Nacional

A propósito da IV Conferência Mundial da Mulher em Pequim

Entre os avanços obtidos pelo movimento de mulheres na década de 90 está, sobretudo, sua capacidade de formulação e articulação de demandas e reivindicações comuns que produzem impacto. Capacidade germinada no âmbito das práticas e discursos feministas de diversos matizes que vêm penetrando distintos setores da vida social, mas que têm encontrado em geral por parte da mídia um tratamento caricatural e estigmatizante.

Setores da imprensa frequentemente apressam-se em afirmar que o feminismo já foi superado, como se esse inconcluso projeto político para atingir a igualdade social das mulheres não implicasse transformar profundamente relações sociais de gênero (Scott, 1990). O feminismo assim apresentado parece supérfluo, como modismo ultrapassado.

É também corriqueira a atitude de lançar sob os holofotes somente discórdias, desavenças, polêmicas, que são comuns a todos os segmentos sociais, mas em se tratando de mulheres, e ainda mais feministas, aparecem como centro da abordagem jornalística, obscurecendo o conteúdo programático das lutas comuns a centenas de milhões de mulheres em todos os cantos do mundo.

A Conferência Mundial da ONU para o balanço da década 85-95, realizada na China em setembro de 1995 teve uma cobertura e uma publicização superficial: holofotes - que não desmerecem sua postura - para o discurso de Hillary Clinton; problemas com a estrutura organizativa oferecida pelo governo chinês; um suposto cerceamento das atividades das participantes do Fórum paralelo das ONGs etc.

É inegavelmente emocionante esse encontro multicultural de cerca de 30 mil mulheres de todo o mundo que participaram do Fórum Paralelo, com suas semelhanças e diferenças.

Seria necessário, no entanto, mesmo sendo cedo para um balanço definitivo do evento, tornar público o que está nas entrelinhas da Plataforma de Ação da Conferência oficial, bem como de sua Declaração final, assinadas inclusive pelo governo brasileiro. E o que está nas entrelinhas é que as mulheres têm dado uma contribuição fundamental às lutas sociais e políticas contemporâneas demonstrando que as desigualdades sociais e a exclusão estão fortemente marcadas simultaneamente por traços de classe, raça/etnia e gênero.

Importantes teóricos sociais com diversas trajetórias intelectuais têm reconhecido o papel e a contribuição que os questionamentos feministas trouxeram para uma crítica do projeto da modernidade, incompleto para alguns, em superação para outros, em direção ao pós-moderno (Giddens, 91; Touraine, 95; Souza Santos, 95), questionamentos esses inspiradores em grande medida da transição paradigmática das análises sociais contemporâneas.

Para mencionar alguns aspectos da crítica feminista podemos selecionar a insistência no papel da subjetividade e dos sujeitos na história e no discurso da ciência; a articulação da igualdade e da diferença na constituição da identidade social; a imbricação de várias dimensões fundamentais da vida social como raça/etnia, classe e gênero, a ser levada em conta em qualquer projeto de emancipação humana. Merece destaque também a ampliação do ideário de transformação da esquerda, pois as formas de opressão incluem as embutidas nas relações sociais entre gêneros (as hoje hierarquizadas e assimétricas de valorização do masculino e subordinação do feminino nos diversos espaços sociais) e a contribuição de homens e mulheres para uma relação não instrumental com a natureza rumo a um desenvolvimento sustentável etc.

O sociólogo Anthony Giddens chamou atenção para a atuação do movimento de mulheres, apontando para redefinições do papel da esquerda no mundo contemporâneo: "Como deve ser uma teoria crítica sem garantias no final do século XX? Ela deve ser sensível sociologicamente, (...) ela deve criar modelos da sociedade boa que não se limitem nem à esfera do Estado-nação nem somente a uma das dimensões institucionais da modernidade e ela deve reconhecer que a política emancipatória tem que estar vinculada à política da vida, ou a uma política de auto-realização. Por política emancipatória refiro-me a engajamentos radicais voltados para a liberação das desigualdades ou servidão. (...) A política da vida se refere a engajamentos radicais que procuram incrementar as possibilidades de uma vida realizada e satisfatória para todos, e para a qual não existem outros.

É característico da modernidade, como tentei mostrar, que a auto-realização torna-se fundamental para a auto-identidade. Uma ética do pessoal é uma característica básica da política da vida, da mesma forma que as idéias mais estabelecidas de justiça e igualdade o são para a política emancipatória. O movimento feminista foi pioneiro na tentativa de vincular estas preocupações entre si" (Giddens, 1991).

O movimento de mulheres mostrou que a desigualdade entre homens e mulheres é uma construção social, enterrando para sempre uma naturalização da subordinação das mulheres como destino biologicamente dado. Esse movimento teórico e prático contribuiu ao emergir na agenda política mundial com energias emancipatórias que articulam novos direitos, alargando as fronteiras de lutas e questionando os processos de desigualdade e exclusão do desenvolvimento capitalista recente.

A experiência das mulheres

As mulheres estão no centro do furacão do capitalismo neoliberal. Lutam para conquistar suas (nossas) demandas num momento de crise das proteções sociais, de escassez dos fundos públicos, agravadas por governos neoliberais que se identificam com a tese do Estado Mínimo, apresentando a inexorabilidade do processo capitalista atual submetido à racionalidade puramente econômica dos mercados altamente oligopolizados.

O subtexto que o movimento de mulheres inscreveu na Plataforma de Ação aponta para desafios fundamentais que dizem respeito à sociedade como um todo, na encruzilhada do século 21, na luta contra o monstro capitalista sem face e que pretende tornar supérfluas todas as instituições: o Estado, os partidos, os sindicatos.

Por isso, todos os atores sociais que não queiram desaparecer de cena devem estar cada vez menos encerrados em sua antiga dinâmica (vertical e fechada) e reconhecer cada vez mais a transversalidade dos espaços de atuação. As mulheres já são mestras em articular redes de solidariedade e ações políticas, tais como a Rede Mundial de Saúde e Direitos Reprodutivos ou Contra a Violência Contra as Mulheres etc., que sem dúvida influenciaram nas resoluções progressistas de Pequim.

Não existe receita de atuação, mas a experiência de transversalidade é decisiva para todos os setores sociais. Abrir-se para a sociedade buscando fôlego e energia para enfrentar o monstro capitalista sem face mostra que a antiga prática de cada setor no seu pedaço não serve mais, sob pena de fortalecer a segmentação social engendrada pelo capitalismo.

Como conseguir eqüidade para as mulheres em tempos de destruição das políticas sociais? As políticas compensatórias dos efeitos perversos do neoliberalismo não são nem de longe políticas públicas com corte de gênero. Não seria o caso de deixar para depois, diriam os dogmáticos, já que nem o, mínimo está garantido?

A experiência vivida pelas mulheres prova o contrário. A feminização da pobreza, que os indicadores sociais põem a nu, é uma justificativa das mais contundentes para as políticas dirigidas às mulheres. Elas estão ficando cada vez mais pobres embora de cada cem horas trabalhadas no mundo, 67 delas o são pelas mulheres que recebem, no entanto, 9% do valor total de salários pagos, segundo a Rede Mundial dos Direitos Reprodutivos.

As mulheres são crescentemente chefes de família (22% em 93 no Brasil) e suas famílias são as mais pobres. Nelas em geral a mulher arca sozinha com a sobrevivência dos seus membros. No Brasil elas já representam 40% da População Economicamente Ativa (PNAD-93/IBGE). Mas para os estudiosos das transformações do trabalho no processo de globalização, o trabalho feminino, dada a precarização e a falta de garantias, torna-se paradoxalmente um paradigma para entender a diversidade deste no capitalismo atual (ver Hirata, 94 e 95). As mulheres sempre estiveram presentes nas formas desreguladas e precárias de trabalho.

O desemprego atual também desincorpora as mulheres, além delas estarem inseridas nos ramos que pior pagam e com menor possibilidade de ascensão. As mulheres são significativas nos setores Público e Bancário que passam por pesados processos de reestruturação.

Como assegurar e sobretudo conquistar direitos nesse contexto social e político? As mulheres que há muito enfrentam o trabalho informal a domicílio já gestam experiências significativas, novas formas de luta e organização. Alice Abreu relata a experiência de uma rede de trabalhadoras a domicílio com sede na Holanda e na Inglaterra que obteve conquistas mínimas para mulheres em diversos países onde esse tipo de trabalho é comum e cujas trabalhadoras não são organizadas por sindicatos (Abreu, 95). As lutas extrapolam o local de trabalho e demonstram a transversalidade das ações.

A plataforma de ação de Pequim, no entanto, não conseguiu aprofundar a questão da exclusão das mulheres em nível mundial, ao não formular mecanismos e identificar recursos que possam desencadear processos de reversão das desigualdades e exclusões que são por elas vivenciadas no contexto do mundo globalizado. Faz parte do desafio da década em curso gestar políticas de acesso das mulheres à distribuição da riqueza e do poder e incrementar sua presença, hoje gritantemente desvantajosa, nos meios de comunicação.

Para além dos direitos formais, foi preciso dizer com todas as letras, por insistência do movimento, que os "direitos das mulheres são direitos humanos", colocação introduzida na Conferência sobre Direitos Humanos em Viena e reafirmada na Declaração de Pequim, para que o combate à violência contra mulheres e meninas ganhasse legitimidade internacional.

Foi um grande avanço da Conferência o reconhecimento da gravidade da violência contra as mulheres, fortalecendo a visão da violência de gênero (Saffioti, 95) em suas diferentes manifestações - seja na violência doméstica; no estupro; na prostituição infantil como um problema da sociedade.

A Conferência de Pequim recomenda que os governos se proponham a "considerar a revisão das leis que contêm medidas punitivas contra as mulheres que realizaram abortos ilegais". Essa postura reforça sua luta para reconhecer o aborto como questão de saúde pública e fenômeno social de grande amplitude que atinge de modo perverso as mulheres de baixa renda nos países em que é realizado clandestinamente. Isso quer sobretudo dizer que ele deve ser visto como um direito sexual e reprodutivo das mulheres, encarado como último recurso para evitar uma gravidez indesejada.

Somos novamente desafiadas a enfrentar essa questão no campo das políticas públicas de saúde, pois a melhor maneira de evitar uma gravidez indesejada continua sendo o acesso real a políticas de contracepção. Como ficam as promessas de implementação do tão elogiado Paism (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher) num momento de desmantelamento do Estado? Como fica a já conhecida precariedade da saúde pública no país, pois o sempre ameaçado SUS (Sistema Único de Saúde) é o pressuposto de qualquer garantia de saúde sexual e reprodutiva para parcela considerável da população?

A dimensão geral das lutas das mulheres toma-se evidente, sua articulação e interdependência parecem cada vez mais claras.

Ao final, a Declaração de Pequim arremata: "Pela presente, nos comprometemos na qualidade de governos, a aplicar a seguinte Plataforma de Ação e a garantir que todas nossas políticas e programas reflitam uma perspectiva de gênero."

Em vez de aceitar a indiferenciação do social, as mulheres querem mostrar todas as faces do processo e seus múltiplos e variados personagens. O que está por trás do acordado em Pequim é um rico e multifacetado sujeito, as mulheres com suas demandas, que não está disposto a tomar suas resoluções como peça de retórica, nem a aceitar a face fluida do capitalismo atual que se disfarça em ausência do poder.

Mostrar cada vez mais a face dos atores sociais é uma lição da radicalidade da luta das mulheres que, na exigência de novos direitos emanados de suas lutas contra a violência, a desigualdade e a exclusão, os colocam na agenda política, no espaço público, como um subtexto que não pode ser apagado. Se levantamos estas lutas não é para que as travemos isoladas, como se fossem específicas, mas para que contaminem todo o tecido social e fortaleçam a contracorrente dos atores que ao insistirem na legitimidade de suas lutas não abrem mão da emancipação social, uma utopia a ser recriada por mulheres e homens na virada do século.

Referências bibliográficas

Saffioti Heleieth e Almeida, Sueli. Violência de gênero. Revinter. Rio de Janeiro, 1995.

Saffioti H. e Vargas, M. (org.) Mulher brasileira é assim. Unicefi Rosa dos Tempos, 1994.

Hirata, Helena. Paradigmes du travail, in Futur Anterieur 16, HS/94, Paris.

Hirata, H. Em torno do conceito de trabalho. Conferência PUC/SP, 1995.

Abreu, Alice. Globalização e desigualdade. Comunicação no Congresso Brasileiro de Sociologia. UFRJ, 1995.

Giddens, A. As conseqüências da modernidade. Unesp. São Paulo, 1991.

Souza Santos, Boaventura. Pela mão de Alice. O social e o político na Pós- Modernidade. Afrontamento, Porto 1994.

Touraine, A. O nascimento do sujeito in Crítica da Modernidade. Vozes. Petrópolis, 1994.

Scott, Joan. Gênero: categoria útil de análise histórica. in Educação e Realidade. Porto Alegre, 1990.

Maria Lúcia Silveira é socióloga, doutoranda da PUC/SP.