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Quando morrem homens como Perseu, morre um pouco dos nossos sonhos de viver num país mais digno

Perseu era do tempo em que as pessoas pediam por favor e agradeciam com um muito obrigado: os homens respeitavam as mulheres e vice-versa; os mais novos procuravam aprender com os mais velhos e os mais velhos sentiam prazer em ensinar os mais jovens; os adversários eram tratados com a lhaneza dispensada aos amigos; os meios nunca justificavam os fins e a obra da vida era construída lentamente, alicerçada em princípios, nunca em interesses, dando-se valor a coisas muito simples, como a lealdade, o compromisso com o próximo e a Nação, a doçura no trato e a firmeza de caráter.

Esse tempo, como sabemos, acabou.

E, quando morrem homens como Perseu, morre com eles um pouco dos nossos sonhos de viver num país mais digno e de exercer um Jornalismo mais conseqüente, voltado para os interesses da maioria da sociedade.

Mesmo afastado ultimamente das redações, contra a sua vontade, ele continuava sendo um referencial de jornalista probo, cidadão íntegro, homem por inteiro, onde quer que exercesse seu ofício, ensinando cidadania com gestos e ações, e não apenas com palavras.

Nas redações, nas salas de aula, no sindicato, no partido que ajudou a criar, sua figura se destacava sempre. Não porque este fosse seu desejo, mas porque era mesmo diferente da maioria - na sua desambição pessoal, no falar baixo, no saber ouvir os outros, no buscar sempre a harmonia e no oferecer solidariedade, sem nunca pedir nada em troca, nem querer ser o dono da verdade.

Em outras palavras, Perseu era exatamente o oposto do protótipo de profissional triunfante nestes tempos neoliberais do jornalismo de resultados.

Tive a sorte de iniciar minha carreira como repórter quando nossos paradigmas eram profissionais-cidadãos como os Abramo, Perseu e Cláudio, seguidos por Clóvis Rossi e Mino Carta - jornalistas sem dobradiça na espinha, que conheciam seu papel na luta coletiva mais ampla da redemocratização do país.

Mais tarde, já no Sindicato dos Jornalistas, com seu entusiasmo sempre juvenil, Perseu incentivou minha geração a lutar contra a pelegada e o arbítrio que suicidou nosso companheiro Vladimir Herzog, o Vlado. O passo seguinte foi a construção do Partido dos Trabalhadores; logo depois, a criação da Central Única dos Trabalhadores, instrumentos vitais para levar o país à Constituinte e às eleições diretas.

Em todos os momentos de resistência e luta pela redemocratização do país, Perseu estava lá, longe dos holofotes, perto do povo.

Por isso, quando os historiadores do futuro percorrerem este período da vida brasileira, que vai de uma ditadura a outra, certamente cruzarão pelo caminho muitas vezes com a pessoa de Perseu Abramo. E a encontrarão sempre do mesmo lado: junto aos excluídos, aos perseguidos, aos democratas, aos que ainda não perderam a fé no ser humano e na construção de uma sociedade mais solidária e mais justa.

Esta era a figura pública. Mas eu sinto falta é da figura humana, do Perseu amigo, do pai de família que encontrei certa vez, com todo seu harém, em Anchieta, cidadezinha do litoral do Espírito Santo, dividindo com a gente o espaço, de um antigo convento transformado em, hotel.

Aqueles dias que passamos juntos em Anchieta me provaram que é possível conciliar a utopia com o dia a dia da vida em família; o carinho dedicado à mulher e aos filhos com a intransigência na defesa dos ideais; a caipirinha com os amigos à beira-mar com os sonhos maiores de quem não veio à terra apenas a passeio, mas também a serviço, a serviço dos outros.

Ricardo Kotscho é jornalista.