Cultura

A retomada da produção cinematográfica alavanca-se numa feliz combinação de fatores conjunturais

Milhões de espectadores reconquistados, prêmios e mostras no exterior, incluindo uma raríssima indicação ao Oscar, produção reaquecida, apoio jornalístico inédito: o cinema brasileiro parece sair do buraco a que foi condenado pela falência do modelo Embrafilme e pela truculência do governo Collor. Contaram-se dezessete estréias comerciais em 1995, um recorde na década, prometendo a safra 1996 quase o dobro disso.

Mais um milagre do mercado? Longe disso. A retomada da produção cinematográfica brasileira alavanca-se numa feliz combinação de fatores conjunturais, tendo o Estado fomentador à frente. Dois concursos federais para a realização de filmes (Prêmios Resgate), alguns novos mecanismos regionais e locais de apoio (sendo a RioFilme carioca a mais agressiva), uma reformada lei de incentivo fiscal à cultura (Rouanet), uma nova lei para o audiovisual mais aplaudida do que efetivamente aplicada. A fórmula não tem segredo: a produção cinematográfica mundial, fora da hegemônica indústria americana, ampara-se invariavelmente no Estado. Variam os modelos, oscilam os resultados, mas o resto é conversa.

O risco do cinema brasileiro estar vivendo uma bolha de euforia nunca foi tão concreto. Os bons resultados recentes parecem confirmar a competência das políticas desenvolvidas. Tudo engano. A mera calibragem da legislação em vigor, combinada a iniciativas pontuais, serão insuficientes para manter a produção no patamar duramente alcançado.

Uma política cinematográfica nacional ampla e de longo prazo, preocupada com as várias etapas da vida de um filme (projeto, pré-produção, produção, distribuição, exibição, difusão, preservação), precisa ser reconhecida como essencial, para além dos preconceitos levantados na era Embrafilme. Sua concepção deve ser catalisada e sua implementação liderada pelo governo federal, tendo por parceiros a classe cinematográfica e a iniciativa privada.

As longas filas nas salas que exibiram Carlota Joaquina, A Princeza do Brasil, O Quatrilho e Terra Estrangeira são o melhor indício do respaldo da população à retomada da produção nacional. Há uma década o cinema brasileiro não conhecia sucessos de público similares, com o primeiro título superando e o segundo se aproximando do milhão de espectadores. A disputa do Oscar de filme estrangeiro por O Quatrilho completou o quadro de conquista do orgulho nacional pela nova safra de filmes brasileiros. O estigma de mais de uma década, que caracterizava a fita nacional como pouco menos que selvagem, começa a ser superado. Eis algo concreto a celebrar.

O Brasil redescobre o cinema assim como o cinema redescobre o Brasil. É um fato marcante a atual revalorização do cinema como mediador audiovisual da auto-imagem brasileira, avançando num terreno quase monopolizado pela TV na década passada. Não surpreende assim, como veremos adiante, que o diálogo entre a linguagem cinematográfica e a televisiva seja fundamental para se compreender o presente processo.

Ao mesmo tempo, a questão da identidade, ou das identidades, federalizadas neste país-continente tem sido um dos temas centrais da produção recente. Nesta pesquisa, a figura do estrangeiro tem servido muitas vezes como contraponto didático.

Em nada menos que cinco documentários a pesquisa de identidades se impôs. Quatro deles, curiosamente, a discutem a partir de imagens cinematográficas pregressas. Carmen Miranda - Bananas Is My Business, de Helena Solberg, foi eleito o melhor documentário de Havana-95 ao tentar uma cinebiografia sentimental da mais célebre atriz e cantora luso-brasileira a fazer carreira em Hollywood.

O ponto forte do filme é exatamente o amplo levantamento de arquivos, que permite reconstituir minuciosamente a ascensão e queda de Carmen, um personagem trágico que teve na questão da identidade nacional um dos dramas básicos de sua trajetória. Nascida em Portugal mas criada como artista no Rio, Carmen Miranda pagou um preço caro demais por aceitar viver em Hollywood o papel da sempre alegre chicana. Exótica oficial na capital mundial do cinema, americanizada para seu público órfão no Brasil, Carmen acabou por tornar-se uma eterna estrangeira. Entre a conquistadora e a rendida, entre a embaixatriz e a renegada, entre o estereótipo e o ícone, Carmen viu sua carreira evoluir por um estreitíssimo fio de navalha.

O melhor do filme de Solberg é detalhar essa triste sina. O pior, ainda que potencialmente interessante, é a explicitação melodramática em voz off dos sentimentos da própria diretora frente a seu personagem. Ainda assim, mesmo aqui, firma-se a busca da identidade: Solberg espelha-se em Miranda para entender-se, e revelar-se, um pouco mais.

Algo similar encontra-se em Yndio do Brasil, de Sylvio Back. Quase cem trechos de filmes de arquivo que retratam a população indígena brasileira são articulados por meio de oito poemas escritos pelo próprio cineasta e lidos pelo ator José Mayer. Muito mais complexo, na busca de um novo significado de imagens e sons pré-existentes, é São Paulo, Sinfonia e Cacofonia, de Jean-Claude Bernardet. As diversas São Paulos captadas pelo cinema harmonizam-se exatamente pela diferença frisada pelo meticuloso trabalho de, montagem e pela cuidada construção musical. Desenvolvido conjuntamente na ECA-USP, mas sob a direção do cineasta Aloisio Raolino e das urbanistas Regina Meyer e Marta Grostein, São Paulo, Cinemacidade mescla imagens de arquivo e filmagens atuais, visando ressaltar cinco características da megalópole (transformação, anonimato, multidão, precariedade e dimensão).

O grande documentário do ano, ao contrário, parece combater as imagens anteriores mantidas pelo espectador sobre seu objeto. No Rio das Amazonas, de Ricardo Dias, propõe uma viagem fluvial pelo Norte do país, de Belém a Manaus, tendo por guia o biólogo e compositor Paulo Vanzolini. Uma região já fartamente visitada pelas câmeras de outros documentaristas, até mesmo por Jacques Costeau, se oferece aqui a um raro olhar fresco.

Apostando na espontaneidade frente ao público, com quem dialoga abertamente o filme todo, revelando sem pudor os bastidores da produção, Dias estabelece uma incrível intimidade entre o que se passa atrás e diante da câmera, dentro e fora da tela. Um Brasil desconhecido, com um ritmo de vida ainda ditado pela natureza, se deixa revelar. Tanto quanto imagens inéditas, No Rio das Amazonas capta uma temporalidade rara, toda própria, jamais antes transmitida com igual impacto.

Mas enquanto Ricardo Dias flagra-nos estrangeiros em nosso próprio país, os quatro principais longas-metragens de ficção de 1995 estruturam-se a partir da relação entre brasileiros e não-brasileiros. É curioso examiná-los aos pares: Carlota Joaquina de Carla Camurati e Terra Estrangeira de Walter Salles e Daniela Thomas, O Quatrilho de Fabio Barreto e Jenipapo de Monique Gardenberg.

Carlota Joaquina foi o filme sensação da virada 1994-95. Marcou a nova lua-de-mel entre o público e o cinema. Foi visto nas salas por cerca de um milhão de espectadores. Já Terra Estrangeira é o sucesso cult da última safra. Venceu, entre outros, a primeira edição de um festival para jovens cineastas em Paris. Foi selecionado para extenso circuito de festivais internacionais. Conquistou o maior consenso crítico no Brasil.

A relação Brasil-Portugal é central para os dois filmes. Carlota Joaquina é a versão narrada por um escocês da vinda de D. João VI e da corte portuguesa ao Brasil colônia no início do século passado, em fuga da investida napoleônica sobre a Europa. Todos os estereótipos negativos sobre a presença da família real portuguesa se concentram em tom de comédia-bufa no filme. São todos feios, sujos e malvados, a começar de D. João, um glutão omisso, e sua esposa, Carlota Joaquina, uma bruxa adúltera que, ao partir, sequer o pó do Brasil quer levar nos sapatos.

Por sua vez, Terra Estrangeira restabelece os laços luso-brasileiros num passado mais recente, no imediato plano econômico decretado pelo governo Collor em março de 1990. O susto do congelamento dos depósitos bancários mata a costureira espanhola Manuela (Laura Cardoso), que se preparava para levar o filho Paco (Fernando Alves Pinto) a conhecer a terra natal materna, San Sebastián. Sem maiores laços, agarrado apenas a este último projeto familiar, Paco começa a viagem partindo para Lisboa.

Uma vez na terrinha, Paco envolve-se com uma auto-exilada brasileira, Alex (Fernanda Torres), que acaba de romper com o namorado trambiqueiro. Um último golpe dele catalisa o resto da trama: sua própria morte, o encontro entre Paco e Alex, a perseguição ao jovem por um chefão do contrabando (Luis Melo), a fuga, claro, rumo a San Sebastián.

Apesar de trabalharem não poucos temas comuns, o contraste entre Carlota e Terra não poderia ser maior. Carlota desenvolve um registro único, de carregada farsa; Terra começa como um melodrama, desenvolve-se como um policial e conclui-se como um road movie. Em Carlota, Portugal refugia-se no Brasil, e não gosta do que vê; em Terra, o Brasil abriga-se numa Portugal poucas vezes tão romanticizada por um cineasta estrangeiro. Carlota é uma escancarada vingança; Terra, uma despudorada homenagem. No filme de Camurati, o Brasil arrota orgulho xenófobo; no de Salles e Thomas, a orfandade generalizada pulveriza as fronteiras nacionais. Em Carlota, a pátria só poderia ser aqui; no de Salles e Thomas, não se encontra em lugar algum.

A tensão é outra entre O Quatrilho e Jenipapo. O primeiro, baseado num romance de José Clemente Pozenato, é um melodrama de época, passado nas colônias italianas da serra gaúcha no princípio deste século. Dois casais (Glória Pires, Alexandre Paternost, Patrícia Pillar e Bruno Campos) de imigrantes juntam-se num sítio, sendo rondados pela tentação da infidelidade. A ciranda de amores se estabelece e tudo afinal acaba bem para todo mundo.

Jenipapo é acentuadamente mais engajado. O imigrante desta vez é um repórter americano de um jornal brasileiro, Michael (Henry Czerny). Sua obsessão é outro transplantado, Stephen Louis (Patrick Bauchau), um padre estrangeiro que defende os necessitados no interior da Bahia. Enquanto o Congresso se prepara para aprovar uma reforma agrária ainda mais concentracionista, Michael tenta extrair uma entrevista oposicionista de um estranhamente calado padre Louis.

Em ambos os filmes o Brasil é palco para um solo de estrangeiros. O Quatrilho é um conto de fadas romântico, enquanto Jenipapo é uma ingênua fábula política. O primeiro trata de um incidente amoroso entre pessoas comuns; o segundo, de dois estrangeiros protagonizando uma batalha pública de dimensões nacionais. No filme de Barreto, o Brasil é a terra das oportunidades; no de Gardenberg, o inferno da exploração. Os estrangeiros de O Quatrilho deixam de sê-lo com o passar do filme; já os de Jenipapo, reafirmam mutuamente sua estranheza. Não é à-toa que o filme de Barreto seja falado num italiano aportuguesado (ou vice-versa) e que o de Gardenberg tenha no inglês sua língua principal.

Como no jogo de cartas que empresta o título ao filme de Fábio Barreto, as composições se alteram ao examinar estilisticamente a mais recente safra brasileira. O grupo mais amplo de títulos dialogou explicitamente com a tradição cinematográfica. Uma minoria privilegiou modelos televisivos de narração e, se esteticamente produziu resultados pouco empolgantes, alcançou nas bilheterias os resultados de longe de maior impacto.

Altos e baixos marcam a lista dos filmes que teve o cinema como grande referencial. As incongruências e platitudes do roteiro tornam Jenipapo um pálido decalque do thriller político à moda Costa Gavras (Z). Muito melhor saíram-se Walter Salles e Daniela Thomas ao seguirem em Terra Estrangeira a trilha existencialista da câmera andarilha de Wim Wenders (O Estado das Coisas) e Alain Tanner (Dentro da Cidade Branca); os problemas de construção dramática e sobretudo de redação de diálogos são insuficientes para eclipsar uma rara sofisticação visual e sonora.

Ugo Giorgetti e Júlio Bressane foram os destaques entre os cineastas que trabalham dentro da política do cinema de autor. Com Sábado, Giorgetti deu seqüência à sua série de pequenas comédias assumidamente paulistanas (Festa, Jogo Duro). Bressane, por sua vez, tornou sua cinebiografia do cantor Mario Reis, O Mandarim, menos um passo original em sua filmografia do que um novo capítulo da mitopoese carioca a que se vem dedicando com títulos como Tabu (1982).

Nada mais positivo que constatar a boa performance de diretores estreantes, todos oriundos da produção de curta-metragem. No Rio das Amazonas de Ricardo Dias é o mais importante documentário brasileiro dos anos 90, insuflando novo fôlego ao gênero. Por sua vez, Felicidade É reuniu quatro dos mais talentosos realizadores revelados na primavera do curta do final dos anos 80 num filme de episódios de exceção no gênero, marcado recentemente por tentativas similares de absoluto fracasso (vide Grande Hotel, de Tarantino, Rodrigues, Anders e Rockewell).

O filme pronto tem a organicidade fundamental para que suas quatro partes não sejam apenas quatro curtas-metragens amarrados num pretenso longa. José Pedro Goulart abre com Sonho o filme em chave alta. Um escritor em crise encontra inspiração para um conto à moda David Lynch no sonho narrado por sua mulher. Segue-se Bolo de José Roberto Torero, em que o mais acabado ceticismo amoroso deixa-se flagrar pelos preparativos para uma solitária celebração de bodas de ouro. Paulo Autran é a alma de Cruz de Cecílio Neto, interpretando um católico bem posto que reencontra numa espelunca um amor de cinqüenta anos atrás. Por fim, Jorge Furtado assina em Estrada o mais leve, despretencioso e dionisíaco dos episódios, em que a viagem de descanso de dois casais é posta em risco por um caminhão desenfreado.

A influência da televisão moldou sobretudo três produções. A mais evidente é o filme infantil Supercolosso, dirigido por Luiz Ferré a partir dos personagens popularizados por um programa matutino para crianças (neste filão, reconheça-se, o grande destaque do ano foi a versão de O Menino Maluquinho de Ziraldo dirigida pelo talentoso Helvécio Ratton).

Inegáveis são também as dívidas de Carlota Joaquina para com o humor caricato e reflexivo dos programas de Guel Arraes (Comédia da Vida Privada) e de O Quatrilho para com a imponência das produções nas minisséries. A imensa empatia com o público dos filmes de Camurati e Barreto deve muito a este imediato reconhecimento de gramáticas televisivas frente as quais os espectadores sentem-se absolutamente confortáveis. Carlota e Quatrilho extraíram suas forças (mercadológicas) de suas fraquezas (estéticas). É esta a mais perigosa armadilha para o novo cinema brasileiro.

Amir Labaki é crítico de cinema, articulista da Folha de S. Paulo e autor de vários livros, entre os quais O Olho da Revolução - O Cinema-Urgente de Santiago Alvarez (lluminuras, 1994) e Folha Conta Cem Anos de Cinema (Imago, 1995).