Cultura

Os livros que fizeram a minha cabeça, que marcaram minha vida, foram os que li na infância.

Os livros que fizeram a minha cabeça, que marcaram minha vida, foram os que li na infância. E os livros que li na infância foram principalmente de aventura. Na infância a gente lê a sério; como tudo o mais que se faz antes de virar adulto, na infância a gente acredita nos livros. História e personagens participam da vida de uma criança com tanta intensidade quanto as da vida real - às vezes mais -, já que na vida real pessoas e acontecimentos são muito mais chatos do que nos livros. Principalmente, claro, os livros de aventura.

Meus pais tinham em casa, trazidos da infância deles, duas coleções que acompanham o começo da minha vida alfabetizada. A coleção completa de Monteiro Lobato, que eu adorava não tanto pelas peripécias mas pela ironia dos comentários do autor, que levava as crianças a sério. Em suas histórias fantasiosas, Lobato discutia a Segunda Guerra Mundial, a industrialização do país, o petróleo, a arte moderna, a cultura clássica, os gregos. Além disso, seu senso de humor refinado, a ironia sempre presente nas conversas entre Pedrinho, Narizinho, Emília e Dona Benta, marcaram todo meu jeito de pensar, desde os sete, oito anos. Hoje sei que Lobato virou politicamente incorreto, sobretudo pela crueldade dos comentários racistas que a boneca Emília fazia sobre a negra Anastácia. Bobagem: desde pequena eu sabia, pela própria estrutura do texto, que o racismo de Emília fazia parte de sua coleção de asneiras. Fora isso, que felicidade encontrar uma personagem feminina, ainda que fosse somente uma boneca encantada, tão inteligente, inventiva e aventureira quanto a Emilia do Sítio do Picapau amarelo!

A outra coleção era a de livros de aventuras da Editora Globo: Coleção Terra, Mar e Ar. Tinha de tudo: Tarzan, Winnetou, A volta ao mundo em oitenta dias, A ilha do tesouro, O último dos moicanos, As minas do rei Salomão... Uma festa. Eu sentia uma enorme vontade de viver uma vida mais louca do que a minha lendo aqueles livros todos. E pensava que, sendo menina, teria que inventar um jeito de viver o que eu chamava de vida de aventuras. Afinal, felizmente, na infância a gente ainda não conhece bem os limites da própria identidade sexual. Eu podia me imaginar como Emília, mas por que não também como Ivanhoé?

Entre todos estes, meu preferido em O livro da jângal, de Rudyard Kipling. Também ouvi dizer que ele caiu no índex dos politicamente incorretos; que seus contos denotam a mentalidade própria do colonizador britânico diante do mundo selvagem da índia. E como poderia ser diferente? Mas a fantasia colonialista de Kipling não tinha nada de civilizadora: ele adorava o mundo da jungle e odiava o estrago que o homem branco havia feito por lá.

Li tantas vezes Mowgli, o menino-lobo (nada a ver com a versão pueril dos estúdios Disney) que hoje o livro está caindo aos pedaços. Desenvolvi o hábito de lê-lo, quase inteiro, a cada começo de férias. Ele preparava meu espírito para me desligar do mundo civilizado da escola e entrar no mundo selvagem das férias. Escrevi que lia o livro quase inteiro porque, em pouco tempo, passei a eliminar o último capítulo: aquele em que Mowgli se despede chorando de seus amigos Bagheera, Baloo e dos lobinhos e volta para a aldeia, para cumprir seu destino de homem. Este capítulo me deixava muito triste e passei a ignorá-lo, inventando sempre algum final. Eu não queria saber da condição humana, aos oito anos. Queria o que imaginava ser a condição selvagem, antes da nossa separação do estado de natureza, e que para mim (como para Rudyard Kipling), confusamente representava a liberdade, assim como a Lei da jângal, inventada por aquele escritor, representava justiça entre iguais de um modo muito melhor do que o proposto pelas leis dos homens.

Por fim, durante muitos anos eu me imaginei Mowgli, como me imaginei sendo todos os outros heróis e heroínas dos livros que lia e percebi também que a vida dos heróis era muito mais interessante. Identificar-me com eles me ensinou desde cedo que "a mente não tem sexo", como escreveu a feminista inglesa Mary Woolstonecraft no final do século XVIII.

Fiz minha cabeça na infância me imaginando menino ou menina, homem ou mulher, dependendo da aventura que estivesse lendo, e vivendo também, claro. Acho que ainda hoje sei fazer o truque funcionar.

Maria Rita Kehl é psicanalista e membro do Conselho de Redação de T&D.