Mundo do Trabalho

Mesa-redonda entre pesquisadores debate as transformações nas relações de trabalho no Brasil

Teoria & Debate promoveu uma mesa-redonda sobre as transformações que a reestruturação do capitalismo está provocando nas relações de trabalho. Participaram quatro especialistas na área: Rosa Maria Marques, chefe do Departamento de Economia da PUC-SP; Jorge Mattoso, professor de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit; Ricardo Antunes professor de Sociologia da Unicamp; e Tarcisio Secoli, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. As colocações partiram da avaliação mais geral das mutações do capitalismo contemporâneo e suas implicações sobre a organização do trabalho e da classe trabalhadora. Com o desenrolar do debate, elas foram se deslocando para as visões sobre a relação entre mudança tecnológica e desemprego e depois para os problemas de como enfrentar a ofensiva neoliberal do governo FHC no terreno das relações de trabalho e sindicais. O fim do horizonte do desenvolvimento nacional e do pleno emprego e a realidade infame do desemprego estrutural permanente, desregulamentação, terceirização, flexibilização, precarização, mudanças impostas pelo governo na legislação sobre organização sindical são hoje desafios muito concretos colocados para o PT e o movimento sindical brasileiro. As iniciativas debatidas pelos participantes como resposta a este quadro enfatizam três aspectos: a luta estratégica pela redução da jornada de trabalho; o enraizamento dos sindicatos nas empresas e a organização dos trabalhadores por local de trabalho, combatendo a estruturação de sindicatos por empresas, que não conseguem resistir à sua cooptação pelo patronato; e a defesa de formas estatais de regulação da economia e das relações trabalhistas, que vem sendo eliminadas pelo neoliberalismo. (JCL)

Coordenação: José Corrêa Leite e Flávio Aguiar

Ricardo Antunes - Estamos vivendo um dos momentos mais difíceis no que diz respeito à ação dos trabalhadores e ao sindicalismo, especialmente desde os anos 70, em função do que se tem chamado de crise do padrão taylorista e fordista, do Estado intervencionista keynesiano, da regulação social-democrata. O capitalismo em escala mundial, ao mesmo tempo em que mantém seus pressupostos e fundamentos básicos, tem ensaiado, e em alguns casos avançado, uma nova forma de produzir mercadorias. Dessa nova forma de produzir mercadorias, chamada de acumulação flexível, inspirada no modelo japonês e um pouco em experiências do norte da Itália, EUA e Alemanha, resultaram coisas que vieram para ficar, do ponto de vista da lógica do capital.

Passamos por uma revolução tecnológica, que permite que a concentração de capitais se mantenha e opere a desconcentração do espaço físico. Isto é muito importante para o capital porque se mantém a competitividade intercapitalista, que decorre desta nova revolução tecnológica, e de outro lado - e isso é crucial -, o capital pode se reproduzir de forma ampliada fragmentando a classe trabalhadora no que diz respeito a seu espaço físico.

Esses elementos compõem um todo. As linhas de montagem rígidas do taylorismo e do fordismo agora dão lugar a empresas flexibilizadas, com operários multifuncionais, operários desespecializados, operando em várias dimensões. Incorpora-se força de trabalho nos momentos de expansão; em outros ela é expulsa. Então, mantém-se permanentemente esse exército de subtrabalhadores, de trabalho parcial. Isto pressupõe um conjunto de mudanças tecnológicas e organizacionais. No plano destas últimas, o chamado enxugamento da empresa, a reengenharia, do ponto de vista do capital, necessita da adesão dos trabalhadores; é preciso que a parcela que fica nas empresas abrace esse projeto. Dai que no Japão, no pós-guerra, especialmente de meados dos anos 50 para cá, espraiaram-se os sindicatos por empresa. E com estes, o que havia de sindicalismo combativo no Japão foi arrebentado. Isto cria um cenário que é muito propício para o capital, o que chamei de nova forma de produzir mercadorias no interior do capitalismo.

Essa nova forma é a desespecialização multifuncional/funcional, essencialmente nefasta para os trabalhadores. Mesmo que uma parcela pequena dos trabalhadores permaneça no trabalho e tenha, no caso japonês, salário, produtividade, emprego vitalício etc, isso de algum modo beneficiou o operariado. Tampouco tem sido transplantado na ocidentalização desse modelo de acumulação flexível. E isso faz com que o prejuízo maior, além da perda do direito ao trabalho, seja uma grande fratura no interior da classe trabalhadora.

Jorge Mattoso - Vivemos a partir dos anos 60 uma série de crises que se sobrepõem e que vão aparecer mais plenamente nos anos 70, sobretudo a partir do primeiro choque do petróleo. Há uma crise do capitalismo que vai se somar a outras, inclusive à do próprio socialismo e à da social-democracia enquanto alternativas mais-gerais.

Essas crises trouxeram mudanças importantes. Em primeiro lugar, o revigoramento que o capital passa a ter a partir da aceleração e desregulação da concorrência. No entanto, não esqueçamos de que na década de 20 também se dizia que o capitalismo ia muito bem com o boom da segunda revolução industrial, mas ele explodiu em 1929. Nesse meio tempo, as grandes corporações reagrupadas mostravam um vigor inusitado, que é um pouco o que se verifica hoje. E um vigor aparente o resultante dessa aceleração e desregulação da concorrência. Em segundo lugar, a internacionalização é algo intrínseco ao capitalismo. Primeiro foi a internacionalização de mercados, depois a das grandes corporações multinacionais. Mas existe um fator novo que diz respeito à globalização financeira que determina, inclusive, a dinâmica econômica nos anos 80 e 90. Temos a redução do investimento e do crescimento econômico em todos os países capitalistas avançados, que sobrevivem graças ao processo de globalização e à obrigação de que os países atrasados devam abrir seus mercados para expandir os mercados dos países centrais.

Há um processo de aceleração da concorrência e isso favorece a inovação tecnológica, que não é algo novo no capitalismo. A diferença é que agora essa inovação tecnológica se faz sem barreiras, sem regulação e sem políticas públicas capazes de dar conta da sua tendência à redução do trabalho vivo. A inovação tecnológica, e isso está claro em Marx, tem por base a questão da concorrência entre os capitais. O que se modifica hoje é a globalização financeira que determina taxas de investimento pífias, crescimento baixo e aceleração da concorrência, com inovação tecnológica e redução do trabalho vivo, num marco de ausência de regulação pública. A ausência de regulação é o motivo fundamental do processo de desordem do trabalho, que vamos ver nos momentos seguintes.

Tarcisio Secoli - Fico imaginando a discussão desse tema nos anos 20, logo depois que Henry Ford implantou a linha de montagem. Como os sindicatos estariam tratando essas novidades, sem muita saída para o movimento sindical naquele momento? Hoje vivemos algo muito parecido. A situação é grave, mas é possível encontrarmos saídas no campo dos trabalhadores. Isso passa também pela questão do Estado, que não regulamenta e não gera benefícios que possam minimizar este tipo de coisa.

Algo muito grave é a quebra da solidariedade de classe. O movimento sindical no Brasil hoje está com muita dificuldade de entender isso em função de sua estrutura, de sua atuação. E, ao não entender, não percebe que a relação de solidariedade que tínhamos está se extinguindo.

As políticas de cooptação das empresas são aspecto central na reestruturação produtiva. As empresas necessitam cada vez mais de que os trabalhadores vistam sua camisa, usem o seu linguajar e falem o que o empresário quer. No passado, a luta para ganhar a consciência dos trabalhadores era exclusiva dos sindicatos, dos partidos de esquerda. Hoje temos um forte concorrente, que fica oito horas por dia no local de trabalho falando das benesses do capital, da vantagem do trabalhador em se aliar a esse projeto - e não temos uma ação política mais conseqüente para reverter esse quadro.

Toda vez que se discute esse tema fica a impressão de que morremos de vontade de que volte o velho. O modelo anterior - o fordismo - também era ruim para os trabalhadores. Eventualmente podia proporcionar algum tipo de facilidade em termos de organização de massa, mas se pensarmos no trabalho em si, ele não satisfazia nem dava condições dignas. Os dois modelos são ruins.

Rosa M. Marques - Não gosto do termo globalização. Acho que é mais mundialização porque, na verdade, embora haja elementos sob o aspecto financeiro, o que temos é simplesmente o aprofundamento de uma tendência inerente ao capitalismo.

Esse é um período de inflexão, de introdução de um novo padrão de acumulação capitalista. A crise do final da década de 60 e começo da de 70 é relativa à acumulação fordista, à qual estão associadas todas as outras aqui mencionadas, inclusive a da social-democracia e a da Europa do Leste. Mas há uma grande diferença em relação às inovações tecnológicas anteriores. Pela primeira vez na história do capitalismo, essa inovação, basicamente centrada na microeletrônica, permeia todas as atividades do ser humano. As outras, muito embora tivessem reflexos indiretos sobre todas as atividades, se circunscreviam a alguns setores produtivos. Essa não. É como o nome diz: flexibilidade, propiciar que o aparelho produtivo se reestruture a partir das oscilações da demanda, o que é um ganho do capital em relação a crises anteriores. Isso exige uma mudança brutal nas relações de trabalho.

No período fordista, a incorporação cada vez maior de trabalhadores assalariados estava colada à organização seriada e à forma como se expandia a acumulação. Hoje não. Há um núcleo central no aparelho produtivo e uma massa de pessoas, que seriam trabalhadores sem trabalho, que são incorporados quando aumenta a necessidade das empresas de atender uma determinada demanda. Elas entram e saem. Quando se fala em núcleo central, se tem a idéia de que ele é permanente, estável, tem garantias, não só de direitos trabalhistas, mas de integração dentro da empresa. Isso não é verdade. A precarização permeia quem está fora e quem está dentro.

Essa desregulamentação que está sendo implementada significa destruir o mundo do trabalho tal como era visto, tem implicações profundas em todas as áreas. Há pouco tempo, antes da crise, o trabalho era elemento de integração do indivíduo na sociedade. Trabalhar e depois se aposentar era a trajetória normal de todos, pelo menos no mundo desenvolvido. Hoje não é mais assim. A desregulamentação do trabalho afeta todo mundo, a começar pelo jovem que está saindo da escola e que não tem garantido um emprego. Assistimos a desintegração daquilo que foi possível no capitalismo do período anterior, a criação da coesão social pelo trabalho.