadão mostra inflação zero".

Promete, quer, acha, verbos no futuro do presente, um presidente que num dia pretende reajustar o salário mínimo e no seguinte o veta, austeridade pública, lucros estratosféricos, inimigos capitulando, inflação zero fechando ao som de trombetas o primeiro mês do novo governo. Uma lição de objetividade, imparcialidade e isenção jornalística para Chateaubriand nenhum botar defeito. Isto tudo em plena hecatombe do México e seu plano econômico elogiadíssimo pelo FMI, Estados Unidos e FHC.

Essa benevolência permanece em todos os veículos, com graus distintos de subserviência. E usual a mídia bajular o poder, afinal, faz parte dele e tem tarefas a cumprir. Daria para ficar quieto se o contracheque disso tudo não fosse debitado da conta da cidadania, deficitária no momento. Tem sido comum o desfalque. Durante esses primeiros meses de governo FHC, pulularam exemplos.

Os guardiões e o templo

O colunista Jânio de Freitas, pregando no deserto, emprestou sua idoneidade quando denunciou, em abril de 1995, na Folha de S.Paulo:

"Se fosse na segunda fase do governo Collor ou na primeira do governo Itamar, as manchetes e as TVs estariam fazendo um escândalo daqueles. E escândalo mais do que justificado: o uso que o governo está dando ao Fundo Social de Emergência é escandalosamente imoral e grosseiramente inconstitucional. Apesar disso, onde o fernandismo e o ministro José Serra têm mais prestígio do que os fatos, ou do que todos os leitores, o noticiário não inclui nem nota oficial do governo admitindo a prática injustificável".

O jornalista se referia às verbas do FSE desviadas para pagamento de despesas administrativas, passagens aéreas, decoração dos palácios presidenciais, adaptação de videocassetes, manutenção de relógio, assinatura de publicações e viagens ministeriais. Foi uma voz solitária, assim como a de seu colega Luís Nassif criticando com veemência a recessiva política de juros, ou a de Élio Gáspari, do Estado de S.Paulo, desmascarando o desmanche do FGTS proposto pelo Ministério do Trabalho e o obsceno acordo entre a Fiesp e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo para eliminar encargos trabalhistas. Nesses casos, o jornalismo opinativo agiu como guardião dos fatos, porque a informação que chegava à sociedade era outra, destorcida, omissa, favorável ao governo.

Entre os acontecimentos marcantes desde a posse de FHC, e que ilustram o comprometimento da mídia, esteve a greve dos petroleiros. O noticiário sobre a paralisação, que se estendeu durante trinta dias e causou indiscutíveis transtornos à população, por pouco não se confundiu com propaganda oficial. Houvesse sobriedade, os grevistas seriam dispersados por seus próprios erros. Ao contrário, foram sendo empurrados para o confronto por um brutal pacto de agressão. Na iminência de serem humilhados - como foram - radicalizaram. Tratados como baderneiros, corporativistas e insensíveis, só foram resgatados meses depois, quando a Organização Internacional do Trabalho divulgou moção de protesto contra o comportamento antidemocrático do governo brasileiro durante a paralisação da categoria.

A sucessão de bombardeios contra a categoria, a histeria ideológica, a demora em expor os argumentos do sindicato, a disseminação do pânico, o absurdo de se creditar falta de álcool a um movimento de petroleiros e, vergonhosamente, o silêncio diante do autoritarismo - que trouxe de volta tanques e discursos arrogantes - toda essa operação, sustentada em bloco, dá bem a medida da promíscua, vitoriosa e implacável relação entre Poder e Jornalismo.

Tem sido cínica a cobertura da questão agrária. Líderes de sem-terras são tratados como marginais, com raras manifestações de solidariedade ou respeito. Ainda agora, temos uma revisão constitucional em andamento. O governo tem obtido seguidas vitórias em questões estratégicas como monopólios, concessões de serviços públicos e definição de empresa nacional. Mudanças nos direitos sociais e trabalhistas estão sendo articuladas à luz do dia, quando o mais adequado seria nas trevas da conspiração. A reforma tributária continua uma incógnita. Assiste-se à tradicional barganha de votos por cargos e favores políticos. O processo de privatizações ainda não tem regras claras. E a imprensa, por enquanto, nem sequer esboçou disposição em cumprir seu papel de estimular o debate, revelar interesses em jogo, esclarecer, contextualizar, analisar criticamente e, humildemente, informar.

Continuamos reféns de uma mídia oligopolizada, à mercê do coronelato que detém os meios de comunicação há décadas e nunca enfrentou as misérias econômicas e humanas deste país, se é que não as perpetuam. Virou lugar comum rogar pela democratização da informação. É uma reivindicação básica, primordial. Quando a notícia é vendida por cartéis, quem perde é seu consumidor. No Brasil, a versão oficial da realidade tem sido erguida sobre escombros de mentiras. Para agravar, no mundo, a comunicação é cada vez mais um espetáculo cibernético, com um olho na bilheteria e outro no patrocinador.

Na ausência de normas universais, entrevadas as utopias, em pleno declínio do Império da Razão, que já vai tarde, as verdades passam a ser virtuais. Resta-nos testemunhar o auge do neoliberalismo e seu ideário globalizante, sua apologia da desigualdade, sua idolatria pelo mercado forte e Estado fraco, que tão adequados são aos interesses da mídia. Quer queiramos ou não, é o que está em jogo: seja nas quedas da Bastilha ou do Muro de Berlim, nas Revoluções Industrial ou Soviética, a imprensa sempre está lá, no olho do furacão, no centro do labirinto, no meio do redemoinho. É um edifício sólido, imponente. Fortaleza, abriga os valores de um tempo. Invadida, resiste com bravura. Ocupada, torna-se palácio de seu novo senhor.

Marco Antonio Gomes de Araújo é jornalista, professor de Jornalismo Opinativo da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (SP).