Tortura, morte, prisão, exílio, clandestinidade, censura à palavra atingiram a melhor parte de várias gerações de brasileiros
Tortura, morte, prisão, exílio, clandestinidade, censura à palavra atingiram a melhor parte de várias gerações de brasileiros
É provável que a grande luta pela anistia no final dos anos 70 ainda faça parte da lembrança de algumas gerações presentes. Menos provável que dela tenham notícias os mais jovens. Em um caso ou noutro é possível que faltem alguns registros importantes.
Em São Paulo, a criação do Comitê Brasileiro de Anistia, no ano de 1978, significou uma formidável reunião de pessoas vindas de muitos e distintos caminhos, com uma acumulação equivalente de sofrimentos extraídos de experiências singulares, diferentes ideologias e origens políticas diversas.
Pessoas que se uniram e se organizaram para restaurar a dignidade da luta política em todas as suas formas e que tiveram como ponto de partida a Anistia Ampla Geral e Irrestrita para os milhares de brasileiros, que cumpriam as mais longas penas de que se tem noticia na história do Brasil.
Pagamos, os brasileiros, um preço absurdo, por desumano, na luta pela reconquista de direitos e da democracia. Tortura, morte, prisão, banimento, exílio, clandestinidade, censura à palavra e ao pensamento, suspensão de direitos atingiram, certamente, a melhor parte de várias gerações de brasileiros.
É possível que a imagem de uma pomba pousada sobre uma faixa com a consigna "Anistia Ampla, Geral e Irrestrita" no ato de reconquista da Praça da Sé, (faixa levada por Clarice Herzog e seus companheiros); a figura inesquecível de Teotônio Vilela, ou a canção da "volta do irmão do Henfil" se tornem para sempre emblemas da campanha da Anistia. Não deixam de ser.
No fundo de tudo o que se passou, havia uma pessoa, uma cabeça privilegiada, alguém de olhos e coração muito abertos que garantiu, todo o tempo, a unidade da ação política de nosso movimento porque foi capaz de assegurar o total respeito à diversidade ideológica.
Perseu Abramo foi o fiel depositário de nossas esperanças quanto à possibilidade de formar uma frente progressista e unificada na luta pela conquista da democracia em nosso país; pelo fim das pesadas restrições e violações dos direitos humanos mais elementares; pelo reconhecimento do valor de todos que lutaram, da forma que puderam, contra o regime político obsceno imposto aos brasileiros.
Os que estiveram diuturnamente no CBA/SP, na campanha da Anistia e no apoio e defesa de todos os movimento populares no final dos anos setenta, sabem do que falo aqui. Perseu era a garantia da permanência da mais expressiva frente política progressista já ocorrida em nosso país. Porque ensinava a tolerância a seus companheiros, mesmo quando a discordância ultrapassava os limites da razão. Porque ouvia a todos e nos documentos que fixavam os rumos do movimento, os quais redigia com paciência e sabedoria, expressava as opiniões dos representantes das diversas forças políticas que se uniram no espaço representado pelo CBA/SP, assim como de todos os diretamente atingidos pela repressão.
E sempre num clima de companheirismo e carinho que tornou aqueles terríveis anos de luta contra um poder cego, ultrajante e cruel nos melhores anos da vida de muitos de nós. Perseu Abramo. Companheiro. Amigo. A essência da amizade nos olhos verdes, a razão em sua melhor plenitude e a mão, firme e forte, no leme do movimento que nos permitiu franquear os umbrais da democracia, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Vânia Sant'Anna é socióloga, diretora da Fundap, foi fundadora do CBA/SP.