Política

"O Partido dos Trabalhadores representa uma das experiências mais originais que tiveram lugar na esquerda, não apenas no Brasil mas em toda a América Latina" - Jorge Castañeda

A derrocada do socialismo real inaugura um novo ciclo para as esquerdas e todos aqueles que permanecem fiéis à luta pela conquista de uma sociedade mais justa e menos desigual. Soçobrou um paradigma e, mais do que isso, faliram as concepções que construíram uma experiência histórica de proporções catastróficas, porque prescindiram de um compromisso visceral com a democracia (tomada como um valor meio e fim) e equivocadamente desenvolveram um programa estatista para a ordem econômica. Trata-se, antes de tudo, de examinar criticamente a trajetória das esquerdas para lançar os olhos sobre o futuro, tanto porque, à parte nuanças e ênfases, ali residia nosso crisol, quanto porque, se é verdade que o mundo capitalista transformou-se fantasticamente, as desigualdades nele presentes continuam ofendendo a dignidade humana.

Compartilho a visão de Norberto Bobbio, segundo a qual a característica distintiva do pensamento e dos movimentos de esquerda é a luta por uma progressiva igualização social, razão pela qual "a esquerda não só não completou seu caminho como mal o começou". O enunciado é contemporâneo na mesma proporção em que se propagam injustiças e misérias pelo mundo, dos subúrbios de Nova Iorque e Londres, passando por Chiapas ou Porto Príncipe, até chegar às pradarias africanas ou às periferias de São Paulo ou Rio de Janeiro. Na nova ordem mundial pós-Guerra Fria, a instabilidade e a explosividade social já não são privilégios do Terceiro Mundo, elas interagem e caracterizam os grandes aglomerados urbanos dos países mais desenvolvidos e também são potencializadas por novos/velhos fenômenos como a xenofobia, o racismo, a intolerância...

É urgente, pois, recriar e reinventar nossa luta por igualdade social nos tempos atuais, tão marcados pela velocidade das transformações (e da informação), pela revolução tecnológica e, sobretudo, pela permanência de enormes bolsões de pobreza e miséria e pelo não-acesso aos bens e serviços produzidos. O paradoxo deste novo tempo é nosso velho conhecido: responde pelo nome de exclusão.

Podemos admitir que a igualdade plena e absoluta é um valor abstrato, contudo a igualdade só pode se afirmar naquilo que apresenta potencialmente de singular: igualdade de acesso aos equipamentos e serviços públicos e sociais, igualdade de oportunidades, igualdade de acesso às novas tecnologias, igualdade na assistência do estado, igualdade de direitos políticos... Essa perspectiva generosa não integra o repertório e o ideário dos liberistas e neoliberais e tal diferença atualiza o ideal inclusivo de esquerda. Trata-se, portanto, de lhe fornecer materialidade político programática.

Em nosso país, cujo desafio igualizador é improrrogável, as diferenças são ainda mais latentes: crianças perambulando pelas ruas em completo desamparo, trabalhadores assassinados porque cometeram a ofensa de reivindicar um pedaço de terra para nela produzir seu sustento, aposentados aglomerados em filas à busca de migalhas, desempregados à beira da marginalidade como refúgio último de sobrevivência, mendigos se alimentando de restos hospitalares... mas o Brasil insiste em não conhecer o Brasil. É preciso dirigir nossas atenções e energias para esse país mergulhado na miséria, cujos sobreviventes desconhecem carteira de trabalho, noções elementares de assistência e muito menos um sindicato. É para esse país que as esquerdas precisam dirigir prioritariamente suas atenções e energias.

A esperança lançada por ocasião da última campanha presidencial foi rapidamente esquecida sob pretexto de uma modernização que não tem ido além da arrogância de seus protagonistas e do aprofundamento do desespero. O social que ecoa da retórica palaciana desperta complacência incomum da mídia, mas não resiste ao tempo e, como toda palavra oca se esfumaça no ar.

Além disso, as transformações derivadas do modelo nacional de desenvolvimento operado em décadas passadas trouxeram formidável processo de urbanização do país, tendo como conseqüência destacada o aumento dos principais problemas cotidianos no cenário urbano (transportes, educação, saúde, saneamento, habitação etc.), cujas respostas vêm sistematicamente excluindo os de baixo. Por esta razão, o poder local se apresenta como tema privilegiado para as esquerdas, especialmente porque as mudanças nele processadas fornecem o conteúdo, o tipo e a abrangência das transformações desejadas em outras escalas, além de incidirem concretamente sobre esse mesmo cotidiano de cidadãos que desconhecem o significado e o exercício da cidadania.

Nessa perspectiva, é oportuníssima a conclusão do cientista político mexicano Jorge Castañeda, para o qual "o ponto de encontro da recente democratização da América Latina e o florescimento quase simultâneo dos movimentos populares foi a democracia municipal". Em outras palavras, também no Brasil a democratização trouxe consigo novos atores até então ignorados e excluídos dos processos políticos decisórios, os quais emergiram principalmente das lutas relacionadas à qualidade de vida urbana.

Como desaguadouro emblemático desse movimento, destaco a experiência inaugurada pela geração de prefeitos petistas eleita em 1988, a qual tive a honra de integrar. Dentre as muitas mudanças processadas, promovemos:

1) reformas tributárias que, não penalizando os de baixo, foram decisivas para recapacitar os municípios para o atendimento de crescentes e emergenciais demandas sociais;

2) políticas públicas que enfatizaram a qualidade e a universalidade de serviços sociais essenciais, cuja eficácia foi reconhecida pela sociedade civil e por organismos internacionais;

3) métodos democráticos e participativos de gestão, através dos quais os processos decisórios puderam ser compartilhados, como atesta o extraordinário exemplo do Orçamento Participativo; 4) uma separação precisa e contundente entre o interesse público e os diversos particularismos, sem que isso comprometesse, por exemplo, importantes parcerias com o capital privado ou o atendimento de reivindicações justas.

Políticas e iniciativas dessa natureza permitem modificações substanciais no ordenamento urbano, (re)criando o conceito de cidadania, através do qual os cidadãos, de fato, exercem seu direito à cidade. Trata-se de um movimento consistente em direção à modificação dos costumes políticos, otimização dos parcos recursos públicos e potencialização da qualidade de vida. Esse conjunto de intervenções representa uma verdadeira reforma do Estado, no sentido de torná-lo mais eficaz, transparente e democrático, sob amplo controle da sociedade civil.

Essa plataforma vem sendo desenvolvida, amadurecida, aperfeiçoada e pode (e deve) servir de base para os programas das esquerdas e do PT nas eleições deste ano, quer para sedimentar nossa vocação governativa, quer para interferir positivamente no dramático quadro social do país, particularmente como se manifesta nas cidades.

Assim sendo, o comportamento e o programa petistas para as eleições municipais devem se pautar, entre outros itens, por:

-Implementar e aperfeiçoar dispositivos de participação e controle social que, envolvendo múltiplos atores, assegurem o mais amplo exercício democrático, tanto nas matérias gerais da cidade, quanto na formulação e implementação de políticas públicas setoriais, fortalecendo aquilo que vem sendo chamado de esfera pública não estatal;

- Priorizar a adoção de obras e serviços de amplitude social, como por exemplo um Programa de Renda Mínima, que enfrentem a exclusão a que está submetida a maioria do povo e que contribua para inseri-la nos mercados de trabalho e de consumo;

- Dar sequência a procedimentos gerenciais que assegurem maior qualidade aos serviços públicos com base nos princípios da autonomia municipal e da descentralização, de modo a potencializar a fiscalização e o controle sobre a esfera pública;

- Racionalizar os gastos, com transparência e austeridade, e ampliar as receitas municipais, com base no critério da progressividade, de maneira a coibir a evasão fiscal, instalar uma política tributária justa e não sacrificar os de baixo;

- Adotar um modelo integrado de planejamento que tome como referência um desenvolvimento sustentável, para preservação dos recursos naturais e garantia da qualidade de vida.

Mudanças de tal envergadura não se concretizarão sem alianças expressivas, o que remete à necessidade de amplas parcerias para sua consecução. E urgente, pois, que o Partido dos Trabalhadores empreenda esforços no sentido de integrar e constituir um amplo arco político-social de forças de esquerda e centro-esquerda que, reunindo as posições não-integradas e/ou críticas à atual hegemonia político-econômica excludente de inspiração neoliberal, seja capaz de a ela se contrapor de maneira afirmativa.

A política de alianças definida no último Encontro Nacional do PT visa reeditar basicamente o campo construído por ocasião da última disputa presidencial. É essencialmente correta a preocupação de se definir limites e alcances para nossas parcerias, identificando outros atores com os quais guardamos afinidades, no entanto, é preciso ter presente duas questões. Por um lado que alianças eleitorais e de governo não podem ser determinadas por critérios ideológicos, isto é, devem se pautar por aproximações políticas entre atores diferentes por definição, sobretudo em nosso país, cuja tradição partidária é tênue. O problema se agudiza, por exemplo, quando examinamos a situação de pequenas e médias cidades, muitas vezes engessadas por macro-resoluções que objetivamente não se aplicam à realidade local. Cumpre, portanto, flexibilizar o arco político-partidário com base em parâmetros mais gerais, no programa vislumbrado, cujos elementos já destaquei, e particularmente na situação concreta vivida pelos municípios, de modo a favorecer o desempenho eleitoral petista.

Por outro lado, em muitos casos a política operada estará direcionada para a conquista de prefeituras. Noutros, em situações nas quais o partido é mais frágil, tratar-se-á de pensar políticas diferenciadas que impliquem, por exemplo, na conquista de vagas no Legislativo. Em resumo, a especificidade deve ser combinada ao geral, isto é, deve-se admitir a possibilidade de composições e táticas eleitorais diferenciadas.

É inadiável demonstrar à sociedade brasileira a possibilidade de edificarmos governos democráticos e comprometidos com a inclusão social. Esse caminho - datado pelas eleições municipais de 96 - abre a oportunidade de gestação de um novo bloco político e de uma nova hegemonia. Esse é o desafio presente das esquerdas, para o qual o PT tem papel insubstituível.

José Machado é deputado federal pelo PT-SP. Economista e professor universitário, foi prefeito de Piracicaba-SP (1989-92).