Sociedade

Hoje, um jovem atraído pela participação política/social pode escolher entre vários tipos de atuação

Em agosto de 1992, os jovens brasileiros tomaram as ruas das principais cidades para exigir o impeachment do presidente Collor. A participação entusiasmada dos caras pintadas surpreendeu o país, que pouco antes lamentava a apatia, o individualismo e a falta de interesse político entre a maior parte dos jovens. Segundo pesquisa realizada pela McCann Erikson em 1991, "em contraste com seus pais, que queriam mudar o mundo, a próxima geração está mais interessada em melhorar a própria vida... Os jovens de hoje não se interessam por qualquer tipo de manifestação social. Vivem para resolver seus projetos pessoais."

O reverso dramático da participação política dos jovens brasileiros foi motivo de afirmações nostálgicas por parte de alguns, que indagavam se o movimento dos caras pintadas não significava "o renascimento do movimento estudantil no país". Outros, menos eufóricos, comentavam a diferença entre a conjuntura da ditadura de 1968 e as manifestações de 1992, quando a maioria das forças da sociedade civil e política, e os meios de comunicação convergiram na defesa da ética na política e até os policiais do estado protegeram os jovens manifestantes.

Mais importante até do que as diferenças na conjuntura foram as profundas mudanças na configuração dos próprios jovens que iriam compor as manifestações. Em lugar da homogeneidade dos estudantes de classe média alta que integravam o movimento estudantil dos anos 60, a juventude brasileira dos anos 90 se destaca pela heterogeneidade. Hoje as redes de estudo, trabalho, cultura e sociabilidade dos jovens não estão mais centralizadas nas universidades. Jovens de várias origens e classes sociais se encontram numa extensa diversificação de espaços de convivência e com grande variedade de estilos de expressão. Esta heterogeneidade se refletia no movimento dos caras-pintadas, embora a maior parte desses manifestantes ainda viessem da classe média. Nas palavras de Lindberg Farias, presidente da UNE na época, "[Eram] diversos os rostos. Desde os que usavam camisas de Che Guevara até os freqüentadores dos shopping centers. Estudantes, pesquisadores, bolsistas do CNPQ, junto a metaleiros e skatistas. Todos, revoltados, pediam impeachment para o presidente. Foi a passeata do grito indignado de uma juventude que acredita na mudança do Brasil."

As palavras exaltadas de 1992 deixam um eco que incomoda agora, quase quatros anos depois. Cadê os caras-pintadas? Nas ruas eles não têm estado muito em evidência, embora existam sinais incipientes nas recentes mobilizações em defesa da educação. Será que as forças do individualismo, da apatia e da alienação venceram, na conjuntura de avanço do neoliberalismo e da indústria de consumo globalizada? Ou será que 1992 deixou alguma marca, ainda que sutil e subterrânea, que se manifesta em maneiras emergentes, ambíguas e às vezes desafiadoras, nas redes e espaços diversificados das várias juventudes brasileiras?

Este quadro coloca dilemas e desafios para os movimentos juvenis organizados, que se encontram num processo de autoquestionamento e reestruturação. Se, por um lado, as redes de convivência juvenil se dispersaram, por outro as redes da militância se multiplicaram, se cruzaram e se entrelaçaram com a emergência de novos espaços e fóruns de participação. A pluralização de espaços públicos - movimentos, partidos, entidades, igrejas, ONGS, centros culturais ou profissionais - possibilita o envolvimento de mais jovens no exercício da cidadania, mas ao mesmo tempo gera conflitos e contradições decorrentes da superposição das diferentes lógicas de intervenção. Estas tensões permeiam a dinâmica básica do campo político-juvenil de hoje, influindo tanto nos conflitos internos dos movimentos, quanto nas dificuldades de atrair mais jovens para a participação política organizada. Espero contribuir aqui para a compreensão da complexidade (e as oportunidades) deste campo emergente, para estimular o debate e a reflexão no meio dos próprios movimentos.

Retratos juvenis nos anos 90 Este trabalho faz parte de uma pesquisa de doutorado em Sociologia pela New for Social Research em Nova Iorque (com vínculo ao programa de pós-graduação em Psicologia Social na PUC-SP). Meu interesse no meio político-juvenil brasileiro ganhou corpo no final dos anos 80, quando após a faculdade passei alguns na Zona Leste de São Paulo, acompanhando o movimento de educação e a Pastoral de Juventude. Já tinha feito um trabalho com grupos de jovens urbanos em N. Iorque, na maioria negros e latinos, analisando, junto com eles, as fontes sociais da marginalização e aspirações frustradas, e as ações concretas que poderiam tomar na vida pessoal e política.

Vista pelos padrões de três décadas atrás, a participação política da juventude se encontra em crise no mundo todo. Nos Estados Unidos saem best-sellers sobre a suposta Geração X, um grupo definido por um lado pela inserção na indústria cultural globalizada (a geração do zap, do controle remoto) e por outro pela diminuição de oportunidades reais numa economia mundial, apertada pela angústia e perplexidade existencial, pelo pragmatismo individual e pela falta de compromisso com projetos para a transformação social. Se assim se retrata de maneira estereotipada o jovem global de classe média, surge outro retrato do jovem marginalizado, das periferias ou das inner cities dos grandes centros urbanos. Entre estes jovens se manifesta uma descrença profunda com as vias políticas tradicionais, tanto com a eleitoral quanto com os movimentos de rua dos anos 50 e 60, e uma transferência de qualquer esperança de mudança social ao meio cultural. O rap e a cultura hip-hop surgem como a voz de revolta e auto-afirmação, resistindo com criatividade ao desespero da violência, das aspirações bloqueadas e da falta de respeito por parte da cultura dominante.

No Brasil encontra-se uma versão mais otimista da Geração X nas páginas da Folhateen (caderno da Folha de S.Paulo), voltada para os anseios e empolgações dos jovens de classe média-alta, com algumas referências leves àquele outro mundo, dos marginalizados. As pesquisas acadêmicas, por sua parte, viraram sua atenção ao mundo das periferias, deixando de lado os estudos anteriores do movimento estudantil dos anos 60 e da subcultura anarquista dos anos 70. Esses recentes estudos refletem a transferência do olhar sociológico do movimento político explícito para os movimentos culturais subalternos, o mundo dos punks e darks, dos funkeiros, dos rappers. Como Helena Abramo explica, "descortina-se a nova configuração do universo juvenil: a crise do espaço universitário como significativo para a elaboração de referências culturais, o enfraquecimento da noção da cultura alternativa como modo de contraposição ao sistema e a emergência de uma intensa vivência, por parte dos jovens das camadas populares, no campo do lazer ligado à indústria cultural."Helena Abramo, Cenas Juvenis: Punks e Darks no Espetáculo Urbano. Editora Scritta, 1994.

Se estas pesquisas revelam um espaço importante de expressão juvenil durante a época da modernização conservadora, deixam de lado elementos importantes da conjuntura brasileira dos anos 90. O ponto base comum, tanto das análises da Geração X quanto das culturas juvenis subalternas, parte da pressuposição de que movimentos organizados por parte dos jovens, se não inexistentes, são irrelevantes no cenário político atual.

Desaparece desta análise a complexidade política dos anos 90, o quadro contraditório de retrocessos e avanços. Se, por um lado, este se caracteriza pela consolidação dos setores conservadores, a globalização econômica de forma desigual e o agravamento das crises mundiais, gerando desemprego e marginalização social, por outro se destaca pela expansão dos setores que reivindicam direitos sociais e políticos, a interatividade crescente da sociedade civil e as transformações (ainda incipientes e ambíguas) dos termos do diálogo estado/mercado/sociedade. Se o governo FHC mostra-se agora pouco receptivo às iniciativas da sociedade civil que sempre defendia, também não consegue frear as forças emergentes de reivindicação e interlocução social.

Estas forças sociais diversificadas aparecem também no campo político-juvenil, embora este não se limite mais ao movimento estudantil tradicional. Por estas razões o olhar sociológico deve voltar sua atenção para os grupos e movimentos organizados. Lá se descobre que está acontecendo muito mais no meio juvenil do que se imagina, apesar dos problemas (reais) de ceticismo, distanciamento e manipulação, destacados na grande imprensa.

Cruzamento das redes

Hoje, um jovem atraído pela participação política/social pode escolher entre vários tipos de atuação, além dos grêmios livres, centros acadêmicos, DCEs e outras instâncias estudantis (União Nacional dos Estudantes, UNE; União Estadual dos Estudantes, UEE; União Brasileira dos Estudantes, Ubes; União Municipal dos Estudantes, Umes etc.). Além dos partidos, existem inúmeros movimentos sociais, desde os de bairros populares (saúde, educação, moradia etc.) até os que expressam as lutas de negros, mulheres, povos indígenas, homossexuais. A Pastoral da Juventude, que forneceu uma via importante para participação política nos anos 70 e 80, se encontra numa crise semelhante à do movimento estudantil, enquanto grupos evangélicos atraem massivamente os jovens, com projetos sociais geralmente conservadores. Fora esses fóruns, existem numerosas ONGs nas áreas de meio ambiente, educação, direitos humanos etc., que ganharam força nos anos 80 e 90 e que mantêm laços com a sociedade civil internacional. Nas universidades surgem novas iniciativas, ricas e emergentes, nas áreas de profissionalização dos estudantes, como as executivas de cursos e as empresas juniores.

Para transitar por este campo minado de projetos, estilos e lógicas diferenciadas (e muitas vezes contraditórias), é necessário construir canais e éticas de comunicação que atravessem redes e forças políticas. Isto exige uma reestruturação das formas tradicionais de conduzir a política juvenil, algo reconhecido pela maior parte das lideranças, apesar da dificuldade de realizá-la.

A herança dos anos 60

Apesar da dispersão no meio universitário, o movimento estudantil está longe de ser o corpo moribundo, caricaturizado na grande imprensa. Esmagado pela ditadura em 68, mantendo-se na clandestinidade nos anos 70, reconstruindo-se de forma conflituosa na década de 80, hoje se encontra enfrentando dilemas e conflitos antigos, mas também impulsos e experiências novas. Em 1992 a UNE conseguiu retomar a visibilidade pública no auge do movimento anti-Collor (apoiado, claro, pela imprensa), quando se lançou como porta-voz da nova mentalidade entre os jovens, que são preocupados tanto com as particularidades da vida pessoal quanto com a ética, a cidadania e a mudança social. Hoje se esforça para não perder o influxo de energia e validação social que ganhou na época, embora enfrente críticas fortes, tanto de fora quanto de dentro do movimento. Essas críticas se devem em parte à sua própria estrutura, herança do modelo clássico das organizações da esquerda: entidade única, hierárquica e centralizada, disputada por forças divergentes, com instâncias menores espalhadas pelos estados e universidades. Pressões pela democratização interna, pela descentralização das instâncias decisórias, pela maior aproximação e comunicação com as bases estudantis representam desafios não somente a uma ou outra gestão, mas ao próprio modelo organizativo do movimento estudantil.

Uma análise mais profunda revela que muitas das críticas têm fundamento não apenas na estrutura da UNE em si, mas no cruzamento de três principais redes e lógicas participativas: os vínculos regionais e universitários junto à base estudantil; a hierarquia organizativa das entidades e a segmentação interna por partido político e/ou tendência ideológica. Isso não quer dizer que o partidarismo, ou seja, os partidos tenham culpa pela crise atual do Movimento Estudantil (ME) e pelo distanciamento dos estudantes. Como partido (especialmente de esquerda) implica visão de mundo, projeto de transformação social e estratégias de disputa da hegemonia institucional, os confrontos também se manifestam no ME. A lógica própria do movimento, que é de unificação, aglutinação e ampliação do campo da ação coletiva, se choca por um lado com a disputa pela hegemonia entre as forças internas e, por outro, com as necessidades institucionais-burocráticas da manutenção da própria entidade. A superposição destas três lógicas, dentro de uma entidade que se autovaloriza pela unicidade, cria tensões que às vezes têm como conseqüência que nenhum dos três aspectos se realize com efetividade.

A dinâmica interna nos vários espaços do ME reflete esta tensão. O 44º Congresso da UNE impressionou por sua majestade dramatúrgica, o teatro coletivo de posicionamentos simbólicos, em que os conchavos entre os capas partidários recorreram ao drama e à emoção das plenárias para reforçar (e às vezes forçar) alinhamentos e cisões. Não acontece elaboração política, debate aprofundado, convencimento racional (na teoria, isto deve acontecer nas reuniões pré-congresso das várias forças, mas ainda assim a profundidade da elaboração é posta em dúvida pela urgência da disputa iminente.) Todos os esforços, intrigas e emoções estão direcionados para a tarefa principal: ganhar o congresso e controlar a entidade. Ainda depois do congresso, as reuniões das entidades ocorrem sob tensionamento das três lógicas. Cada diretor se veste (no mínimo) com três chapéus: representante estudantil com vínculos regionais e universitários; militante de partido e/ou tendência e dirigente da entidade, com responsabilidades funcionais específicas. É difícil desvincular as três exigências e as reuniões vivem balançando entre preocupações pragmáticas, marcações de posições político-ideológicas e manipulações táticas de uma ou outra força política.

Se esta dinâmica contribui com o drama (e o tesão!) próprios da militância estudantil, também colabora para o distanciamento dos estudantes e a muito comentada crise de representatividade no ME. Não é que as lideranças não representem os estudantes; mas elas têm representatividades múltiplas, todas exigindo energia e atenção. É realmente difícil, para o aluno não vinculado às forças políticas, compreender a urgência destas disputas e a relevância para suas preocupações concretas. Por mais que o ME se apresente como defensor dos interesses dos estudantes,- lutando por mais verbas para a educação, qualidade de ensino, contra o aumento das mensalidades, este aluno vê que as lideranças têm outras preocupações (e empolgações) que ele não entende como suas: as da força política, do controle do aparelho e, às vezes, da promoção pessoal. Por isso, ele exige, como questão ética, o apartidarismo das entidades, a submersão (ou ausência) da identidade partidária das lideranças, sua desvinculação e dedicação ao meio escolar. Isto contribui para a despolitização crescente de muitas entidades de base e a ascensão de chapas festeiras, sem programa social. Mas tem ressonância entre os estudantes porque eles vêem o ME principalmente como uma briga de posições que desvia tempo e energia das tarefas principais: elaboração e ação efetiva nas áreas mais próximas a seus interesses.

Por outro lado, a UNE leva algumas vantagens por ser uma entidade histórica, centralizada, falando como a voz generalizada dos estudantes. Consegue em alguns momentos agir como interlocutora efetiva com o governo, as universidades e as entidades sociais. Além de seu papel no movimento pró-impeachment, a UNE conseguiu, na gestão passada, alguns avanços reais na negociação da medida provisória das mensalidades, ainda que criticada por ter dedicado tanto esforço nesta direção, secundarizando as mobilizações nas escolas públicas (ainda que os ganhos tenham sido revertidos com o governo FHC). É chamada a participar tanto das instâncias de diálogo com o governo, quanto dos fóruns de oposição, como o atual Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública, junto com a Andes, Fasubra e outras entidades. Além dos interesses partidários, é por isso que resiste com tanta força às sugestões de que deve acabar com a unicidade e partir para entidades estudantis paralelas, como em muitos países europeus.

Claro, existem outras maneiras de ser interlocutor social. Um exemplo ainda vibrante é o Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. Nas últimas gestões, o tem participado de vários debates e mobilizações públicas, incluindo um papel destacado no movimento pela ética na política e, mais recentemente, no movimento pelo fim da justiça militar. Tem promovido debates sobre direitos humanos, violência, reforma agrária, discriminação racial e sexual. São jovens sérios e comprometidos que, apesar de divergências programáticas, se preocupam tanto com a questão universitária quanto com os problemas sociais mais gerais. Embora sejam críticos à estrutura da UNE e ao ME em geral, têm conseguido, por canais próprios, desempenhar um papel ativo na sociedade civil.

As caminhadas dos anos 80

Outra dinâmica manifesta-se na crise atual das pastorais de juventude. Seu auge ocorreu no início dos anos 80, quando o movimento estudantil ainda se reorganizava. Incubada nas comunidades de base durante os anos 70 e recebendo forte impulso com a explosão de movimentos de bairro na virada da década, as pastorais serviam como primeiro passo de conscientização política para uma geração de militantes, muitos dos quais são importantes lideranças na esquerda hoje. Quando a Igreja não segurava mais o envolvimento de seus iniciantes nas entidades intermediárias durante os anos 80 (partidos, sindicatos, movimentos urbanos e rurais, entidades estudantis), foram criadas as pastorais específicas: Pastoral da Juventude dos Movimentos Populares, Pastoral da Juventude Estudantil, Pastoral da Juventude Rural, com diferentes graus de autonomia da PJ geral e da hierarquia da Igreja. Hoje, embora as várias instâncias da PJ se mantenham vivas, estão reavaliando sua estrutura e dinâmica internas, tentando evitar a fuga de jovens para as igrejas evangélicas, diminuir a distância crescente em relação a jovens da base e equacionar o desenvolvimento pessoal/espiritual com uma inserção efetiva no campo político-social.

As pastorais têm aspectos semelhantes ao ME, como a herança de uma estrutura hierárquica atrelada às instâncias da Igreja, com coordenações sucessivas por área, setor, região, arquidiocese, sub-região, até a instância máxima, ligada à CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil). Mas embora existam disputas nestas instâncias, elas não constituem a lógica central das organizações. A PJ sempre foi muito mais enraizada ao nível de comunidade, voltando toda sua imensa produção de subsídios pedagógicos para os grupos de base. Valorizou muito mais do que o movimento estudantil o desenvolvimento do ser humano, a ligação do pessoal com o social por meio das relações comunitárias, simbolizadas na imagem da caminhada (conjunta e prolongada) em busca da libertação, da construção de um mundo mais justo e fraterno. Por isso foi parceira natural dos movimentos populares (e do PT dos núcleos e campanhas de base) nos anos 80; mas também como eles, hoje se encontra com as redes densas e enraizadas daquela época em estado de desagregação.

Nos seus seminários e assembléias se evidencia uma forte preocupação com a inter-relação das militâncias múltiplas das lideranças. Por exemplo, os jovens que iniciam uma participação com a metodologia consensual da Igreja encontram dificuldades para lidar com as disputas estudantis e partidárias. Qual deve ser o papel da pastoral (ou melhor, de suas integrantes) nos movimentos sociais, nos partidos, no movimento estudantil? Como levar os valores cristãos para estas instâncias e como levar os compromissos com estas lutas para dentro da Igreja?

Apesar destas tensões, a relação entre as diversas militâncias não são vistas como antagônicas, mas cumulativas, complementares e até pedagógicas. A dinâmica não é de posicionamento e disputa, mas de priorização dos envolvimentos, de não tentar fazer tudo e acabar sem energia para a vida pessoal. Por outro lado, o estilo intimista dos grupos tem contribuído também para o seu isolamento, apesar da insistência na inserção social. As lideranças desenvolvem uma linguagem própria e uma tendência à auto-reflexão (sempre "revisando a vida e a prática") que também as distanciam dos jovens menos organizados, espalhados pelas redes informais de sociabilidade e lazer da periferia e pouco ligados para as instâncias comunitárias organizadas.

Alternativas emergentes

Com a diversificação das redes de estudo, trabalho e sociabilidade juvenil os espaços políticos mais emergentes se localizam nas áreas específicas ou de preocupações sociais setorizadas. Já no final da década de 80 viu-se o crescimento de movimentos mais ligados à discriminação social, como os da mulher, dos negros, dos povos indígenas. O movimento negro continua sendo um foco de organização para jovens, tanto nas universidades (com núcleos de pesquisa em várias delas, além do Senun - Seminário Nacional de Universitários Negros), como nas comunidades, nas quais eles tentam fazer a ponte com a cultura afro-brasileira, as escolas de samba, os rappers da periferia. Outro espaço emergente está sendo construído pelas executivas de curso nas universidades, coordenações (ou federações) nacionais ligadas à área de especialização dos estudantes.

Tanto os universitários negros como as executivas de curso vêem-se como instâncias autônomas de elaboração, com relações ambivalentes (e às vezes conflituosas) com o movimento estudantil geral. No 44º Conune, os universitários negros organizaram plenárias independentes, protestando contra a marginalização da questão racial na pauta geral do congresso. Apesar do atual presidente da UNE ser negro (e assumir o discurso racial como bandeira da entidade), falta a participação de pessoas com compromisso histórico com o movimento negro na liderança das entidades gerais. Embora tensões partidárias às vezes atrapalhem estas relações, dentro do movimento negro as lideranças procuram evitar os atritos sectários e manter a atenção fixa na questão que têm em comum, o problema da discriminação racial que, segundo eles, não está sendo tratado com atenção em nenhuma das correntes partidárias.

Entre as executivas de curso aparece uma tentativa clara e elaborada de construir uma alternativa à estrutura do ME. Embora muitas delas tenham histórias longas - especialmente nas áreas de agronomia e arquitetura -, o movimento por área começou a ganhar fôlego em 92, com o início do Fórum Nacional das Executivas de Curso. Elas têm a vantagem de estarem mais próximas às áreas de interesse e especialização e por isso atraem muitos estudantes que não se empolgam com o ME. Nos encontros nacionais das executivas, são discutidas questões concretas sobre a organização dos cursos e a reforma universitária, além do papel social do profissional e propostas alternativas para políticas públicas (como a proposta elaborada por Denen, a executiva de Medicina para avaliação universitária). Muitas das executivas têm inserção em movimentos sociais, como o movimento sem terra, no caso de agronomia (a Feab, a executiva mais antiga do país, se destaca pela organização de estágios de vivência, que levam estudantes para conhecer a realidade dos acampamentos), além do movimento de saúde, no caso de enfermagem e medicina, ou educação popular, no caso de pedagogia.

Apesar do engajamento partidário de boa parte dos participantes, existe um impulso firme de suprimir a lógica partidária nas reuniões do movimento de área. O Fórum é concebido como um espaço de elaboração e troca de experiências entre as executivas, sem processos de votação, sem disputa de cargo, sem sede ou diretoria fixa. Em contraste explícito com a UNE, o Fórum não é designado como entidade representativa ("ninguém fala pelo Fórum"), mas como um espaço-rede, descentralizado e democrático, que responde às necessidades e preocupações emergentes do movimento por área.

Na prática, a própria concepção democrática do Fórum acaba criando algumas dificuldades e tensões. Uma delas é a tendência à dispersão, a dificuldade de conduzir a comunicação de maneira eficiente para todos os pontos da rede. Outro dilema é a tendência à concentração de responsabilidades em poucas pessoas. E como o Fórum não é entidade, ao contrário da UNE, não pode servir como porta-voz do movimento de área em instâncias de interlocução com a sociedade. Em articulações como o Fórum Nacional da Defesa de Educação, cada executiva fala só por ela mesma e não pelo conjunto do movimento.

A ética de separação entre as lógicas do movimento e de partido traz algumas vantagens para a possibilidade de elaboração política, mas também cria problemas. É tabu falar em partido durante as reuniões, o possibilita um clima muito menos tensionado do que o das reuniões da UNE e mais focalizado nas discussões da conjuntura e da universidade. Por outro lado, a ausência de instâncias de votação cria uma dinâmica de convencimento discursivo na busca do consenso que às vezes chega à exaustão. Mas até este grau de consenso somente é possível por causa da homogeneidade relativa dos participantes. Eles já começam a se questionar sobre os efeitos das divergências internas vindas da ampliação do movimento, especialmente se as executivas começam a ter relações mais estreitas com a UNE e o ME geral. Existe uma forte polêmica se sé deve tentar fazer oposição à UNE, até para propor uma estrutura alternativa de organização para o ME, ou se se deve continuar como movimento autônomo, sem vínculos que possam descaracterizá-lo pela entrada na lógica da disputa.

Pistas e desafios

O aspecto mais promissor destas novas iniciativas é a possibilidade que elas oferecem de enfrentar algumas das dicotomias que têm contribuído ao distanciamento entre os jovens e os movimentos organizados. E dentro desta dinâmica que se encontram algumas pistas e desafios para as juventudes organizadas.

Primeiramente, a necessidade de trabalhar de forma melhor a ligação entre o pessoal e o social como fonte de engajamento dos jovens. No movimento estudantil clássico (e na esquerda em geral) esta relação é deixada de lado em favor de uma ética militante de dedicação e sacrifício total. Nas pastorais de juventude vemos uma tentativa valorosa de trabalhar a subjetividade junto com o compromisso social, mas elas também sofrem de uma orientação intimista que às vezes as separam da juventude mais ampla. Uma lição do movimento Fora Collor foi a necessidade de criar uma nova imagem, distinta daquela do militante intenso, barbudo, chato, e uma nova linguagem que fuja das velhas palavras de ordem da esquerda e incorpore os valores da ética, do prazer, da criatividade individual. A questão não é só o quase populismo de apelar, com festa, música e linguagem teen, à sensibilidade dos jovens despolitizados, mas de dar espaço às necessidades de crescimento e expressão pessoal, sem as quais o engajamento político acaba no vazio.

Um segundo ponto é a importância de ligar os envolvimentos específicos com lutas mais gerais. Cria-se uma falsa polêmica quando se entende que é preciso optar entre a UNE e os movimentos de área ou as lutas antidiscriminatórias. Os movimentos específicos têm dinâmica própria (mas não necessariamente antagônica), com a vantagem de juntar o interesse no aprimoramento pessoal com o aprofundamento analítico e amplos campos de intervenção social. O desafio é de manter uma articulação forte com as questões mais amplas, para não cair no corporativismo, e canalizar as propostas específicas por meio da força de interlocução social das entidades gerais. A relação pode e deve ser de complementariedade.

Voltamos finalmente à questão das éticas de comunicação. As dificuldades de relacionamento, tanto entre os vários grupos organizados quanto com a juventude mais ampla, não são culpa de nenhuma das forças políticas em si. Mais além das diferenças sectárias entre correntes, o problema se localiza no próprio modelo de política estudantil, e mais especificamente, na dificuldade de diferenciar entres as várias lógicas participativas que se superpõem. Se existem necessariamente espaços de disputa, também é essencial que se construam espaços mais eficazes de elaboração e discussão. Se os movimentos especializados abrem algumas pistas neste sentido, é importante que eles não percam pela dispersão as possibilidades que oferecem para a reformulação das regras de comunicação interna.

Um dos principais desafios da juventude organizada é a convivência ética entre o pluralismo e a disputa, o diálogo aberto e a defesa dos princípios, a busca do entendimento e os projetos de transformação. O dilema se coloca entre Gramsci e Habermas, pois se o consenso é impossível, também sem uma ética de comunicação, sem uma tentativa duradoura de entender (embora não necessariamente aceitar) o ponto de vista do outro, perdemos a possibilidade de aprofundar a compreensão social e até de elaborar táticas e estratégias de transformação mais adequadas às complexidades do mundo de hoje. Senão, a lógica utilitária que anima o sectarismo esmaga a possibilidade de comunicação humana e aprendizagem social. Isto exige, sim, uma mudança estrutural nas instâncias tradicionais de organização juvenil. Cabe aos próprios jovens, com toda a inteligência, imaginação e empolgação de que são capazes, definirem estes rumos.

Ann Mische é doutoranda em Sociologia.