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Fiquei amigo de Perseu no dia em que o conheci, em sua sala de professor da escola de Administração da Bahia

Fiquei amigo de Perseu no dia em que o conheci, em sua sala de professor da escola de Administração da Bahia. Minha memória cronológica é péssima, mas já devem ter passado três décadas, porque eu voltava do mestrado que tinha feito na Califórnia, em 64 e 65, para ensinar na mesma escola. Estávamos de terno e gravata, como era uso indispensável da época, e nos cumprimentamos com a cerimônia natural a desconhecidos, ele já veterano de várias batalhas universitárias, eu ainda calouro e muito inseguro. Mas nada aconteceu do que seria de esperar-se numa situação convencional, ainda mais naqueles tempos bicudos (ele, antes professor da Universidade Federal de Brasília, havia recentemente sido preso). Em poucos minutos, estávamos contando histórias e rindo, como sempre aconteceria ao longo da mais fraterna das convivências, em que não consigo apontar um só momento que não gostaria de reviver ou de que não lembre com saudades.

Amigos e pensando do mesmo jeito sofríamos e fazíamos o possível para lutar contra um estado de coisas para nós ilegítimo e inaceitável. Enquanto a Redentora apertava o cerco contra a liberdade universitária, o livre curso de idéias e o debate das questões mais prementes do nosso tempo, nós mantivemos, na companhia de outros com as mesmas convicções e a mesma consciência, a resistência que podíamos. Ali nas nossas salas, às vezes aos cochichos - porque as paredes tinham mesmo ouvidos - insistíamos nas bibliografias que considerávamos adequadas, nos projetos de pesquisa que víamos como irrecusáveis, no que, enfim, na nossa pobre condição de intelectuais reprimidos, podíamos fazer. Tivemos medo diversas vezes, mas creio que cumprimos nossa obrigação e que deixamos, principalmente ele, uma geração de alunos convictos de que é possível combater o bom combate, mesmo que tudo pareça torná-lo impossível. Nisso, ele sempre foi um líder (embora nunca quisesse sê-lo), inclusive para mim.

Não podia dar um testemunho sobre o Perseu que não sublinhasse sua competência e dedicação profissionais, sua compaixão, sua integridade, sua coerência e coragem. Isto creio ter feito acima, ainda que palidamente. Mas o que mais gosto de recordar é realmente nossa amizade, vizinhos num edifício do hoje próspero, mas outrora longínquo e abandonado bairro da Pituba, em Salvador - Edifício Yvette, que, dizia eu, de tão velho e feio, tinha ganho o Prêmio Frankenstein de Arquitetura - conversamos e rimos, rimos muito, pois, apesar de tudo, éramos felizes. Eu não tinha carro, mas Perseu tinha um valente Gordini pleistocênico bastante temperamental, que só dava partida quando estava disposto. Ríamos do Gordini, ríamos das goteiras, ríamos da burrice oficial, ríamos da nossa vida quixotesca, éramos - apesar de tudo, repito - um par de amigos muito felizes.

Depois, nos separamos, eu fui para o mundo, ele voltou para sua terra, São Paulo. Por relaxamento, meu e dele, não nos correspondíamos, mas não nos esquecemos de nosso afeto. Sempre esperava vê-lo novamente e novamente nos divertirmos, agora com outros motivos, mas pelas mesmas razões. Nunca mais nos vimos. Brutal e inesperadamente, soube de sua morte, e até agora não me recuperei. Provavelmente nunca me recuperarei, pois há amigos e companheiros, como ele, que jamais nos deixarão e cuja saudade haverá sempre de nos freqüentar. Perseu, grande Perseu, brasileiro exemplar, amigo modelar, quem dera que nesse mundo me aparecessem nem que fosse uns dois ou três igualáveis a ele.

João Ubaldo Ribeiro é escritor